Thursday, July 31, 2014

AVANÇAR



"Mas aqueles em relação aos quais
eu direi outros
são a felinidade no seu pomo
de suspensão
ousando a substância de avançar
nos muros cegos da noite
com uma sabedoria alucinante."


Laureano Silveira, Os Caprichos, Porto: Limiar, 1991, p. 23. 

MEMENTO



"Se o dia de hoje é igual ao dia que me espera
depois, resta-me, entanto, o consolo incessante
de sentir, sob os pés, a cada passo adiante, 
que se muda o meu chão para o chão de outra esfera. 

Eu não me esquivo à dor nem maldigo a severa
lei que me condenou à tortura constante; 
porque em tudo adivinho a morte a todo o instante, 
abro o seio, risonha, à mão que o dilacera. 

No ambiente que me envolve há trevas do seu luto; 
na minha solidão a sua voz escuto, 
e sinto, contra o meu, o seu hálito frio. 

Morte, curta é a jornada e o meu fim está perto!
Feliz, contigo irei, sem olhar o deserto
que deixo atrás de mim, vago, imenso, vazio..."


Francisca Júlia, in José Valle de Figueiredo, Antologia da Poesia Brasileira, Lisboa: Editorial Verbo, s.d., p. 72. 

Wednesday, July 30, 2014

AUMENTO DE LUZ


"Aquele aumento de luz não trazia mais claridade nem mais alegria. Nada mais triste que a luta desigual da chama de uma alâmpada, de uma vela com os raios do sol; a chama parece que tem o que quer que seja de lúgubre, de funéreo, que esmorece, gela o sangue, em vez de o aquecer. É talvez o coração do homem que se confrange ao contemplar um simulacro da vida humana, que se consome quase ignorada à face da vida da natureza, grandiosa, eterna." 

António Coelho Lousada, A Rua Escura, Porto: Livraria Civilização, s.d., pp. 175-176. 

Tuesday, July 29, 2014

IACEBO



"Ah, todo o corpo é uma lágrima, é enfermo, 
E tudo neste Santo Cristo é um rosário, é lástima, 
Que nas mãos impregnou a amargura, é morrer.
Se te ris, pálidas urinas sacodem-nos, se nos ouvirem, 
Se deixarmos o pranto furar as paredes, 
Batem à porta para nos cobrir de punição, dançámos. 
A lástima de cinza é mortalha como se fosses um corpo despojado. 
Já esquartejado. "


José Emílio-Nelson, Bacchanalia, s.l.: Edições Sem Nome, 2014, p. 54. 

Monday, July 28, 2014

COSMOGONIA



"Mas este caos, esta terra invisível e informe, não foi numerada em dias. Onde não há nenhuma forma nem nenhuma ordem, nada vem e nada passa; e onde nada passa, não poder haver dias nem sucessão de espaços de tempo!"

Santo Agostinho, Confissões, XII (9), trad. Lúcio Craveiro da Silva, 13ª ed., Braga: Livraria A.I., 1999, p. 305. 

Sunday, July 27, 2014

POESIA E ORIGEM



"O pólen de ouro que arde no recesso
das corolas, o segredo dos pistilos; 
a visão musical de outros tranquilos
céus onde o amor esteve (ou está) disperso; 

a secreta palpitação de uma beleza
mais casta, de uma luz que se anuncia, 
trazem-me a sensação do próprio dia, 
numa contemplação que é mais certeza. 

Certeza? antes, o supremo encantamento
de quem renasce com as manhãs, em luminosa
plenitude, e as vê morrer, frágeis, ao vento. 

A poesia é o dia reinventado.
E nós, que tanto sonhamos ao criá-la, 
não nos lembramos mais de haver sonhado."


Alphonsus de Guimaraens Filho, in José Valle de Figueiredo, Antologia da Poesia Brasileira, Lisboa: Editorial Verbo, s.d., p. 192. 

Saturday, July 26, 2014

DA NECESSIDADE






"Erguendo mais a voz, o homem explicou:

- Deves saber que naqueles gelos imensos, onde tudo falta, não é a primeira vez que o caso sucede. Todos se encontravam esfomeados e sem esperanças de socorros, com a morte a rondá-los. Tinham a cabeça perdida e já não sabiam o que faziam. Um deles, num momento de alucinação e desespero, cortou a garganta com a navalha e morreu. Os outros, então...
- Compreendo. Os outros... comeram-no...
- No estado em que se encontravam, eram tão responsáveis como alienados. De resto, conforme diz o jornal, eles apenas comeram um braço, pois não puderam continuar.
- E Sven também comeu?
- Forçosamente, visto que quando se dão tais circunstâncias, todos procedem do mesmo mal. Os outros obrigaram a imitá-los."

Selma Lagerlöf, O Exilado, trad. Margarida R. Gorjão, Lisboa: Editorial Minerva, 1945, pp. 20-21. 

Friday, July 25, 2014

ESTÉTICA



"Pode-se pensar que a Estética é uma ciência que nos diz aquilo que é belo - ideia completamente ridícula. Suponho que deveria então incluir que tipos de café sabem bem."

Ludwig Wittgenstein, Aulas e Conversas, trad. Miguel Tamen, 3ª ed., Lisboa: Cotovia, 1998, p. 32. 

Thursday, July 24, 2014

DESENROLAR



"O tempo é, assim, um desenrolar, cujos estádios se referem entre si como um antes a um depois. Cada um destes antes e depois determina-se a partir de um agora, sendo este, contudo, um qualquer."

Martin Heidegger, O Conceito de Tempo, trad. Irene Borges-Duarte, Lisboa: Fim de Século, 2003, p. 29. 

Wednesday, July 23, 2014

ESPAÇOSA



"A manhã benfazeja, larga, espaçosa e silente preenchia-a por completo e gostaria de conservar para sempre esse tranquilo interregno de repouso."

Graça Pina de Morais, A Mulher do Chapéu de Palha, Lisboa: Antígona, 2002, p. 25. 

Tuesday, July 22, 2014

FIRMEZA



"eles não acreditavam na firmeza das paredes, elas movem-se nos lugares, obrigando os loucos homens a acordarem noite fora, com os braços carregados das coisas que conseguem salvar. as paredes ali procuram algo que não se sabe. os loucos homens juram a pés juntos o acontecimento de tão impossível coisa, mas ninguém acredita. o mais que se faz é recebê-los à porta, aflitos e tristes mais ainda, acalmá-los com um abraço, deitá-los para o sono e encostar o ouvido às paredes dos seus quartos, atentos ao que se puder ouvir. mas as paredes reforçam-se de peito aberto, imitam o ressonar dos pacificados e seguram as casas para se disfarçarem"

valter hugo mãe, livro de maldições, Vila do Conde: objecto cardíaco, 2006, p. 17. 

Monday, July 21, 2014

DESPOJOS



"Sinto resquícios de grandes 
existências. Como se tivesse mil mortos dentro
de mim ensinando-me a viver. 
Faz-se tudo de
espanto de eu tanto existir."


valter hugo mãe, silencioso corpo de fuga, Coimbra: A Mar Arte, 1996, p. 36. 

Sunday, July 20, 2014

O CÉU



"se olhar o céu
é modo de não pesar,
tarde inteira tenho
no vento pé, raiz de
pássaro, muito lento, 
alto, sobrevivendo à
chuva como a voar"


valter hugo mãe, três minutos antes de a maré encher, 2ª ed., Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2004, p. 28. 

Saturday, July 19, 2014

ILUMINAÇÕES



"A folia dos Santos é a da poesia
Vagarosamente entregue às iluminações, 
Ao tormento da devoção, 
À sintaxe das orações difíceis, talvez não lhes baste repeti-las. 
Uma peregrinação pungente de intenções
Reconhecendo a imperfeição
Como pena perpétua."


José Emílio-Nelson, Bacchanalia, s.l.: Edições Sem Nome, 2014, p. 58. 

INFAME


"A lâmina dum olho no coração enfermo, é o amor.
Ó cão que me devora, ó cão,
O crime que louvo pela perfeição e que destrói,
Solta-me o cristalino e toca nos versos.
Visão que foge e Ira que regressa (a que me entrego impiedoso).
A cratera dos olhos perfurados não vê a mão
Que entra nos intestinos, florações de impudor,
E é a que escreve.
E é a que glorifica Deus-Sade
Em que me rastejo falho de razão."

José Emílio-Nelson, Bacchanalia, s.l.: Edições Sem Nome, 2014, p. 53.

Thursday, July 17, 2014

OMÍCRON


"Na Natureza, com efeito, nada há pequeno. Sabem-no todos os que são susceptíveis da penetração profunda das suas maravilhas. Embora a filosofia nunca plenamente se satisfaça, quer no circunscrever as coisas, quer no limitar dos efeitos, a vista de todas estas decomposições de forças com a unidade por alvo abisma a alma do homem contemplativo em êxtases sem fundo. É um trabalho universal para uma junção universal."

Victor Hugo, Os Miseráveis, s.trd., Estarreja: Mel Editores, 2009, p. 659. 

Wednesday, July 16, 2014

LÁ, LONGE



"Chegaram decerto do Carnaval
de Veneza as pombas de Axoum. 
Mantêm ainda as máscaras violeta
(de irmãos Metralha) a circundar
os olhos pardos. Uma, 
no aeroporto - esbaforida
pelo olhar faminto do carregador - 
esvoaçou detector de metais 
dentro, e fê-lo tocar". 


António Cabrita, Arte Negra, Lisboa: Fenda, 2000, p. 206. 

Tuesday, July 15, 2014

ANIVERSÁRIO



"Que Deus tenha dó de mim, 
Outros foram mais perversos:
Se não obrei nobres feitos, 
Tive filhos e fiz versos."


Eugénio de Castro, A Caixinha das Cem Conchas, Lisboa: Lumen, 1923, p. 33. 

Monday, July 14, 2014

DES-VELADO


"Deus é a nossa 
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a vida
porque achamos
que não presta

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a fé
porque achamos
que é pirosa"


Adília Lopes, "Florbela Espanca Espanca", in Caras Baratas, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 188. 

Sunday, July 13, 2014

SOMBRA ATROZ



"O próprio deus contempla fascinado
a boca, a sombra atroz e fugidia
a lenta perfeição - brusca harmonia
o impossível florescer da voz. 

Onde o silêncio ascende há luz quebrada
pela cegueira lenta do meio-dia
e uma mão de fogo amortalhada. 
O próprio deus suspende a flor tardia. 

a flor e o grito o luxo o corpo o nada...
o deus é a voz rugosa que se afaga"


Laureano Silveira, "Os Caprichos", in O lado negro do lado branco, Porto: Limiar, 1993, p. 109. 

Saturday, July 12, 2014

NAUSICAA


"Onde é esconso
desenha uma baía. 
Eu que não fui donzela, 
ave ou eucalipto. 
sequer a surda sarda 
de Empédocles, 
fui a Greta de Heraclito. 
A anjo dado olha-se
o céu? Abre-se o breu
da paisagem, se
ele me esfacela. 
Porejam instantes, 
cerejas
de Pisa a Pavio."


António Cabrita, Arte Negra, Lisboa: Fenda, 2000, p. 35. 

Friday, July 11, 2014

OLHOS CHEIOS DE VERTIGEM


"vou de veneno em veneno
até à infância
com os olhos cheios de vertigem

os meus pés caminham diante de mim
até à escuridão que Deus habita
encontro os seus olhos diamantes
e sei que estão irremediavelmente perdido. 

Talvez este silêncio seja a morte
talvez esta braçada ampla e lenta
não se destine a colocar-me sobre
os ombros
o peso animal do Universo

oiço o sopro quente de um sorriso
não sei dissimular o meu pavor
a noite roça em mim a cabeleira
cheiro o seu nome luminoso e escuro. 

Fico imóvel na eternidade ou na memória
vendo os olhos de Deus como punhais
mansos punhais que abrem fundo
o silêncio
cresço na noite com o futuro aos ombros

cresço abraçado à promessa da faca
mas será a claridade a cortar-me
os pulsos

a claridade cava abismos na infância
esta obscura e tremenda
claridade"


Laureano Silveira, O lado negro do lado branco, Porto: Limiar, 1993, p. 44. 

TRAVESSIA



"atravessar a palavra como se
atravessa o rio e
fundear na margem futura sob as pedras
no seu sentido mudo

nas polpas
nas concentradas polpas
de água
armar as teias mortalmente
flexíveis
habitando a unidade flébil
que a mão esquecidamente penetra

inflamar da deusa 
o olhar
com a surdez da lâmina
dolorosamente mansa
renegando a espessura - dessa
que abunda no outro lado do desejo
e repousada se oculta entre a folhagem

isentar da luz o odor das seivas vivas
pendurando na noite um interlúdio de sono

e sussurradamente - ao 
levantar das pedras - 
fecundar o consentido abandono da
deusa."

Laureano Silveira, O lado negro do lado branco, Porto: Limiar, 1993, p. 25. 

Wednesday, July 9, 2014

DESCONHECER


"A solidão era boa, mas não assim, quando não sabia bem quem era e quando uma sensibilidade mais funda lhe fazia ver zonas turvas da sua alma e os caminhos escuros, imprecisos, que lhe criavam aquela angústia!Os homens, as mulheres, as casas, as árvores, a noite, o mundo, o tempo a passar...Achava tudo tão estranho!"

Graça Pina de Morais, "Desencontro", in O Pobre de Santiago, Lisboa: Antígona, 2001, p. 99. 

Tuesday, July 8, 2014

VOLVER


"Por conseguinte, a inteligibilidade pode duas coisas: decidir-se por se virar para o sol ou virar-se para a sua própria sombra, assim como quem fica de costas para a luz. Mas a arte vira-se para a luz e produz sombras, um contínuo olhar para os dois lados, como se não se decidisse."

Paulo José Miranda, Um prego no coração, Lisboa: Cotovia, 1998, p. 74. 

Monday, July 7, 2014

EMPEDERNIR



"EBEN (interrompendo asperamente): Ou que fazer muros... pedra sobre pedra... muros e muros até o coração ser uma pedra que se tira do caminho para uma pessoa se tornar numa pedra!"

Eugene O'Neill, Desejo Sob os Ulmeiros, trad. Jorge de Sena, Lisboa: Publicações Europa-América, 1963, p. 24. 

Sunday, July 6, 2014

ORCO


"Sei às vezes que o corpo é uma severa
massa oca, com dois orifícios 
nos extremos:
a boca, e aos pés a dança com a coroa de labaredas
- a cratera de uma estrela. 
E que me atravessa um protoplasma
primitivo, 
uma electricidade do universo, 
uma força. 
E por esse canal calcinado sai
um ruído rítmico, uma fremente
desarrumação do ar, o vento sibilante, 
vento:
o som onde começa tudo - o som. 

Completamente vivo.


Herberto Helder, Ou o poema contínuo, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 382. 

Friday, July 4, 2014

PERTENCER



"Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore. 
E pertenceu-me. 
Escuto o perfume dos rios. 
Sei que a voz das águas tem sotaque azul. 
Sei botar cílio nos silêncios. 
Para encontrar o azul eu uso pássaros. 
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas. 
Quero o feitiço das palavras."


Manoel de Barros, O Encantador de Palavras, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2000, p. 21. 

Thursday, July 3, 2014

REGRESSAR AO SAL



"eis que me assiste o vento mais
rápido ao ritmo do coração
assustado. se o mar regressar ao
sal onde faço a boca e me
negoceio, decretarei o dilúvio e 
guerra ao corpo. vencerei sem
esforço em breve tempo. já levanto 
os braços despidos, por onde devo
começar a lutar"


valter hugo mãe, estou escondido na cor amarga do fim da tarde, Porto: Campo das Letras, 2000, p. 56. 

Wednesday, July 2, 2014

DECEPÇÃO



"O pobre não tinha raiva à sua terra. Pelo contrário, amava-a, amava-a com o amor indestrutível e obstinado que os seres humanos costumam votar às pessoas e às coisas que mais os decepcionam. Como pode ser destruído um amor que não tem razão de ser?"

Graça Pina de Morais, O Pobre de Santiago, Lisboa: Antígona, 2001, p. 15. 

Tuesday, July 1, 2014

ESPAÇOS



"Como todo o ser humano que cresce à beira mar a mulher tinha a nostalgia dos largos espaços."


Graça Pina de Morais, A Mulher do Chapéu de Palha, Lisboa: Antígona, 2000, p. 8.