Thursday, March 31, 2016

ALTURAS




"E a evasão ao quotidiano, que parece ser uma necessidade visceral no homem com a sua carga de deveres e obrigações, a cada passo atira-o para a serra."

Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam, ed. facsimilada, Lisboa: A Bela e o Monstro Edições, 2014, p. 328.

COROA



"«Pois quê, mais nada?», murmurou. «A vida inteira não foi senão isto? Uma chuva fina, três amigos, um roseiral... Que o Diabo me leve se nada mais restar nas minhas recordações! E eu que julgava ter devorado o mundo!»"

Nikos Kazantzaki, Cristo Recrucificado, trad. M. Manuel B. Fonseca, Lisboa: Editora Ulisseia, 1973, p. 126. 

Wednesday, March 30, 2016

JÁ-FOI



"O que nos une é não nos entendermos
tu aí eu aqui - nossa via é diferente:
O teu já-foi o meu ainda-há-de-ser
são dois buracos negros no presente
que é nosso como o sonho antes do dia
quando sabemos já que estamos a sonhar
e que connosco brinca um pouco ao vento
até aqui e ali cada um se encontrar."


Ulla Hahn, A Sede Entre os Limites, trad. João Barrento, Lisboa: Relógio d'Água, 1992, p. 47. 

Tuesday, March 29, 2016

RADIAL



"Falta-me o tacto para poder tratar mais finamente por tu o universo. Falta-me, talvez, um verso - o verso com que fizesse pousar uma prosa definitiva. A renda ou a textura de tudo. E mesmo, de quando em quando, escrever sobre o nada."

João Habitualmente, Os Animais Antigos, Vila do Conde: objecto cardíaco, 2006, p. 40. 

Saturday, March 26, 2016

PEDRAS



"Há pedras habitadas. Pássaros que não migram
só para não sofrerem a partida

Esperam um ano a fio pelo regresso dos companheiros"


João Habitualmente, Os Animais Antigos, Vila do Conde: objecto cardíaco, 2006,  p. 11. 

GRAÇA



"«Que milagre é este mundo!», dizia Manólios, falando a si mesmo enquanto escalava a encosta. «Se abro os olhos vejo as montanhas, as nuvens e a chuva que cai; se vejo Deus, que criou as montanhas, as nuvens e a chuva; em todos os lados, na luz como nas trevas, a graça de Deus está connosco!»"

Nikos Kazantzaki, Cristo Recrucificado, trad. M. Manuel B. Fonseca, Lisboa: Editora Ulisseia, 1973, p. 264. 

Thursday, March 24, 2016

QUINTA


"De pé, Michelis sentia a vida em seu redor, inexoravelmente, sempre recomeçada. A roda das estações avançava; neste momento eram as vindimas; depois seria a vez das azeitonas, depois o nascimento de Cristo... E depois as amendoeiras floresciam, os trigais cresciam de novo, o tempo das ceifas voltaria... Michelis estava como que preso a uma roda; subia e descia, agora com o sol, logo sob a chuva. O dia e a noite estavam amarrados à mesma roda; subiam e desciam também ao mesmo tempo que ele. E Cristo, o recém-nascido, crescia, tornava-se um homem, ia valentemente semear a palavra de Deus, era crucificado, ressuscitava, tornava a descer do Céu, e no ano seguinte era recrucificado..."

Nikos Kazantzaki, Cristo Recrucificado, trad. M. Manuel B. Fonseca, Lisboa: Editora Ulisseia, 1973, p.  273. 

Wednesday, March 23, 2016

REGOZIJO



"Quando Manólios retomou o caminho da montanha as sombras caíam. No céu tinham-se amontoado nuvens; soprava um vento morno do leste; algumas gotas de chuva caíram sobre a face de Manólios e sobre a terra escaldante. A sua carne regozijou-se; ela tinha sede também, como a planície e a montanha; estava unificada com a terra e as pedras."

Nikos Kazantzaki, Cristo Recrucificado, trad. M. Manuel B. Fonseca, Lisboa: Editora Ulisseia, 1973, p. 264. 

AGUARDA



"Deixo entrar o mundo devagar
Com o seu catálogo de catástrofes diárias.
É mais uma visita, mais um episódio
Duma série doméstica. 
É mais um dia virtual de imagens
Criminosas. 

Deixo o poema aberto às leis da concorrência
Devo manter-me à sombra
De mim próprio.

Não tenho clientela.
Acabei o meu turno de pneus obedientes, 
De olhares elásticos, 
De manequins agressivos, envoltos em silêncio, 
Nas ruas duma tarde de província
Em mar de Inverno. 

Trago as ondas revoltas na cabeça. 
Como quem procura o prazer num vão de escada
Lírico
Dou alguns passos, livre, 
Mas o meu corpo cede à languidez dormente 
Do asfalto. 
Sem risco nem aventura, 
Burocrata, 
O carro encosta junto à repartição pública
E aprende, com o país, 
A espera."


Armando Silva Carvalho, O Amante Japonês, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, pp. 91-92. 

Tuesday, March 22, 2016

O DEUS NÃO TEM IMAGENS



"Não posso calar a ausência porque ela é espaço
e pulsação. O silêncio do seu desejo
abre uma varanda marítima e solar. 
A líquida cabeça da fadiga
obriga-me a escrever as mais nuas palavras. 
O deus não tem imagens, é apenas um sopro
que as dissolve inaugurando a água clara
que é a fidelidade viva ao segredo da origem."


António Ramos Rosa, A Imagem e o Desejo, Lisboa: Universitária Editora, 1998, p. 45. 

Sunday, March 20, 2016

IMPERTURBÁVEL



" - Tens pressa?
- Não - respondeu, envergonhado. - Seja o que Deus quiser e quando quiser. 
- Deus nunca tem pressa. É imperturbável, vê o futuro como se já fosse passado e opera na eternidade. As criaturas efémeras não sabem o que vai acontecer, têm medo e estão impacientes. Deixa Deus trabalhar no silêncio que lhe compraz; não levantes a cabeça, não faças perguntas. Cada pergunta é um pecado. 
O Sol chegara ao meio do céu; descia a direito, gota a gota, sobre as cinco cabeças. Estas tinham-se aproximado; os olhares cruzavam-se cheios de um afecto mudo. Da outra vertente da montanha chegou um som de flauta, um ritmo alegre, vivo, apaixonado!"


Nikos Kazantzaki, Cristo Recrucificado, trad. M. Manuel B. Fonseca, Lisboa: Editora Ulisseia, 1973, p. 158. 

Saturday, March 19, 2016

VACILA



"Se o azul vacila
e a trama da vida parece desfazer-se
será que a palavra poderá ser
um nascimento fragrante
ou um sopro no sopro?

Com o seu hálito de segredo tranquilo 
a casa espera as sílabas de água
e que se acenda o veludo de uma lâmpada
que oriente a primeira matéria
arrebatada pela dança.

Como a serpente de um olhar vazio
de um deus que a si se lesse
surge um sinal, um acorde que devasta, 
uma inauguração sem começo. 

Como captar esta inapreensível simplicidade, 
esta nudez redonda e fulgurante?"


António Ramos Rosa, A Imagem e o Desejo, Lisboa: Universitária Editora, 1998, p. 10. 

Friday, March 18, 2016

SENHOR SENHOR



"Eloi Lama Sabactani - 
Senhor Senhor por que me abandonaste?
Olho as ondas revoltas e procuro em vão um sinal
Eloi Lama Sabactani
O Grande Lama o lama dos Andes os sapatos sujos de lama
Eloi Lama Sabactani
Senhor Senhor por que me abandonaste?"


Jorge Sousa Braga, O Poeta Nu, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 72. 

Thursday, March 17, 2016

BEIRA-LUGRE




"... Enquanto num riso sereno
à beira-lugre Estrela-Segundo.
Mestre Fantasma, muito moreno
toma o barco do outro mundo"


Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação, Lisboa: Assírio & Alvim/BI, 2008, p. 153. 

COR



"o riso útil da amorosa
retine de tal maneira
no pobre quarto cor-de-rosa

que as tuas mãos de senhor
já não sabem por que milagre
ainda é puro o amor"


Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação, Lisboa: Assírio & Alvim/BI, 2008, p. 66. 

Tuesday, March 15, 2016

PASSOS



"Por que não experimentam deixar-se conduzir pelos próprios pés? Não tenham receio. 

Os pés preferem esses caminhos de que ninguém - a não ser as cabras - se serve ainda. Talvez os anime o mesmo espírito dos salmões quando, na altura da desova, procuram as primeiras e definitivas águas. 

Não me perguntem onde vos levarão. A única coisa que vos posso assegurar é que se trata de um lugar onde o orvalho é de mil anos."


Jorge Sousa Braga, O Poeta Nu, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 111. 

Monday, March 14, 2016

DESSERT


"Este imenso carnaval de destroços,
o fausto miserável
das coisas por vir eternamente,
aqui onde se não ousa esperar. 

Uma fenda de deserto a deserto,
majestosa e inútil, 
não propriamente um coração

- alegres cinzas no mar do teu nome."


Manuel de Freitas, Todos contentes e eu também, Porto: Campo das Letras, 2000, p. 27. 

Sunday, March 13, 2016

DOCE



" - O Paraíso deve ser parecido com isto! - exclama Charalambos, o bedel -, um sol doce, uma chuva leve, limoeiros em flor, cachimbadas e uma conversa sem fim até à consumação dos séculos."


Nikos Kazantzaki, Cristo Recrucificado, trad. M. Manuel B. Fonseca, Lisboa: Editora Ulisseia, 1973, p. 6. 

Saturday, March 12, 2016

PASSAES



"Imagens, que passaes pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixaes?
Que passaes como a água cristallina
Por uma fonte para nunca mais!..."


Camilo Pessanha, Clepsydra, ed. Paulo Franchetti, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 102. 

Friday, March 11, 2016

BICHOS




"bichos vinham dos
movimentos da terra e 
trocavam comigo o olhar
por mãos quentes, água, 
luz e pequenos espaços onde
o corpo pousava melhor"


Valter Hugo Mãe, a remoção das almas, Porto: Cadernos do Campo Alegre, 2003, p. 50. 

Wednesday, March 9, 2016

AOS PÉS



"As raízes da árvore da minha vida ou não têm solo
ou não encontraram ainda o chão adequado aos pés de um corpo 
- uma obra? - que aprece ter nascido para errar sem descanso, 
estrangeiro, em busca da morte que já tem dentro de si."


Casimiro de Brito, Fragmentos de Babel seguido de Arte Poética, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007, p. 59. 

Tuesday, March 8, 2016

COMO VAI O MUNDO



"Ituriel percebeu o que a pergunta implicava. Resolveu nem sequer pensar em corrigir Persépolis e deixar o mundo tal qual é, «porque - concluiu - mesmo que nem tudo esteja bem, tudo é desculpável». Deixou-se, pois, que Persépolis subsistisse, e Babouc ficou bem longe de se lamentar, como Jonas, que se zangou por não ver Nínive destruída. É que, depois de se viver três dias no interior de uma baleia, não se pode ter a mesma disposição de quando se vai à ópera, ao teatro, ou se janta em boa companhia."


Voltaire, "Como Vai o Mundo, Visão de Babouc escrita por ele próprio", in Contos, trad. L. Nazaré, Lisboa: Edição Amigos do Livro, s.d., p. 35. 

Monday, March 7, 2016

TOWERING INFERNO



"Amanhã tudo será pior
ainda, eu sei: o hábito, a inércia, 
o sem remédio da vida - tão pouco
haverá a salvar. 

Por toda a cidade os desconhecidos
subirão outro degrau para o escuro
da noite, e a memória será talvez
um remorso:

aquela manhã de sol
na varanda, o espanta-espíritos
com peixes de alumínio num rosário
de contas profanas. 

Ainda o tens? Ainda canta, 
de madrugada, se o vento sopra
do mar?

Não importa. Foi sempre de menos
o muito que pedimos

e a parte que tivemos."


Rui Pires Cabral, Morada, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 231. 

Sunday, March 6, 2016

PAROXISMO



" - O que aí vai! O que aí vai! Então não há a estima, não há o amor?...
- Amor!... O Amor é um mero fenómeno fisiológico. Os nossos filhos são o produto acidental de uma orgia dos nervos, dum paroxismo dos sentidos."


 Abel Botelho, O Livro de Alda, 3ª ed. Porto: Livraria Chardron, 1922, p. 300. 

Saturday, March 5, 2016

VIVIDA



"A nossa vida vivida é uma série de imagens quiméricas, mais ou menos distantes, claras ou confusas, retratando-se num fundo escuro, além do qual talvez exista o Nada, aquela negridão sem fim que circunda as últimas estrelas."

Teixeira de Pascoaes, Livro de Memórias, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 46. 

Thursday, March 3, 2016

IRROMPE


"Sou terra onde as árvores deitam fundas raízes que só o machado pode derrubar. E as flores que nascem de mim não emurchecem. Nascem de mim árvores, flores; e os mortos irrompem, vivos, do meu ser. Desapareço numa turba de fantasmas. Já não sou eu; sou os outros. Eis o grito de Deus ao criar o mundo."

Teixeira de Pascoaes, Livro de Memórias, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 51.

Wednesday, March 2, 2016

CORTE



"Acendo a luz. A luz vive de um
disfarce de uma antiguidade
atómica. 

E cada brilho tem um vento atento
o sopro um vento especial a morte:
desmancha-se a luz toda
(o feto dela) de um só corte."


Luiza Neto Jorge, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 148. 

Tuesday, March 1, 2016

PESSANHIANA



"A cinza arrefeceu sobre o brasido 
das coisas não logradas ou perdidas:
olhos turvos de lágrimas contidas, 
eu vi a luz em um país perdido."


Carlos de Oliveira, "Terra de Harmonia" in Trabalho Poético, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 138.