Saturday, September 30, 2017

AS VÉSPERAS


"A noite cai. 

A água cai. 
Da fonte para a taça
aonde as pombas
outrora brancas
são agora sombras
nas tranças d'água
no cântico da gárgula...

Das sombras nascem morcegos. 
A água regelará.
Ó visão, toda de pedra...

Em que sol fossilizado
o amor se tornará?"


José Fernandes Fafe, Poesia (Quase toda e até agora), Lisboa: IN-CM, 1987, p. 110. 

Friday, September 29, 2017

MICAEL



"Se alguém cantasse não voltaria a morrer
na tarde escura
com o coração em cinza
na memória alada do fogo."


Pompeu Miguel Martins, O Livro do Anjo, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2001, p. 25. 

Thursday, September 28, 2017

SUPORTÁVEL


"Escrevo estas recordações com um mal-estar que não tenho capacidade para definir. É que, da maneira como as narro, elas surgem-me tão adulteradas e ridículas que seria bem melhor, nem que fosse por pudor, guardá-las para mim. E talvez sejam mesmo ridículas e não haja modo de lhes dar coerência e dignidade. A vida é assim. É por isso que as histórias que nos contam nos bons livros são suportáveis: torcem a vida, inventam-na, até lhe darem verosimilhança e uns restos de grandeza. Tenho pensado algumas vezes que, enquanto o ímpeto criador dos homens se desviar para esta solução tão individualista, a arte, o mundo continuará vesgo e as pessoas esmagarão a cabeça nas paredes. (...) Que, ao menos, na floresta das palavras, eu saiba apenas escolher as necessárias."

Fernando Namora, Domingo à Tarde, 11.ª ed., Amadora: Livraria Bertrand, 1975, p. 78.

Wednesday, September 27, 2017

CONSELHO


"Ela própria evitou o embaraço da resposta, se é que eu tinha alguma coisa para lhe responder. Levou uma das mãos à boca e mordeu o dedo mínimo. Depois disse, no mesmo tom de apelo que usara antes:
- Deixe os outros acreditar em alguma coisa. Não lhes roube o que de melhor lhes pertence."


Fernando Namora, Domingo à Tarde, 11.ª ed., Amadora: Livraria Bertrand, 1975, p. 34. 

Tuesday, September 26, 2017

PARA LÁ


"Certas manhãs ficava acordado olhando o rectângulo insidioso, recusando-me a admitir que o dia nascera, temendo a evidência da solidão. O mundo morava longe, muito para lá da porta. Vinha-me dele um frémito longínquo. Agora, porém, o vidro fosco já não me aturde com essa espécie de despertar pavoroso e lívido. Agora sei que o amor nos faz aproximar as coisas, habitá-las, que pelo amor as reconhecemos e que, depois de lhe recebermos a revelação, nada mais é preciso para nos sentirmos vivos."

Fernando Namora, Domingo à Tarde, 11.ª ed., Amadora: Livraria Bertrand, 1975, p. 25. 

Monday, September 25, 2017

IMENSO



"Haver no fundo um templo ou uma casa
é ter consigo, amante, uma cereja aberta
onde é madeira ao centro e solução 
do suco rosa e negro onde se abrasa
e torna leve e limpo, e mal desperta
se torna coração. 

Haver um mar de ferro e água pura, 
um simples tom calado, um leme oculto, 
é haver sempre um cheiro de maresia, 
trazer um lastro breve à mala escura
onde se pousa e dorme agasalhado um vulto
de sal e de alegria. 

Haver no fundo pedra ou chão preciso
é ser por isso um vento vertical
que o sol redime e lima e contraria
e denso amansa firme e circunciso, 
tornando tudo imenso e desigual
e pão poesia."

Pedro Tamen, "Minúsculas", in Tábua das Matérias - Poesia 1956/1991, Lisboa: Tertúlia, 1991, p. 130. 

Sunday, September 24, 2017

ONDE DE SÚBITO



"Cada monte tem um certo cheiro a montes
antigos em cada estação; mesmo a caruma
representa o mar dos cerros, onde a ninguém 
é permitido se esconder. Onde de súbito
se mergulha o que se tem nas mãos e tudo
vai ficando de oiro e prata - por milagroso
toque na pedra rápida, velha procura
dum mistério que o vento vem trazendo, 
que os nossos ombros tocam, são tocados, 
até que o aceitamos e nós próprios
vamos ficando perto, mas cada vez mais cegos."


Pedro Tamen, "O Sangue, a Água e o Vinho", in Tábua das Matérias - Poesia 1956/1991, Lisboa: Tertúlia, 1991, p. 61. 

Saturday, September 23, 2017

SEM MONTANHAS



"Não há montanhas se não há palavras.
Não foge a bala se não há um espaço. 
Não sobe o céu se não houver distâncias.
Não cabe o túnel se nunca estão paredes. 

Correrem dias todos nós sabemos
serem serenos de punhais no meio;
mas sem montanhas nunca pode haver
um certo dia, grande nos foi dado. 

O que esperámos era a Morte Larga, 
o que pedimos era só um Homem, 
madeira e ferro que soubemos dar. 

Tudo existiu para que ele o desse, 
tudo existiu para que ele caia. 
Não há montanhas se não há palavras."


Pedro Tamen, "O Sangue, a Água e o Vinho", in Tábua das Matérias - Poesia 1956/1991, Lisboa: Tertúlia, 1991, p. 54. 

Thursday, September 21, 2017

MEMENTO



"sou a que vós tão importuna e fera
usais chamar, e a gente surda e cega
a quem antes da tarde a noite espera;

e conduzi ao fim a gente grega
e a troiana, e já matei Romãos
com esta espada assim que fere e sega, 

e estranhos povos em barbárie irmãos;
e por chegar quando alguém suspeite
interrompi mil pensamentos vãos."


Vasco Graça Moura, As Rimas de Petrarca, Lisboa: Bertrand Editora, 2003, p. 113. 

Wednesday, September 20, 2017

FUNDO



"Sobre mim a rosa descriada
na posição do corte
O leão quando cega 
arqueando o salto
Sobre mim o fulgor do chão
no regresso das palavras
e o fundo das pedras
levitando o tempo"


Rui Costa, A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, p. 13. 

Tuesday, September 19, 2017

INSTABILIDADE



"Depois dos limites da linguagem, 
a vertigem torna-se maior. 

Mas a instabilidade da poesia
existe apenas
porque o mundo se abrigou em nós. 

A terra tornou-se 
a evidência da ignorância
e a forma respira nas palavras. 

Mares infindos e montanhas altas
procuram a claridade
de ser mais do que pedra e água."


Joel Henriques, A Claridade, s.l.: Editora Casa do Sul, 2008, p. 77. 

Monday, September 18, 2017

MUSIDORA


"O contraste entre imagem e signo, que na iconoclastia, tal como na polémica teológica, se tornara um tema fulcral, teve consequências que foram muito além da troca de estocadas com conceitos. Consistem elas em que as imagens se referiam, habitualmente, aos corpos e que os corpos culminavam nos rostos. Nas imagens, o observador sentia-se olhado pelos rostos que nelas estavam representados. Esta experiência aludia à questão da realidade da imagem, e justamente enquanto objeto de uma perceção sensível que, na imagem, tão facilmente era superada ou levada ao limite. Nas imagens, miravam-se outros rostos, que reciprocavam o olhar. O semblante era o escândalo das imagens (e o triunfo do ícone) porque, diferentemente das imagens narrativas de caráter instrutivo, sugeria um encontro face a face que se tornou suspeito à religião."

Hans Belting, A verdadeira imagem, trad. Artur Morão, Porto: Dafne Editora, 2011, p. 178. 

Sunday, September 17, 2017

AU-DESSUS



"Para além das nuvens, o céu é sempre azul. As paragens onde
reina Nosso Senhor ficam à distância de um dedo."


Thérèse Martin, de Lisieux, O Alto Voo da Cotovia, trad. Maria Gabriela Llansol, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p. 291. 

Saturday, September 16, 2017

SERVIÇO



"Para que serve a arte?

Para impedir que as nossas órbitas mirrem de toda a porcaria que, no resto do tempo, alegremente vemos na televisão e nos filmes."


Charles Saatchi, O Meu Nome é Charles Saatchi e Sou um Artoholic, trad. Paulo Rêgo, Lisboa: Clube do Autor S.A., 2017, p. 168. 

Friday, September 15, 2017

MORAR NO TEMPO




"Morar no tempo, mesmo
soterradas, coexistir no ofício durável da
neutralidade: dólmen menir pirâmide ameia
agulha gótica ou soleira
humilde, espelho duradouro
de poderes e impudores, brasão
seixo alvo fonte ou pedra de
arremesso, de jogar, de roçar à espera de
fertilidade, de esmigalhar, urinar, 
sepultar. Vértebra 
do mundo."

Inês Lourenço, O Jogo das Comparações, Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2016, p. 60. 

Thursday, September 14, 2017

FRUTOS DE SOMBRA



"Passamos pelas coisas sem as ver, 
gastos como animais envelhecidos;
se alguém chama por nós não respondemos, 
se alguém nos pede amor não estremecemos:
como frutos de sombra sem sabor 
vamos caindo ao chão apodrecidos."

Eugénio de Andrade, As mãos e os frutos, 20ª ed., Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2004, p. 62.

Wednesday, September 13, 2017

PENSAMENTO


"Sonhar, neste preciso sentido, equivale a potenciar a razão até ao limiar do mistério. Não engendra, portanto, nenhuma utopia, que é a forma mental mais enganosa de prometer o infinito e dele realmente nos afastar."

Afonso Botelho, Saudade, Regresso à Origem, Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1997, p. 44. 

Tuesday, September 12, 2017

AS CINZAS



"Eu próprio tenho de ser sol; pintar com os meus raiosO mar sem cor da total Divindade."

Angelus Silesius, A rosa é sem porquê, trad. José Augusto Mourão, Lisboa: Vega, 1991, p. 41. 

Monday, September 11, 2017

MOVIMENTOS



"São, desejo e lembrança, mais do que sentimentos menores configurando a saudade, movimentos do espírito que convergem neste sentimento englobante e lhe determinam a dinâmica."

Afonso Botelho, Saudade, Regresso à Origem, Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1997, p. 31. 

Sunday, September 10, 2017

APROPRIAR


"Porque o Amor não é coisa que se diga para o ar e é pelo rosto que se começa a desenhar a estratégia de perdição que é toda a dádiva afectiva. O que se dá a outro fatalmente se retira de nós: e a nossa doentia curiosidade exige saber que o rosto justifica tamanho sacrifício e que outro rosto, afogueado, ousa perder-se na imagem amada. Fatalidade de uma civilização que não soube proibir a tempo a reprodução dos rostos divinos? Não sei. Mas creio que a paixão do retrato é coisa que nos vem de uma exacerbada consciência da efemeridade da vida e, portanto, da absoluta necessidade de fixar, de reter, de apropriar os traços do tempo que passa sobre nós."

António Mega Ferreira, A Borboleta de Nabokov, Lisboa: Editorial Notícias, 2000, p. 98. 

Saturday, September 9, 2017

COELHO



"El-rei folgava muito com pernas de coelhos. Levando-se-lhe um coelho à mesa com uma perna menos, disse el-rei:
- Que diligência de coelho, que vem num pé à mesa!"


Autor desconhecido, Ditos Portugueses Dignos de Memória, ed. José Hermano Saraiva, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 19. 

Friday, September 8, 2017

A DIVINE IMAGE



"Crueza traz um Cor Humano
E o Ciúme Humana Face
Terror, Divina Forma Humana
E o Segredo, Humano Traje

É Humano Traje, forjado Ferro
É Humana Forma, ígnea Forja.
É Humana Face, Forno selado
É Humana Cor, faminta Gorja."


William Blake, Canções de Inocência e de Experiência, mostrando os Dois Estados Contrários da Alma Humana, trad. Jorge Vaz de Carvalho, Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 114. 

Wednesday, September 6, 2017

AGON


"-Toda a vida tinha pensado - disse, e apontava um ponto impreciso na distância; na realidade pretendia abarcar com um gesto até ao horizonte tudo quanto a lua iluminava - que isto que vemos tinha sido sempre assim, precisamente como agora o vemos, que tudo isto era o resultado de uns ciclos naturais inalteráveis e umas mudanças de estação que vêm regularmente de ano a ano. Demorei muitos anos a dar-me conta de quanto estava enganado: agora sei que até o último palmo destes campos e destes bosques foi trabalhado a pá e picareta hora após hora e mês após mês; que os meus pais e antes os meus avós e os meus bisavós, que não cheguei a conhecer, e outros e outros inclusivamente antes de eles nascerem andaram a guerrear com a Natureza para que nós agora e eles antes pudéssemos viver aqui. A Natureza não é sábia como dizem, mas sim estúpida e bronca e sobretudo cruel."

Eduardo Mendoza, A Cidade dos Prodígios, trad. José Teixeira de Aguiar, Lisboa: Publicações Dom Quixote/RBA Editores, 1994, p. 163. 

Monday, September 4, 2017

IN THE IDEA OF WHAT TIME IT IS



"da noite surge o testemunho 
as suas folhas como pássaros aterrando todos à vez debaixo de uma árvore
levantadas e abanadas de novo
pousadas com uma raiva surda
sabendo como o cérebro sabe que nunca poderá vir a acontecer
não aqui não ontem no passado
apenas no intervalo de hoje enchendo-se
enquanto o vazio se distribui 
pela ideia de que horas são
quando essa hora já passou"


John Ashbery, Auto-Retrato Num Espelho Convexo e outros poemas, trad. António M. Feijó. Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 147. 

Sunday, September 3, 2017

ACUMULAR



"De resto, não tendes nenhum direito a guardar o dinheiro para vosso proveito; não vos pertence. O dinheiro pertence ao Diabo, que está sentado dia e noite ao balcão, por detrás dos seus sacos de oiro, traficando com as almas humanas. (...) De que serve acumular dinheiro? A morte tem uma segunda chave do vosso cofre. Os deuses vendem todas as coisas a preço módico, diz um poeta antigo."

Axel Munthe, O livro de San Michele, trad. Jaime Cortesão, Lisboa: Círculo de Leitores, 1974, p. 268. 

Saturday, September 2, 2017

NONO ANO


"As brasas dentro do nevoeiro
eram rosas enraizadas no teu coração
e a cinza cobria o teu rosto
todas as manhãs. 

Desfolhando sombras de ciprestes
partiste no verão a seguir."


Yorgos Seferis, Poemas Escolhidos, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Lisboa: Relógio d'Água, 1993, p. 78. 

Friday, September 1, 2017

SONO




"Alaúdes, perfumes e taças, 
lábios, cabeleiras e olhos profundos - 
brinquedos que o Tempo destrói, brinquedos!
Austeridade, solidão e trabalho, 
meditação, prece e renúncia - 
cinzas que o Tempo esmaga, cinzas!"


Omar Khayyam, Rubaiyat, trad. Fernando Castro, 3ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1999, p. 66.