Thursday, December 31, 2020

FINDA

 



"Nas nossas trevas não há um espaço para a Beleza. Todo o espaço é para a Beleza."


René Char, Furor e Mistério, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 271. 

NO INTERIOR DO SEU INTERIOR

 



"Aquele que declarou esta guerra em si próprio, está em paz com os seus semelhantes, e, embora seja por inteiro o campo de batalha mais violenta, no interior do seu interior reina uma paz mais activa do que todas as guerras juntas. E quanto mais reina a paz no interior do seu interior, no silêncio e na solidão central, mais se encarniça a guerra contra o tumulto das mentiras e da ilusão inumerável."


René Daumal, A Guerra Santa, trad. António Barahona, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 37. 

UN LOURD SILENCE

 


"então, um grande silêncio, um pesado silêncio dilatar-se-ia primeiro que tudo, um silêncio grávido de mil trovões."


René Daumal, A Guerra Santa, trad. António Barahona, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 17. 

Wednesday, December 30, 2020

A FARSA

 


"Não pôde ser deixado naquele estado à vista de todos. Na noite de 19, foi decidido levá-lo e depositá-lo na Capela das Febres para lhe dar uma sepultura provisória. A operação, contada por Burckard, transforma-se numa farsa macabra e sórdida: «Foi depositado perto de uma parede, num canto do lado esquerdo do altar. Esta tarefa foi realizada por seis carregadores muito rústicos, que se divertiam e injuriavam o papa e o seu cadáver, e dois mestres carpinteiros, que lhe fizeram um caixão demasiado estreito e curto. Não havia qualquer tocha ou iluminação, nem ninguém para cuidar do corpo, pelo que acabaram por fazê-lo entrar aos socos no caixão, deformando a mitra. Em seguida, cobriram o corpo com o tapete antigo já referido."


Ivan Cloulas, César Bórgia, trad. Victor Silva, Lisboa: Edições 70, 2009, p. 198. 

Tuesday, December 29, 2020

ELEVAÇÃO



"Antes de prosseguirmos, desejamos lembrar ao leitor a história da pedra que, atirada do alto de um monte, começa por deslizar devagarinho, rodeando obstáculos. Mas quando toca o termo da viagem e adquire força, vence grandes distâncias de cada salto, transpõe barrancos e muros e a sua carreira torna-se cada vez mais rápida e impetuosa à medida que se aproxima do momento de ser condenada a repouso eterno."


Walter Scott, A Aventura de Waverley, trad. António Vilava, Lisboa: Romano Torres, 1955, p. 385. 

Monday, December 28, 2020

LIMITE

 


"O reencontro é caloroso. Muito feliz por tornar a vê-los, o papa fá-los sentar nos degraus do seu trono. Após este episódio, a família marca encontro para o dia 22 de Maio, em S. Pedro, a fim de celebrarem o Pentecostes. Neste dia, para grande escândalo de Burckard, as damas de honor, para melhor desfrutarem do espectáculo, trepam, atrás de Lucrécia e Sancha, as estalas dos cónegos e vão instalar-se no ambão, onde se canta a epístola e o Evangelho. Longe de se melindrar, Alexandre alegra-se até ao riso: na Basílica venerável, que é a da autoridade suprema da Cristandade, parece ter sido ultrapassado o limite entre o cumprimento do ritual e o prazer dos sentidos."

Ivan Cloulas, César Bórgia, trad. Victor Silva, Lisboa: Edições 70, 2009, p. 64. 

Sunday, December 27, 2020

UNIÃO

 


"Quando, pois, Irmãos dilectíssimos, celebramos o Natal do Senhor, dia que foi escolhido, entre todos os dos tempos passados, conquanto a ordem dos acontecimentos materiais, como os tinha destinado o decreto eterno, já tenha passado, e a humildade do Redentor já tenha sido toda elevada à glória da majestade do seu Pai, «para que ao nome de Jesus, todo o joelho se dobre nos Céus, na Terra e nos infernos, e toda a língua confesse que Jesus é Senhor e tem glória igual à do Pai», contudo não cessamos de adorar o próprio parto da Virgem que nos traz a salvação; e aquele indissolúvel união do Verbo e da carne não menos a contemplamos deitada no presépio do que sentada no altíssimo trono de seu Pai."

S. Leão Magno, "Nono Sermão da Epifania do Senhor", in Sermões para o Natal, trad. pe. António Fazenda, Lisboa/São Paulo: Verbo, 1974, pp. 154-155. 

Saturday, December 26, 2020

DO CORAÇÃO E DE VONTADE

 


"O outro caso é o de Domingas Domingues, que apresenta uma história deveras interessante e bem complexa e elucidativa do contexto e das implicações da cura. De novo, na presença do túmulo da rainha e das testemunhas anteriormente referidas, compareceu Domingas Domingues, que narra o seu caso, referindo que em tempos «que não sabia quando» bebera uma sanguessuga e que devido a isso tinha frequentes «golfadas de sangue», que alguns diziam ser de uma dor que ela tinha, outros da referida sanguessuga.Para pôr fim a tal desgraça, aconselharam-na a ir à Fonte do Alfafar para beber da sua água, e que tal não resultara, e depois fora ainda a um barco, chamado o «veleiro», junto a Penela, e que igualmente bebera de uma água, que também não surtiu qualquer efeito. Depois foi a São Brás de Coumbra, e ainda a Santa Maria da Parede da Igreja de São Bartolomeu e nada disto resultou, até que foi aconselhada a ir junto do túmulo da rainha Isabel em Coimbra. Aí pedira-lhe «do coração e de vontade" que rogasse a Deus por ela e que a aconselhasse sobre o que fazer com o seu sofrimento, e lançando muito sangue sobre o túmulo sai-lhe pelo nariz a referida sanguessuga, ficando curada."

Maria Filomena Andrade, Isabel de Aragão, mãe exemplar, Lisboa: Círculo de Leitores, 2012, pp. 26-27. 

Friday, December 25, 2020

DIES NATALIS


"Contempla por entre os aloés e os dedos
A criança que acampou connosco agora
O menino que abre uma estrela e nos convoca
Ele contempla. Ele vem. Ele é um cedro que transborda"


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 205.

Thursday, December 24, 2020

ANTE O MISTÉRIO

 



"E ao anjo ela disse:
ante o mistério os meus olhos cerram-se porque na crença
como no amor há a rudeza

e por isso eu quis
que a palavra viesse da boca sôfrega e seca,

que ela fosse proscrita e bela
quis, para ela, o brilho lamacento da pobreza

Assim, escolherei um rosto de ácida doçura
com suas linhas rudes e sua cor morena

Eu canto a cidade negra e branca
incandescente e dura, prometida, sonhada, 
inconcedida"



Maria Andresen, O que Move o Silêncio do Cavalo e Anteriores Lugares, Lisboa: Relógio D'Água, 2020, p. 28. 

Wednesday, December 23, 2020

CUMULADO

 


"Sou o excluído e o cumulado de graças. Termina-me, beleza que aplainas, pálpebras ébrias mal cerradas. Todas as chagas mostram à janela os seus olhos de fénix despertos. A alegria da resolução canta e geme no outro da parede."

René Char, Furor e Mistério, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 89. 

Tuesday, December 22, 2020

A VIAGEM DA ENERGIA

 



"Vislumbro o dia em que alguns homens que não se julgarão generosos e absolvidos, visto que terão conseguido expulsar o desânimo e a submissão ao mal do trato com os seus semelhantes, ao mesmo tempo que terão atacado e dominado as forças da chantagem que de todas as partes os reclamavam, vislumbro o dia em que alguns homens empreenderão sem astúcia a viagem da energia do universo. E, como a fragilidade e a inquietude se alimentam de poesia, será exigido no regresso a esses altos viajantes que se dignem a lembrar-se."


René Char, Furor e Mistério, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 67. 

Monday, December 21, 2020

ANIVERSÁRIO

 


" - Trouxe-vos até aqui, capitão Waverley, não só por me lembrar de que a paisagem vos agradaria, como também porque as poesias montanhesas perderiam muito do seu valor sem o cenário que lhes compete. Servindo-me da linguagem poética da minha pátria, digo que o trono mais apropriado para a musa céltica é o outeiro solitário, envolto em neblina, embalado pelo murmúrio das águas. Aquele que a invoca deve preferir a rocha estéril ao vale arborizado e fértil, a solidão do deserto ao ruído dos palácios."

Walter Scott, A Aventura de Waverley, trad. António Vilava, Lisboa: Romano Torres, 1955, p. 131. 

Saturday, December 19, 2020

O ENCOBERTO

 



"Eu tinha a vaga esperança de que surgisse um sismo ou um furacão, de maneira a poder renascer num mundo tranquilo e luminoso."


Sadeq Hedayat, O Mocho Cego, trad. Carimo Mohomed, Silveira: Letras Errantes/E-Primatur, 2020, p. 103. 

Friday, December 18, 2020

LEITURA

 


"Não existe hábito que mais se enraíze do que o de ler sem método nem fim determinado, principalmente se encontramos ensejo e facilidade para o fazer."


Walter Scott, A Aventura de Waverley, trad. António Vilava, Lisboa: Romano Torres, 1955, p. 23. 

Wednesday, December 16, 2020

FEIXE

 



"quem deixou sobre o coração
um feixe de luz
cega nunca"


valter hugo mãe, publicação da mortalidade, Lisboa: Assírio & Alvim, 2018, p. 56. 

Tuesday, December 15, 2020

METÁFORA

 



"A minha vida está a derreter-se gradualmente no meio das quatro paredes que forma o meu quarto, no meio da robusta fortificação que está construída à volta da minha vida e dos meus pensamentos. 
Não, estou enganado. A minha vida é como um tronco de madeira acabado de cortar e deitado ao lado de uma lareira: está queimado e chamuscado pelo fogo de outros troncos de madeira a queimar, mas não arde completamente nem permanece recente e verde - o fumo sufoca-o."


Sadeq Hedayat, O Mocho Cego, trad. Carimo Mohomed, Silveira: Letras Errantes/E-Primatur, 2020, p. 59. 

Monday, December 14, 2020

SERVIR

 



"o pássaro não esquece a canção

afundá-lo no olhar
a roubar vento
navegar para casa
navegar para casa

onde a lágrima de cristal
pousa entre as louças da cozinha

amar é servir para outro mundo"


valter hugo mãe, publicação da mortalidade, Lisboa: Assírio & Alvim, 2018, p. 36. 

Sunday, December 13, 2020

EXISTÊNCIAS

 


"Neste momento, os meus pensamentos gelaram. Uma vida singular, ímpar, fora criada em mim, porque a minha vida estava presa a todas as existências que me rodeavam, a todas as sombras que tremeluziam à minha volta. Senti uma profunda e inseparável relação com o mundo, com o movimento de todas as criaturas e com a natureza. Todos os elementos, meus e da natureza, estavam ligados pelos caudais invisíveis de uma qualquer corrente agitada e perturbadora. Nenhum pensamento ou imagem eram para mim antinaturais. Eu compreendia os segredos das antigas pinturas, os mistérios de tratados filosóficos difíceis e a eterna tolice das formas e das normas, porque neste momento eu participava na rotação da Terra e dos planetas, no crescimento das plantas e nas actividades do mundo animal. O passado e o futuro, distante e próximo, partilhavam a minha vida sensível e eram unos comigo."

Sadeq Hedayat. O Mocho Cego, trad. Carimo Mohomed, Silveira: Letras Errantes/E-Primatur, 2020, p. 30. 

Saturday, December 12, 2020

O DESEJO

 



"Que este dia seja tão doce e tão perfeito que nos seja possível evitar as forças das trevas até atingirmos o termo da nossa vida, fixado por Deus na felicidade."


Caspar Hartung Vom Hoff, O Pequeno Livro sobre a Arte, trad. Cristina Diamantino, Lisboa: Edições 70, 1990, p. 39. 

Thursday, December 10, 2020

ESPERANÇA

 



"Esperando que um mundo seja desenterrado pela linguagem, alguém canta no lugar onde se forma o silêncio. Logo verificará que não porque se mostre furioso existe o mar, nem igualmente o mundo. Por isso cada palavra diz o que diz e além disso mais e outra coisa."


Alejandra Pizarnik, Antologia Poética, trad. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Tinta-da-China, 2020, p. 131. 

Wednesday, December 9, 2020

PREITO

 



"É lei do tempo, Senhora, 
Que ninguém domine agora
E todos queiram reinar.
Quanto vale nesta hora
Um vassalo bem sujeito, 
Leal de homenage e preito
E fácil de governar?

Pois o tal sou eu, Senhora: 
E aqui juro e firmo agora
Que a um despótico reinar
Me rendo todo nesta hora, 
Que a liberdade sujeito...
Não a reis! - outro é meu preito:
Anjos me hão-de governar."


Almeida Garrett, Folhas Caídas, Lisboa: Ulisseia, 1992, p. 163. 

Tuesday, December 8, 2020

FLOR ABERTA

 




"Quem me dera voltar à inocência
Das coisas brutas, sãs, inanimadas, 
Despir o vão orgulho, a incoerência:
- Mantos rotos de estátuas mutiladas!

Ah! Arrancar às carnes laceradas
Sem mísero segredo de consciência!
Ah! Poder ser apenas florescência
De astros em puras noites deslumbradas!

Ser nostálgico choupo ao entardecer, 
De ramos graves, plácidos, absortos
Na mágica tarefa de viver!

Ser haste, seiva, ramaria inquieta, 
Erguer ao sol o coração dos mortos
Na urna de oiro duma flor aberta!..."


Florbela Espanca, Sonetos Completos, 8.ª ed., Coimbra: Livraria Gonçalves, 1950, p. 141.

Monday, December 7, 2020

ANOITECER-ME

 



"Mãos crispadas confinam-nos ao exílio.
Ajuda-me a não pedir ajuda.
Querem anoitecer-me, vão morrer-me.
Ajuda-me a não pedir ajuda."


Alejandra Pizarnik, Antologia Poética, trad. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Tinta-da-China, 2020, p. 93. 

Sunday, December 6, 2020

PRENHES

 



"Debandava tudo de seus lugares e quem estivesse irremediavelmente preso à casa, ao mester, apelava para a misericórdia divina, como único salvatério, esforçando-se por merecê-la com preces, penitências, votos de toda a ordem, de que nunca mais conseguiria desonerar-se, se alguma vez buscasse cumpri-los. Mas era como as promessas impossíveis a Santa Bárbara, que só o são enquanto a trovoada está armada ou vai ribombando das nuvens prenhes de raios e coriscos."

 

Aquilino Ribeiro, Humildade Gloriosa, 2.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 126. 

Saturday, December 5, 2020

SANS SOLEIL

 




"Wilde acreditava que existe no artista uma qualquer fatalidade, e a ideia é mais forte que o homem. 
- Há duas espécies de artistas - dizia. - Uns dão respostas e outros fazem perguntas. Precisamos de saber se somos dos que respondem ou dos que interrogam; porque o que interroga nunca é o que responde. Há obras que aguardam e não são durante muito tempo compreendidas porque dão respostas a perguntas que ainda não foram feitas; é frequente a pergunta surgir muitíssimo tempo depois da resposta. 
E ainda dizia: 
- A alma nasce velha no corpo; o corpo envelhece para rejuvenescê-la. Platão é a juventude de Sócrates."


André Gide, Os Meus Oscar Wilde, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2020, p. 19. 

Friday, December 4, 2020

MAS A VIDA

 



"a morte morre de riso mas a vida
morre de pranto mas a morte mas a vida
mas nada nada nada"


Alejandra Pizarnik, Antologia Poética, trad. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Tinta-da-China, 2020, p. 28. 

Thursday, December 3, 2020

ESFERA

 



"Como quem confundido percorre a esfera
da terra só em busca de lugar seguro. 
Escreve para uma linhagem futura o que lhe resta
do nome, esse nada que é a música da língua
rompendo entre a noite esmaltada dos seus dentes. 

Vendo a crista das montanhas, escurecendo
ao longe o sol no horizonte, partilha
com o ar pela última vez as volúpias da alma
e da visão, a aura das nossas cidades tributárias."



Paulo Teixeira, Inventário e Despedida, Lisboa: Editorial Caminho, 1991, p. 22. 

Wednesday, December 2, 2020

ESPIRAIS

 


"Os homens, no geral, à luz do dia e sempre que empunhavam a vara do mundo eram monstruosos tiranos, e ignóbeis na animalidade debaixo de telha."

Aquilino Ribeiro, Humildade Gloriosa, 2.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 57. 

Tuesday, December 1, 2020

LIBERTAÇÃO (para a memória de Eduardo Lourenço)

 


"Só a palavra poética é libertação do mundo. Em luta com a mastigação discursiva do mundo, ela descobre por rara e imerecida graça a passagem para esse Instante onde repousaríamos sempre mesmo que a nossa marcha fosse mais vertiginosa que a luz. De repente estamos num continente novo e descobrimos que essa terra nos esperava há muito."


Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Lisboa: Relógio D' Água, 1987, p. 40.