Monday, December 31, 2007

ENCERRA-SE O INCIDENTE


"Duas horas em breve.
Estás deitada, talvez.
Na noite,
como um Oka de prata
a Via Láctea corre.
O tempo é meu, e os relâmpagos
que eram meus telegramas,
não mais te virão
despertar,
atormentar.
Como se diz: encerra-se o incidente.
A canoa do amor
foi-se quebrar de encontro ao quotidiano.
Eis-me quite contigo.
E é inútil o passar em revista
penas,
azares,
e recíprocas feridas.
vê,
que paz no universo.
A noite
impôs ao céu
a servidão de tantas
tantas estrelas. "

(...)


Vladimir Maiakowski, Autobiografia e Poemas, Lisboa: Ed. Presença, 1974, pp. 91-92.

PASA VELOZ DEL MUNDO LA FIGURA



SALMO IX

"Cuando me vuelvo atrás a ver los años
que han nevado la edad florida mía;
cuando miro las redes, los engaños
donde me vi algún día,
más me alegro de verme fuera dellos,
que un tiempo me pesó de padecellos.
Pasa veloz del mundo la figura,
y la muerte los pasos apresura;
la vida nunca para,
ni el Tiempo vuelve atrás la anciana cara.
Nace el hombre sujeto a la Fortuna,
y en naciendo comienza la jornada
desde la tierna cuna
a la tumba enlutada;
y las más veces suele un breve paso
distar aqueste oriente de su ocaso.
Sólo el necio mancebo,
que corona de flores la cabeza,
es el que sólo empieza
siempre a vivier de nuevo.
Pues si la vida es tal, si es desta suerte,
llamarla vida agravio es de la muerte."


Francisco de Quevedo, Poemas Escogidos, ed. José Manuel Blecua, 4ª ed., Madrid: Clásicos Castália, 1989, p. 66.

Monday, December 24, 2007

A LUZ SE APAGA, A BRUMA SOBE...



"A luz se apaga, a bruma sobe, as ondas indistintas
fundem o seu som à noite lenta e quieta.
Não natureza isto: uma tristeza só
de nos pensarmos quanto no passado
se era animal sem culpa e sem vileza
de ser-se humano em pensamento. Nada

há senão só um corpo que não fale
e que não pense para mais que o instante
de usar-se inteiro no esquecer da vida.

E a vida então será, sem noite e sem memória,
o prazer puro em triunfar-se viva."


Jorge de Sena, "Exorcismos", in Poesia III, Lisboa: Edições 70, 1989, p. 136.

Sunday, December 23, 2007

A SABEDORIA DAS SOMBRAS



"Sabe-o melhor do que nós,
a gata, entre livros e livros
que terá a sorte de não ler.
Aproxima-se, não tem pressa,
vem-nos recordar que estamos
vivos - menos felizes, mas vivos -
à mercê de um verso, da sombra
pálida dos livros, da música
contrária à evidência de haver mundo."


Manuel de Freitas, Blues for Mary Jane, Lisboa: & etc, 2004, p. 37.

Friday, December 21, 2007

DRINK UP SWEET DECADENCE


"The voice of God is full of draughtiness,
Promising simply the hard stars, the space
Of immortal blankness, between stars
And no bodies, singing like arrows up to heaven."



(A voz de Deus está cheia de correntes de ar,
prometendo apenas as estrelas fixas, o espaço
da desolação imortal entre as estrelas
e sem corpo, cantando como flechas erguidas para o céu)


Sylvia Plath, Pela Água, trad. Maria de Lourdes Guimarães. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, pp. 58-59.

Monday, December 17, 2007

O NATAL DOS POBRES



"Da matéria tem nascido à custa de gritos, de fibras torcidas, o imorredoiro espírito. Através das idades ele se criou, através da dor veio surgindo. O mundo espiritual é já hoje mais vasto que o mundo material. A dor é primavera da vida. Para se entrar na vida ou para se entrar na morte há sempre gritos. A dor ara o céu cheio de estrelas e os seres humildes."


Raul Brandão, Os Pobres. Lisboa: Ed. Comunicação, p. 229.

Wednesday, December 12, 2007

MUNDO MISTERIOSO, CHEIO DE GRITOS

"Para se criar é preciso sofrer. Hoje e sempre só a dor é que dá vida às coisas inanimadas. Com um escopro e um tronco inerte faz-se uma obra admirável, se o escultor sofreu. Mais: com palavras, com sons perdidos, com imaterialidades, consegue-se esse milagre: fazer rir, fazer sonhar, arrancar lágrimas a outras criaturas. Com as simples e secas letras do abecedário, um desgraçado com génio, metido numa água-furtada, edifica uma coisa eterna, uma construção mais sólida e mais bela do que se fosse arrancar os materiais ao coração das montanhas.
O que é então a dor, milagre extraordinário que consegue dar vida às fragas? o que é esse assombroso fluido, que se comunica, alma arrancada da própria alma e que se pode repartir como pão? Nunca houve sob o sol criatura que sofresse da verdadeira dor, cujo sofrimento não consolasse ou salvasse. Até as mais humildes, ainda depois de mirradas vão aquecer e alumiar os pobre.
A dor dá a vida e não é a própria vida: cria, redime, obra prodígios e nada há que se comunique, que convença, que torne os homens irmãos como ela..."


Raul Brandão, Os Pobres, Lisboa: Ed. Comunicação, 1984, pp. 77-78.

Monday, December 10, 2007

REGRESSO ÀS COISAS DISTENDIDAS DE PRESENTE



"Regressa morte
às coisas distendidas de presente
morre a tensa presença
do regresso
morde o sangue dos objectos
a distensão dos dentes
o presente sangrar dos que regressam
a objectiva em riste dos desígnios
regressa
com as coisas imensas dos que sangram
com o presente vivo dos perigos
as feridas do mar o indistinto
distende os olhos dos vivos
estende na terra o olhar inútil dos mortos
o hálito livre dos mortos
regressa morta
à pele mordida de noites e perigos
regressa
e morre"


Gastão Cruz, "A morte percutiva" in Orgão de Luzes - Poesia Reunida, Lisboa: IN-CM, 1990, p. 26

Saturday, December 8, 2007

NA BOA NOVA DE NOBRE, LENDO RÉGIO



"Nuvens tocadas pelos ventos, ide!
Lá para além de vós, o céu não passa.
Contra as rochas erguidas e paradas,
Desfazei-vos na vossa eterna lide,
Ondas!, flocos de espuma encrespadas...

Que a praia, não há onda que a desfaça...

Desfolhai-vos nas asas do tufão,
Rosas inda em botão esta manhã,
Folhas aos ventos troncos arrancadas!
Cinzas levais, só cinza!, em vossa mão,
Tempestades futuras e passadas!

Sobre a semente, a vossa fúria é vã.

Decorrei, dias meus já sem sentido
Senão o de ficar, que não é vosso.
Dissolvei-vos no ar, mãos revoltadas!
Gestos, formas, visões, sons, pó erguido,
Voltai ao pó das tumbas ignoradas!...

Que não se apaga a luz de além do poço.

(...)"


José Régio, "Mas Deus é Grande", in Não Vou Por Aí - Antologia Poética, selecç. Isabel Cadete Novais, 3ª ed. Vila Nova Famalicão: Quasi Edições, 2001, p. 116.

Sunday, December 2, 2007

DO ALTO DA TUA INATINGÍVEL CONDIÇÃO


"Ninguém morrera ainda tanto como eu
só tive de estender um pouco mais o corpo
Sobre o meu rosto passam uma a uma as gerações
e vem lavar-me a água os velhos pés
E diz-me Deus, tão acessível como o mar nas praias:
- Tu és cada vez mais aquilo que tu és

Há entre as oliveiras sítio para o sol
e a brisa da infância canta rindo nos ramos
entre o cheiro do giz e as canções da escola

Deus é perto de mim como uma árvore"


Ruy Belo, "Figura Jacente", in O Problema da Habitação - Alguns Aspectos. Lisboa, ed. Presença, 4ª ed., 1997, p. 54.

Friday, November 30, 2007

PRECIPÍCIOS



"As imagens gastas de tão lidas
e os sofisticados lugares comuns da poesia
colam-se-te à pele - incómodo trajo do bom senso
e do bom gosto que repudias.
Vil chegada do que amaste, e que agora recordas.

A poesia faz-se contra o esquecimento?
Melhor seria dizer, contra a memória se faz a poesia.

Sem a arruinada ponte não há precipício?
O que conta é o precipício além da arruinada ponte."


Luís Quintais, Angst, Lisboa: Cotovia, 2002, p. 38.

Saturday, November 24, 2007

CORPO DA NOITE


"Ó noite onde as estrelas mentem luz, ó noite única do tamanho do Universo, torna-me, corpo e alma, parte do teu corpo, que eu me perca em ser mera treva e noite também, sem sonhos que sejam estrelas em mim, nem sol esperado que ilumine do futuro."


Bernardo Soares, Livro do Dessassego, 280, ed. Richard Zenith, 5ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 271.

Saturday, November 17, 2007

PASSOS MEDIDOS ATÉ À PONTE



"Inseparável do medo é a queda,
Medo é mesmo do vazio o sentimento.
Quem nas alturas nos atira a pedra,
Rejeitando ela o jugo do momento?"


Ossip Mandelstam, Guarda Minha Fala Para Sempre, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 121.

Tuesday, November 13, 2007

O OBSCURO, NOVAMENTE COM TRONCOS DEVASTADOS



II.
"Pois deixa as solidões ganhar tamanho,
retira-te de tudo o que comece,
engrossa nas pastagens o rebanho
que a terra enegrecida já escurece.

(...)
Aqui fala o obscuro, nunca o vimos,
primeiro nos soergue e só nos mente,
mas - sonhos, praga ou bênção que sentimos -
deixa tudo intocado humanamente"


Gottfried Benn, "50 Poemas", trad. Vasco Graça Moura. Lisboa: Relógio D'Água, 1998, p. 67.

Friday, November 9, 2007

OBSERVANDO O TRONCO E VENDO O ROCHEDO



"Há rochedos que são estátuas misteriosas.
Nós vemo-los, além, nas serras arenosas,
Desenhados na tela em brasa do sol-pôr...
Ó frontes que enrugou e empederniu a dor!
Há rochedos que são perfis extraordinários.
Alguns, ao vir da lua, evocam os calvários.
Este, lembra dum Deus o mutilado torso;
(...)"

Teixeira de Pascoaes, Vida Etérea, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 167.

Friday, November 2, 2007

À BOCA DO POÇO - OFÍCIO DOS MORTOS 2

"Às vezes, até a morte pode ser
condescendente: à boca do poço
pára o cavalo, não chega a desmontar,
mas consente que te demores
a contemplar as águas negras,
o rebanho de chocalhos distantes,
as macieiras perto,
os seus frutos estranhamente acesos."


Eugénio de Andrade, "Rente ao Dizer", in Poesia, 2ª ed. revista. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 477.

Thursday, November 1, 2007

DEMONOLOGIA 1 EM NOITE DE TODOS-OS-SANTOS

"Mas afinal quem é o senhor? Porque está assim mascarado?"
"Respondo, numa só resposta, às suas duas perguntas: não estou mascarado."
"Como?"
"Minha senhora, eu sou o Diabo. Sim, sou o Diabo. Mas não trema nem se sobressalte."
E num relance de terror extremo, onde boiava um prazer novo, ela reconheceu, de repente, que era verdade.
"Eu sou de facto o Diabo. Não se assuste, porém, porque eu sou realmente o Diabo, e por isso não faço mal. Certos imitadores meus, na terra e acima da terra, são perigosos, como todos os plagiários, porque não conhecem o segredo da minha maneira de ser. Shakespeare, que inspirei muitas vezes, fez-me justiça: disse que eu era um cavalheiro. Por isso esteja descansada: em minha companhia esté bem. Sou incapaz de uma palavra, de um gesto, que ofenda uma senhora. Quando assim não fosse a minha própria natureza, obrigava-me o Shakespeare a sê-lo. Mas, realmente, não era preciso."


Fernando Pessoa, A Hora do Diabo, ed. Teresa Rita Lopes, 2ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 45.

Sunday, October 28, 2007

A PAR DA ESTAÇÃO DA ALEGRIA


"Tu, homem, estás no umbral da vida, e percebem-se os teus frios olhos que olham para longe, ouve-se o pulsar do teu coração que deseja e aborrece com igual veemência, escuta-se a tua respiração resfolegante de fera que está prestes a arremessar-se.
Mas, à hora da espera, sucede a hora da impaciência. A nave agita-se sobre o espelho das águas e faz gemer as amarras que a retêm à terra - o cavalo escarva e estremece e estica o focinho para o prado, que cheira; para o campo que ondeia..."


Giovanni Papini, "Os Conselhos de Hamlet", in Palavras e Sangue, trad. Mário Quintana. Lisboa: Livros do Brasil, p. 164.

Sunday, October 21, 2007

RETÓRICA DUBITATIVA



"Acaso morremos e só na aparência estamos vivos,
nós, os gregos, caídos em desgraça,
imaginando que a vida é um sonho?
Ou estamos vivos e foi a vida que morreu?"

Páladas


in Do mundo Grego Outro Sol, selecç. e trad. Albano Martins, Porto: Ed. Asa, 2002, p. 78

Thursday, October 18, 2007

ANGELOGRAFIA 4, PENSANDO NO OCEANO E NOUTRAS ÁGUAS

"Ora existe em Jerusalém, junto à porta das Ovelhas, uma piscina chamada em hebraico Bezatha, que tem cinco pórticos. Nestes, jazia uma multidão de enfermos, cegos, coxos, paralíticos, que esperavam o movimento da água, porque o Anjo do Senhor descia, de tempos a tempos, à piscina e agitava a água; e o primeiro que nela entrasse depois da agitação da água, ficava curado de qualquer doença que tivesse."

Jo 5, 2-4

Monday, October 15, 2007

MUNDO NA SUA CONDENAÇÃO DIFERIDA


"O mundo na sua condenação diferida
não terá outro senão o rosto que lhe dei,
consolo nas palavras que não admitiram
âncora, leme ou governo, ilha para refúgio.

Aqui esperei o que veio, após o clarão
e o raio. Vi como desocultavam as máquinas
e desfilavam em parada os cavalos de estado
para que o mundo fosse a grande oficina.

Vi o sol guarnecer de gravuras o pesadelo,
antecipando-se a uma noite longa de três dias,
na qual sereis confiados a vosso coração e paciência
e ao ruído ecoado pelas câmaras de explosão."


Paulo Teixeira, Patmos, Lisboa: Ed. Caminho, 1994, pp. 59-60.

Saturday, October 13, 2007

BUT OUR FIRE, OUR ELEMENTAL FIRE


"O fogo é-nos mais caro que o amor ou o alimento,
quente, apressado, mas queimando se lhe tocares.

O que devemos fazer
não é unir o nosso amor ou a nossa boa vontade, ou qualquer
coisa dessas,
pois temos a certeza de introduzir muitas mentiras,
mas sim o nosso fogo, o fogo elementar
de modo a que se erga numa enorme chama como um falo no
espaço vazio
e venha fecundar o zénite e o nadir
enviando milhões de centelhas de novos átomos
e nos queime e incendeie a nossa casa."



D. H. Lawrence, Os animais evangélicos e outros poemas, trad. Maria de Lourdes Guimarães. Lisboa: Relógio d'Água, 1994, p. 201.

Friday, October 12, 2007

RETORNAR AO CAMPO EM FRAGMENTOS


"Nesta suja e estéril república longínqua tudo é de jeito a cada vez mais, por uma reacção, me dar paganismo. Os meus pensamentos vão todos para essa paisagem lúcida e calma de Portugal, tão naturalmente predestinada a produzir esses homens que tomarão das mãos longínquas dos gregos o facho do sentimento pagão."


Ricardo Reis, Prosa, ed. Manuela Parreira da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p. 169

Sunday, September 30, 2007

DESCONFIANÇAS

XLVIII

"Grandes entre os homens só o poeta, o padre e o soldado.
O homem que canta, o homem que sacrifica e que se sacrifica.
O resto é feito para o chicote.
Desconfiemos do povo, do bom senso, do coração, da inspiração e da evidência."



Charles Baudelaire, O Meu Coração a Nu, trad. João Costa, 2ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1999, p. 82

Friday, September 28, 2007

DOLOR URGET ME


"Ecce sonat in aperto
vox clamantis in deserto:
nos desertum, nos deserti
nos de pena sumus certi.
nullus fere vitam querit,
et sic omne vivens perit.
omnes quidem sumus rei,
nullus imitator Dei,
nullus vult portare crucem,
nullus Christum sequi ducem.
quis est verax, quis est bonus,
vel quis Dei portat onus?"


Carmina Burana, 10, apres. Francesco Maspero, Milão: Tascabili Bompiani, 2002.

Saturday, September 22, 2007

CORRER COM O TEMPO



"Agora que o mundo deslizou como uma bola
das mãos de deus e cruza a noite vazia
dos espaços sabemos que a morte nos espera
disposta como uma refeição à nossa mesa.
Rendemos à sorte de cada minuto as nossas
vidas e corremos de monte em monte como
correria uma canção levada pelo vento."


Paulo Teixeira, "Zona Biográfica", in Inventário e Despedida, Lisboa: Caminho da Poesia, 1991, p. 54.

Wednesday, September 19, 2007

FAZER AS MALAS PARA PARTE NENHUMA


"Faze as malas para parte nenhuma!
Embarca para a universalidade negativa de tudo
com um grande embandeiramento de navios fingidos -
Dos navios pequenos, multicolores, da infancia!
Faze as malas para o Grande Abandono!
E não esqueças, entre as escovas e a thesoura,
A distancia polychroma do que se não pode obter.
Faze as malas definitivamente!
Que és tu aqui, onde existes gregario e inutil -
E quanto mais util mais inutil -
E quanto mais verdadeiro mais falso -
Que és tu aqui? que és tu aqui? que és tu aqui?
Embarca, sem malas mesmo, para ti mesmo diverso!
Que te é a terra habitada senão o que não é comtigo?"


Álvaro de Campos, Vida e Obras do Engenheiro, ed. Teresa Rita Lopes, 2ª ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1992, p. 107.

Saturday, September 15, 2007

LUZ AZUL-DE-VERÃO



"Há vestígios verdes nas telas vazias das molduras douradas"



Mário de Sá-Carneiro, Céu em Fogo, XVI, in "Prosa", Lisboa: círculo de Leitores, 1990, p. 286.

Sunday, September 9, 2007

SALVAR A MEMÓRIA



"Propendemos para ser tudo, por nisso vermos o único remédio de não sermos reduzidos a nada. Queremos salvar a nossa memória, pelo menos a nossa memória. Que tempo durará? Pelo menos o que durar a vida humana. E se salvássemos a nossa memória em Deus?"


Miguel de Unamuno, Do Sentimento Trágico da Vida, trad. Cruz Malpique, Lisboa: Relógio d'Água, 2007, p. 52.

Wednesday, September 5, 2007

DE LÁBIOS MUDOS, OLHOS APAGADOS


"Não passas de uma sombra turva, de um duro núcleo de indiferença, de um olhar neutro que foge dos olhares. A partir de agora, de lábios mudos, olhos apagados, saberás detectar nas poças de água, nos vidros, sobre as carroçarias reluzentes dos automóveis, os reflexos fugazes da tua vida suspensa."


Georges Perec, Um homem que dorme, trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Lisboa: Ed. Presença, 1991, p. 23.

Monday, September 3, 2007

THE EMPTY WAS TRANSFORMED INTO POSSESSION







"The empty was transformed into possession,
The cold burst into flames; creation was on fire
And his weak moment blazing like a bush,
A symptom of the order and the praise;
And he had place like Abraham and Jacob,
And was incapable of evil like a star,
For isolation hab been utterly consumed,
And everything that could exist was holy."


W.H. Auden, "Pascal", in Outro Tempo, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2003, p. 72.

Friday, August 31, 2007

LIMBO



NIRVANA

Para além do Universo luminoso
Cheio de formas, de rumor, de lida,
De forças, de desejos e de vida,
Abre-se como um vácuo tenebroso.

A onda desse mar tumultuoso
Vem ali expirar, esmaecida...
Numa imobilidade indefinida
Termina ali o ser, inerte, ocioso...

E quando o pensamento, assim absorto,
Emerge a custo desse mundo morto
E torna as coisas naturais,

À bela luz da vida, ampla, infinita,
Só vê com tédio, em tudo quanto fita,
A ilusão e o vazio universais.


Antero de Quental, Sonetos (1874-1880)

Monday, August 27, 2007

MEMÓRIA DE ALEXANDRE MAGNO NO DISFARCE DO TEMPO

G. Ny-Carlsberg, Copenhaga


"O poder dos deuses move-se devagar, mas agora está seguro. Exige contas aos mortais que praticam a incredulidade e que, no desvario do orgulho não contribuem para o trinfo dos deuses. O poder dos deuses disfarça o andar do tempo numa astuta lentidão e persegue o ímpio. Nunca se deve imaginar ou pensar o que está acima das leis. É fácil reconhecer a potência da divindade, seja esta quem for, como também dos costumes sancionados pela longa sequência dos tempos e pela natureza. Que é a sabedoria? Que dom mais belo oferecem os deuses aos mortais do que impor a mão vitoriosa sobre a cabeça dos inimigos?" (Terceiro Estásimo)


Eurípides, As Bacantes, trad. Fernando Melro, 2ª ed., Lisboa: Ed. Inquérito, pp. 60-61.

Sunday, July 29, 2007

CONHECER O ABISMO


"É necessário conhecer seu próprio abismo
E polir sempre o candelabro que o esclarece.

Tudo no universo marcha, e marcha para esperar:
Nossa existência é uma vasta expectação
Onde se tocam o princípio e o fim.
A terra terá que ser retalhada entre todos
E restituída em tempo à sua antiga harmonia.
tudo marcha para a arquitectura perfeita:
A aurora é colectiva."


Murilo Mendes, Poesia, S. Paulo: Livraria Agir Editora, 1983, p. 84

Sunday, July 22, 2007

NOVAS REFLEXÕES SOBRE O INFINITO





"Infinito, homem, era o tempo antes de vires à luz do dia
e infinito o que te espera no Hades.
Que porção de vida sobra? Tanto como o ponto dum ponto
ou algo mais insignificante ainda? A tua vida está encerrada
num curto espaço de tempo. Nada tendo em si mesma
de agradável, é mais triste ainda que a odiosa morte.
(...)"


Leónidas de Tarento, in do mundo grego outro sol - Antologia Palatina e Antologia de Planudes, selec. e trad. Albano Martins, Porto: Ed. Asa, 2002, pp. 56-57.

Thursday, July 19, 2007

DE ESCURIDÃO EM ESCURIDÃO


"Abriste os olhos - vejo a minha escuridão viver.
Vejo-a até ao fundo:
também aí é minha e vive.

Poderá isso transpor? E transpondo acordar?
De quem é a luz que se atrela aos meus passos
para encontrar um barqueiro?"


Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde, selec., trad. e intr. João Barrento e Yvette Centeno, 2ª ed. , Lisboa: Ed. Cotovia,1996 , p. 45.


Sunday, July 15, 2007

CORPO PESANDO NA SERENIDADE

"Cuál és mi verdad? Cuál es mi alimento sin vosotros?
Quién juzgará a quién ha traicionado a la traición?

La pregunta es un ruído inútil en el idioma que sucede a
la juventud.

Mi cuerpo pesa en la serenidad y mi fortaleza está en re-
cordar; en recordar y despreciar la luz que hubo y des-
cendía y mi amistad con los suicidas.

Reconeced mi lentitud y el animal que sangra dulcemen-
te dentro de mi alma.

Vuestra limpieza es inútil. Ilumináis en las ejecuciones y
la locura crece en este resplandor. Magnificáis a vues-
tros enemigos y vuestra imprudencia comunica con
sus designios.

Harías mejor abandonando, deshabitando un tiempo
que se coagula en la dominación.

Qué es la verdade? Quién ha vivido en ella fuera de la do-
minación?

Harías mejor en residir en légamos. You no soy vuestro
maestro pero sí vuestra profundidad a la que quizá no
llegaréis."


Antonio Gamoneda, "Descripción de la mentira", in Antología Poética, Madrid: Alianza Editorial, 2006, pp. 100-101.

Thursday, July 12, 2007

AZUL TEMPORAL SOBRE ESPUMA LILÁS


"De l'éternel Azur la sereine ironie
Accable, belle indolement comme les fleurs,
Le poëte impuissant qui maudit son génie
À travers un désert stérile de Douleurs."

Stéphane Mallarmé, Poésies et autres textes, Paris: Le Livre de Poche, 2005, p.137

Monday, July 9, 2007

ARCANJO DE GRANITO ROLADO DE INFINITO



"L'étoile a pleuré rose au coeur de tes oreilles,
L' infini roulé blanc de ta nuque à tes reins;
La mer a perlé rousse à tes mammes vermeilles
Et l'Homme saigné noir à ton flanc souverain."


(A estrela choveu rosa no coração da tua escuta,
O infinito rolou alvo no teu corpo, a nuca aos rins,
O mar orvalhou ruivo os teus seios de rubro cobre
E o Homem sangrou negro no teu flanco sem fim)


Arthur Rimbaud, O Rapaz Raro - Iluminações e Poemas, trad. Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio d'Agua, 1998, pp. 206-207

Wednesday, July 4, 2007

MEDITAÇÃO JUNTO À LUZ


"Falamos junto à luz. Lá fora a noite
Imóvel brilha sobre o mar parado.
À sombra das palavras o teu rosto
Em mim se inscreve como se durasse"

Sophia de M. Breyner Andresen, Dual, Lisboa: Ed. Caminho, 2004, p. 30.

Sunday, July 1, 2007

QUEM TE AMOU NA BREVE RUÍNA DO MUNDO?

SPIRAL INSANA

"
Estilhaços de quê
esses que trazes nas mãos
impotentes? Quem
te amou na breve ruína
do mundo? São de despedida
os sinais que do vazio se estendem
sobre o vazio. Talvez
se adivinhe o silêncio, a
extrema pureza do abandono.
Nem rosto tens já
para sorrir à morte.

Entretanto bebes muito
nos templos da amargura
olhas sem paixão
o rigor feroz dos abutres
esvoaçando. O que procuras é
a própria canção do desespero,
uma taberna distante do mundo.

nenhum modo que não seja de noite. "


Manuel de Freitas, Todos contentes e eu também, Porto: Campo das Letras, 2000, p. 14

Saturday, June 23, 2007

SONHO ORVALHADO DE VERÃO


"Julguei que se tinha levantado um obelisco místico no meio da praça; e que o obelisco dava uma sombra azul; e que tinham acendido um fogão no quarto húmido; e que tinham dado alta ao doente.

Julguei que nascia o sol à meia noite; e que uma boca muda me falava; e que esfolhavam lírios sobre o meu peito; e que havia uma novena ao pé do Jardim de Aclimação.

Uma boca muda me falou; mas o obelisco, de ténue que era, não deu sombra; e o fogão não aqueceu o quarto húmido; e o doente teve uma recaída.

(...)

E no dia seguinte, em vez dos sacros livros, que de ordinário me deleitam, li Schopenhauer, e achei Artur Schopenhauer setecentas vezes superior a todos os Doutores da Igreja"


Eugénio de Castro, in "Horas", Obras Poéticas de Eugénio de Castro, Tomo I, ed, dirigida por Vera Vouga, Col. Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, nº 85, Porto: Campo das Letras, 2001, pp. 165-166.

Wednesday, June 20, 2007

SUMA E VENAL TRANQUILIDADE


"Fique na Terra a triste humanidade
Nos seus loucos intentos enredada
Visto que essa só é sua vontade
Para Nós seja a paz tão desejada
Seja a suma e venal tranquilidade
Nada requeiro mais de Deus mais nada."


Ângelo de Lima, Poesias Completas, org. Fernando Guimarães, Lisboa: Assírio & Alvim, 1991, p. 42.

Sunday, June 17, 2007

OLHAR DE TRAVÉS

"Enquanto o homem aristocrático vive numa atitude de confiança e de franqueza para consigo próprio (a palavra grega «de nascimento nobre» sublinha a «fraqueza» mas também por certo o matiz da «ingenuidade»), pelo contrário, o homem de ressentimento não é franco, nem ingénuo, nem tão-pouco frontal e sério perante si mesmo. A alma deste homem olha de través, o seu espírito gosta de recantos, de caminhos tortuosos e de portas das traseiras, encanta-se com tudo o que é recôndito, porque esse é o seu mundo, a sua segurança, o seu conforto. É especialista em calar-se, não esquecer, esperar, e em amesquinhar-se ou humilhar-se provisoriamente."

Nietzsche, Para a Genealogia da Moral, trad. José M. Justo, vol. VI, col. Obras Escolhidas de Friedrich Nietzsche, Lisboa:Relógio D'Água, 2000, pág. 38.

Sunday, June 10, 2007

ENCONTRAR MORTALMENTE A LUZ DA VIDA

LVII

"Imortais mortais, mortais imortais,
vivendo a morte destes, morrendo a vida daqueles"


Heraclito, Fragmentos Contextualizados, trad. Alexandre Costa. Lisboa: IN-CM, 2005, p. 148.

Saturday, June 9, 2007

RECORDANDO A MAGNÓLIA NUM JARDIM FECHADO



EXPLICAÇÃO DA AUSÊNCIA

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer - fosse abertura -
E a saudade é tudo ser igual.


Daniel Faria, Explicação das Árvores e de Outros Animais.

Tuesday, June 5, 2007

CELEBRANDO A MAGNÓLIA-MONTAGEM EM TETRAEDRO DE LUZ, REMATANDO COM VERSOS DE ALBANO MARTINS


I.

Mulheres pela noite dentro levando nas patas
grandiosos lenços brancos.
Correndo com lenços muito vivos nas patas
pela noite dentro.
Lenços vivos com suas patas abertas
como magnólias
correndo, lembradas, patas pela noite
viva. Levando, lembrando correndo.

II.

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
e antes magnólias amo
que a glória e a virtude.

Logo que a vida não me canse, deixo
que a vida por mim passe
logo que eu fique o mesmo.

III.

7
Magoa ver a magnólia cair. Acredita
O relâmpago vem
Sobre ela. A tempestade.
As plantas são tão frágeis como as cabanas dos homens.
Somos muito frágeis os dois neste poema
Com o relâmpago, a cabana, com a magnólia aos ombros,
Sem nenhum terreno pulmonar intacto

IV.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim


OUTRA VEZ A SURDA
RESPIRAÇÃO DOS LÁBIOS,
OS PULMÕES
DA TERRA QUENTE. AQUI,
A MAGNÓLIA DOS SÍMBOLOS,
A FLORIDA,
INCANDESCENTE METÁFORA.

(I-Herberto Helder, II-Ricardo Reis, III- Daniel Faria, IV- Luiza Neto Jorge; remate de Albano Martins)