Sunday, July 31, 2016

CINTILA



"Riso etéreo
Que cintila
Na universal escuridão tranquila
Do mistério."


Teixeira de Pascoaes, Versos Pobres, in Obras Completas de Teixeira de Pascoaes, vol. VI, Amadora: Livraria Bertrand, s.d. p. 99. 

Friday, July 29, 2016

SABOR



"O sabor das nascentes embriaga a pupila
em consonância com o espaço ritmado
pelo perfume do tempo lentamente suave."


António Ramos Rosa, A Imagem e o Desejo, Lisboa: Universitária Editora, 1998, p. 54. 

Thursday, July 28, 2016

MATERIAL



" - Sabe - disse eu semivirado para Saint-Loup, para não parecer que me isolava, assim como para o seu camarada, e para o fazer participar na conversa -, é que a influência que se atribui ao meio é sobretudo verdadeira no meio intelectual. Cada um é o homem da sua ideia: há muito menos ideias que homens, e assim todos os homens da mesma ideia são semelhantes. Como uma ideia nada tem de material, os homens que só materialmente rodeiam o homem de uma ideia em nada a modificam."


 Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - O Lado de Guermantes, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Círculo de Leitores, 2003, p.  105. 

Wednesday, July 27, 2016

IMENSIDADE



"À força de sentir a imensidade
Deste horizonte em círculo infinito, 
Converti-me na estátua da saudade
Ou num bloco de granito."



Teixeira de Pascoaes, Versos Pobres, in Obras Completas de Teixeira de Pascoaes, vol. VI, Amadora: Livraria Bertrand, s.d. p. 72. 

Tuesday, July 26, 2016

IMÓBIL



"E assim, esse surdo total, como a perda de um dos sentidos acrescenta ao mundo tanta beleza como o faria a sua aquisição, é deliciado que se passeia agora numa Terra quase edénica onde o som ainda não foi criado. As cascatas mais altas limitam-se a desenrolar para os seus olhos a sua toalha de cristal, mais calmas que o mar imóvel, puras como cataratas do Paraíso. Como o ruído era para ele, antes da surdez, a forma perceptível que a causa de um movimento revestia, os objectos movidos sem ruído parecem sê-lo sem causa; despojados de toda a qualidade sonora, mostram uma actividade espontânea, parecem viver; movem-se, imobilizam-se, pegam fogo sozinhos. Sozinhos levantam voo como os monstros alados da Pré-História."

 Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - O Lado de Guermantes, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Círculo de Leitores, 2003, p. 77. 

Monday, July 25, 2016

ADVERTE



"Mas os deuses não mandam sinais e não advertem os que votaram antecipadamente a uma sorte fatal. Deixam-nos seguir o seu caminho, sem receios nem pressentimentos, e o destino, do fundo deles próprios, corre ao seu encontro!"

Stefan Zweig, Maria Antonieta, trad. Alice Ogando, 13ª ed., Porto: Livraria Civilização, 1977, p. 30. 

Sunday, July 24, 2016

DESEJO




"Tudo o que existe existe apenas
Como desejo de existir. 
E este desejo
É todo o nosso ser...
Não mais do que um esboço, 
Ou fumo ou névoa...
E em si contém 
O Céu e a Terra, 
Que os nossos pés
Pousam no chão. 
E no ar andamos
Com a cabeça. 
E o nosso pensamento
Deixa atrás dele as últimas estrelas..."


Teixeira de Pascoaes, Últimos Versos, in Obras Completas de Teixeira de Pascoaes, vol. VI, Amadora: Livraria Bertrand, s.d. p. 158. 

Saturday, July 23, 2016

BALBEC



"De modo que, ao passo que até então, antes dessas visitas a casa de Elstir, antes de ter visto uma marinha dele onde uma jovem mulher vestida de bege ou de linho, num iate que arvorava a bandeira americana, introduziu o «duplo» espiritual de um vestido de linho branco e de uma bandeira na minha imaginação, que logo alimentou um desejo insaciável de ver imediatamente vestidos de linho branco e bandeiras junto ao mar, como se tal nunca me tivesse acontecido, ao passo que até então sempre diante do mar me havia esforçado por expulsar do meu campo de visão tanto os banhistas do primeiro plano como os iates de velas excessivamente brancas como um trajo de praia, tudo o que me impedisse de me persuadir de que contemplava a onda imemorial, essa que desenrolava já a sua mesma vida misteriosa antes do aparecimento da espécie humana, e até dos dias radiosos que me pareciam revestir do aspecto banal do universal Verão aquela costa de brumas e tempestades, assinalar nela um simples tempo de paragem, o equivalente daquilo que em música se chama um compasso para nada - pois era agora o mau tempo que me parecia tornar-se um acidente funesto, que não podia já ter lugar no mundo da beleza: desejava vivamente ir encontrar na realidade o que tanto me exaltava, e esperava que o tempo fosse bastante favorável para ver do alto da falésia as mesmas sombras azuis do quadro de Elstir."

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - À Sombra das Raparigas em Flor, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Relógio D'Água, 2016, p. 414. 

Friday, July 22, 2016

SEM SELA



"um cavalo selvagem é uma fonte inesgotável
de distância

patas robustas para as escarpas
dorso encorpado de precipício a bater
crina impregnada de ilusão

apostava até à última gota
o sangue neste
não fosse a moldura
manca"


Renato Filipe Cardoso, canibalírico, Porto: Texto Sentido, 2015, p. 15. 

Thursday, July 21, 2016

ESCOLHOS



"Se é verdade que o mar foi outrora o nosso meio vital onde tenhamos que remergulhar o nosso sangue para recuperar as nossas forças, o mesmo se passa com o esquecimento, com o nada mental; parecemos então ausentes do tempo durante algumas horas; mas as forças que entretanto se armazenaram sem ser gastas medem-no pela sua quantidade com tanta exactidão como os pesos do relógio ou os desmoronados montículos da ampulheta."

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - À Sombra das Raparigas em Flor, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Relógio D'Água, 2016, p. 346. 

Wednesday, July 20, 2016

ANULAR


"Debrucei-me nos fundos precipícios
que há na terra e no céu, 
e seu fim avistei, com os olhos
ou com o pensamento. 

Mas ai!, de um coração cheguei ao abismo
e inclinei-me um momento, 
e minha alma e meus olhos se turvaram:
tão fundo era e tão negro!"


Gustavo Adolfo Bécquer, Rimas, trad. José Bento, Lisboa: Relógio d'Água, 1994, p. 111. 

Tuesday, July 19, 2016

DOMÍNIO


"Mas em qualquer domínio o nosso tempo tem a mania de apenas querer mostrar as coisas com o que as rodeia na realidade, assim suprimindo o essencial, o ato de espírito, que da realidade os isolou."

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - À Sombra das Raparigas em Flor, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Relógio D'Água, 2016, p. 193. 

Monday, July 18, 2016

FLORESCE


"No céu é que floresce a rosa, que tem na terra os espinhos. O que é o sonho senão a visão dum mundo desconhecido? E este sonho da vida eterna, que tem sempre acalentado a humanidade, o que é, o que pode ser, senão a visão do Paraíso?"

Pinheiro Chagas, A Morgadinha de Valflor, 12ª ed., Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934, p. 194. 

Sunday, July 17, 2016

ENRAIZADO



"As paisagens originais são os espaços sentimentais pelos quais estamos ligados ao mundo, os istmos refeitos da memória: mas a escrita também aspira à liberdade de não ser de lado nenhum, e de ser esquecida. Nenhuma obra digna deste nome se deixa encerrar num determinismo de território. Ser «enraizado», deixemos isso para as beterrabas."


Olivier Rolin, Paisagens Originais, trad. Jorge Fallorca, Porto: Asa, 2000, p. 124. 

Friday, July 15, 2016

ANIVERSÁRIO




"Lembram botões eléctricos teus olhos.
Chego os dedos a eles e carrego. 
Acendem-se de imagens. Fico cego...
Sinto que as coisas morrem nos teus olhos. 

Há entre mim e a Noite um reposteiro. 
Pressinto-o no meu vê-lo. Ânsia perdida...
Eu próprio às vezes julgo ser ponteiro
No relógio que marca a minha Vida. 

E vejo a minha infância ser de seda. 
Ando com ela ao colo pla alameda. 
É um eco de mim em idas naves...

Cai-me na cor do Outrora cinza preta. 
E sinto e meu Passado na gaveta
Da cómoda a que alguém perdeu as chaves."


Alfredo Guisado, Tempo de Orfeu, Coimbra: Angelus Novus, 2003. p. 151. 

Thursday, July 14, 2016

FLORA



"Sabíamos que ela própria pintava aguarelas de flores, e a minha avó, que ouvira gabar-lhas, falou-lhe delas. A senhora de Villeparisis mudou de conversa por modéstia, mas sem mostrar mais admiração ou prazer que uma artista suficientemente conhecida a quem as felicitações nada trazem de novo. Limitou-se a dizer que era um passatempo encantador, porque, se as flores nascidas do pincel não eram famosas, pelo menos pintá-las fazia-nos viver em contacto com as flores naturais, de cuja beleza, sobretudo quando somos obrigados a vê-las mais de perto para as imitarmos, nunca nos cansamos."


Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - À Sombra das Raparigas em Flor, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Relógio D'Água, 2016, p. 250. 

Wednesday, July 13, 2016

INOPINADO



"Queixava-se de que retorciam e o incomodavam os jornais humorísticos e os anúncios de coca-cola pregados na parede. Estalava-lhe a cabeça um ruído semelhante ao das chicotadas. Certo raminho de malmequeres, que Joey lhe trouxera, inopinadamente se transformara num bando de canários, que cantavam ao desafio voando por todo o quarto."

Truman Capote, Outras Terras, Outras Gentes, trad. Cabral do Nascimento, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 124. 

Tuesday, July 12, 2016

LUGAR



"Que mortal haverá que não sinta respeito e temor, ao ouvir citar a lei que o destino me fixou e os deuses me deram para inevitável cumprimento? Mantenho o privilégio antigo. não fui destituída de honras, embora o meu lugar seja sob a terra, no meio das trevas aonde não chega o sol."


Ésquilo, Euménides, 390-396, trad. Manuel de Oliveira Pulquério, Lisboa: Edições 70, 1991, p. 203. 

Monday, July 11, 2016

ENTRETIEN



"Contra a chaminé do candeeiro achatavam as asas borboletas ansiosas. Em lúgubre monotonia, a chuva pingava no tecto através de uma fenda, caindo num balde com aflitiva irregularidade. 
- Eis o que nos acontece - observou Randolph - quando nos entretemos com a mais pequena das caixinhas chinesas."


Truman Capote, Outras Terras, Outras Gentes, trad. Cabral do Nascimento, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 65. 

Sunday, July 10, 2016

TYCHE



"Tudo isto é um jogo. Mas os assaltos da inconstante Fortuna
são semelhantes a estes dados que a razão não domina. 
E reconhecerás a imagem da vida humana e suas vicissitudes, 
ora ultrapassando-as, ora sendo vencido por elas. 
Louvemos, pois, aquele que, na vida como no jogo, 
encontra a justa medida na alegria e no desgosto."


Agátias, o Escolástico, in  do mundo grego outro sol. Antologia Palatina e Antologia de Planudes, selecç. trad. Albano Martins. Porto: Edições Asa, 2002, p. 71. 

Saturday, July 9, 2016

A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA


"A memória não é capaz de nos fornecer de imediato a recordação destas impressões múltiplas. Mas tal recordação forma-se nela e pouco e pouco, e relativamente às obras que ouvimos duas ou três vezes somos como o estudante que releu várias vezes antes de adormecer uma lição que julgava não saber e que a recita de cor na manhã seguinte."


Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - À Sombra das Raparigas em Flor, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Relógio D'Água, 2016, p. 94. 

Thursday, July 7, 2016

RELEVO



"Luís - Eu lhe digo: o sol da história tem os seus perigos; é implacável. Se ilumina os grandes feitos, também põe em relevo as máculas: e parece-me que a fidalguia dispensaria às vezes tanta luz."


Pinheiro Chagas, A Morgadinha de Valflor, 12ª ed., Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934, p. 49. 

Wednesday, July 6, 2016

RELICÁRIO



"Nessas alturas, as tranças de Gilberte roçavam-me as faces. Pareciam-me, na delicadeza da sua erva ao mesmo tempo natural e sobrenatural, e no poder da sua folhagem artística, uma obra única para a qual se tinha utilizado a própria relva do Paraíso. Mesmo a um pequeno fragmento delas, que herbário celestial lhe não teria eu dado como relicário?"


Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - À Sombra das Raparigas em Flor, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Relógio D'Água, 2016, p. 71. 

Tuesday, July 5, 2016

MALANDRO



"«Dos homens pode esperar-se tudo, são uns malandros», e, impressionada pela profundidade desta máxima pessimista, apropriara-se dela e repetia-a a cada passo com um ar desanimado que parecia dizer: «No fim de contas, nada é impossível, é essa a minha sina.» E por consequência desaparecera toda a virtude da máxima optimista que até então guiara Odette na vida: «Podemos fazer tudo aos homens que nos amam, eles são tão idiotas!», e que se exprimia no rosto pela mesma piscadela de olhos que poderia acompanhar palavras como estas: «Não tenham medo, ele não vai acabar nada.»"

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - À Sombra das Raparigas em Flor, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Relógio D'Água, 2016, p. 41. 

Monday, July 4, 2016

KOSMOS



"O ordenamento duma cidade está na coragem dos seus cidadãos, o dum corpo na sua beleza, o duma alma na sua sabedoria, o duma ação na sua excelência e o dum discurso na sua verdade."

Górgias, "Elogio de Helena", 1., in Testemunhos e Fragmentos, trad. Manuel Barbosa e Inês Ornellas e Castro, Lisboa: Edições Colibri, 1993, p. 41. 

Sunday, July 3, 2016

ALTO


"Aprazia-lhe observar o mundo do alto: cada coisa, vista lá de cima, perpendicularmente, adquire as suas verdadeiras proporções: rios navegáveis, pontilhões, estradas, homens que vão, homens que voltam, quadrúpedes impelidos, carros afastados em silêncio e depois, à medida que o avião ganha altura ganham razão os metafísicos: aparências, aparências; até essas jazidas de carbonato de cálcio que são os cemitérios, vistos lá de cima, se apresentam como pequenos rectângulos que já não metem medo. Uma companheira de voo sentada a seu lado tocou-lhe no ombro e, apontando com o indicador a terra, lá em baixo, com os dedos formou um dois, um cinco e dois zeros."

Pitigrilli, Os Vegetarianos do Amor, trad. Pires Carneiro, Porto: Brasília Editora, 1974, p. 94. 

Saturday, July 2, 2016

IMPRESSÃO



"Disseram-me também que ofendo a Deus. Se alguém quisesse dar-me a entender que Deus foi grande porque criou os ovos das galinhas com o mesmo diâmetro dos copos para os servir quentes, ou ao fazer as unhas dos pés para dar dinheiro a ganhar às aparadeiras de malhas, ou ao privar de voz as lagostas para que não façam barulho quando a cozinheira as mergulha na água quente, e se eu protestasse contra estes erros lógicos, estes contra-sensos morais, acusar-me-íeis de irreverência para com Deus. Mas eu não me revolto contra Deus. Revolto-me contra os imbecis."


Pitigrilli, Os Vegetarianos do Amor, trad. Pires Carneiro, Porto: Brasília Editora, 1974, p. 134. 

Friday, July 1, 2016

FATO ESCURO



"Somos o fato escuro que vestimos. 
Somos a casa imóvel que habitamos. 
Os montes que vimos níveos cimos
E o jardim onde vemos verdes ramos. 
Somos o nome que nos dão, herdado
Ou falso, igual à tela que vendemos, 
Somos o barco, a proa, o mastro, os remos, 
As luzes da ribalta e do mercado. 
Escravos de hoje, pálidos, vencidos!
A sorte grande, ai Deus! como a ganhar?
Temos a cor mutável dos vestidos, 
O olhar do vento e o hálito do mar...
Ó beira rio estreita das arcadas
Que nos promete o que depois recusa!
Somos a rua proibida, escusa
E o contacto das mãos, quando ignoradas...
Ao ler no espelho o manto que era seu
Mas cujo arminho lhe assentava mal
(Retrato mudo, diz-me: - Quem sou eu?)
A sua antiga, condição real...
Somos baptismo, enterro, casamento
E o que pudermos amanhã roubar!
E antes de força, amor ou pensamento
Somos o vento
E o hálito do mar..."


Pedro Homem de Mello, Bodas Vermelhas, 3ª ed., Porto: Porto Editora, 1979, pp. 102-103.