Saturday, September 30, 2023

EXPOSIÇÃO


 "Ainda que fosse possível determinar o valor de certo dote em determinado momento, esses valores mudarão; e dentro de um século, é muito possível que se tenham alterado completamente. «- Daqui a cem anos, as mulheres terão deixado de ser o sexo fraco», pensei, no momento em que chegava à porta de casa. Participarão, logicamente, em todas as actividades e exercícios que outrora lhes foram negados. A ama carregará o carvão. A lojista andará de carro. Todas as noções baseadas nos factos, observados quando as mulheres eram o sexo fraco, terão desaparecido - como, por exemplo (nesta altura um destacamento de soldados marchava pela rua), o de que as mulheres dos pastores de igreja e dos jardineiros vivem mais tempo. Eliminem essa protecção, exponham-nas aos mesmos exercícios e actividades, façam-nas soldados, marinheiros e motoristas, estivadores, e as mulheres não morrerão tão jovens e tão rapidamente, de molde a que os homens possam dizer: - « - Hoje vi uma mulher», como era hábito dizerem: «- Vi um avião». Tudo pode acontecer, quando as mulheres deixarem de ser «protegidas», concluí, abrindo a porta. «Mas afinal o que tem tudo isto a ver com o assunto do meu ensaio, As Mulheres e a Ficção?», interroguei-me, entrando em casa."


Virginia Woolf, Um quarto que seja seu, trad. Maria Isabel Barreno, 2.ª ed., Lisboa: Vega, 1985, p. 55. 

Friday, September 29, 2023

MIGUEL

 



"O mundo, ó luz, te absorve e te devora,
Mas revives no mundo mais intensa,
Mais próxima de Deus a cada hora,
Nas vidas todas desta vida imensa,
Vidas sem fim, almas sem fim,
Que o segredo do amor junta e condensa,
Por meus olhos magnéticos, em mim!"


Guerra Junqueiro, "Oração à Luz", in Obras (Poesia), 2.ª ed., Porto: Lello & Irmão - Editores, 1974, p. 945.

Thursday, September 28, 2023

FUGACIDADE

 



"Assim como sem nada que as antecipe,
elas aí estão, seja noite seja dia,
não será fácil afirmar
que têm nascimento.
Assim como sem se aperceberem desaparecem,
não fazem ideia do que seja morrer.
Em matéria de fugacidade
não há quem lhes chegue."


Hans Magnus Enzensberger, 66 poemas, trad. Alberto Pimenta, s. l.: Edições do Saguão, 2019, p. 171.

Wednesday, September 27, 2023

A MEMÓRIA EXPLORA O PASSADO

 


"A voz do meu amor veio no vento como uma grande
borboleta perdida e o seu rosto ficou a suportar a luz
da manhã na ombreira da porta

Veio com a sua cor íntima, súbita alvéola caucionando
o resgate, trazer até mim as mãos com que pretendo
amassar os elementos, amadurecendo o trigo para as
reservas do assalto

A vontade da luta começou a levedar como se os
ponteiros do relógio já tivessem atingido a hora

Tentáculos misteriosos incendiaram os archotes da
cólera e laminaram o frio coração das carpideiras.

O momento foi único como a contorção dos corpos
sob a violenta queimadura do orgasmo."


Egito Gonçalves, O Amor Desagua em Delta, Porto: Editorial Inova, 1971, p. 88.

Tuesday, September 26, 2023

RUÍNAS

 



"E é triste ver assim ir desfolhando,
Vê-las levadas na amplidão do ar, 
As ilusões que andámos levantando
Sobre o peito das mães, o eterno altar, 

Nem sabe a gente já como, nem quando, 
Há-de a nossa alma um dia descansar!
Que as almas vão perdidas, vão boiando
Nesta corrente eléctrica do mar!...

Ó ciência, minha amante, ó sonho belo!
És fria como a folha dum cutelo...
Nunca o teu lábio conheceu piedade!

Mas caia embora o velho paraíso, 
Caia a fé, caia Deus! sendo preciso, 
Em nome do Direito e da Verdade."


Guerra Junqueiro, Obras (Poesia), 2.ª ed., Porto: Lello & Irmão - Editores, 1974, p. 769. 

Monday, September 25, 2023

FIRST THINGS FIRST

 



"Em princípio não temos grandes objecções
contra purgatório, reencarnação, paraíso.
Se tem de ser, faz favor!
Para já, no entanto,
temos outras prioridades.

O caixote do gato, o saldo da conta
e o insuportável estado do mundo
não podem deixar de nos preocupar,
para não falar da internet
e das notícias sobre o nível da água.

Às vezes nem sabemos já
onde temos a cabeça
com tanto problema.
Está sempre a morrer gente,
e a cada momento nasce mais alguém.

Então não dá para reflectir
sobre questões concernentes
à nossa própria imortalidade.
Primeiro uma olhadela
à agenda,

depois logo se vê."


Hans Magnus Enzensberger, 66 poemas, trad. Alberto Pimenta, s. l.: Edições do Saguão, 2019, p. 147.

Sunday, September 24, 2023

PODERIO

 


"Sempre gostara de paisagens solitárias: grandes praias desertas sem outras pegadas que não fossem as suas - que poderio! - os longos horizontes da planície, as cidades àquela hora mansa, e levemente angustiada também, em que as pessoas dormem ou chamam laboriosamente por um sono que se lhes recusa. Agora, porém, esses velhos quadros entrevistos pareciam-lhe grosseiras, terrestres imitações daquela solidão impoluta, tão grande e tão perfeita, que estava a atravessar. Para além da dupla vidraça tudo era possível, até a branca, suave mão de um Deus protector a avançar para ele. Até um pouco de ectoplasma vagabundo. Até o anjo da morte, até esse. Coisas vulgares, prováveis, não!"


Maria Judite de Carvalho, "As Palavras Poupadas", in Obras Completas, vol. I, Lisboa: Minotauro, 2021, p. 233. 

Saturday, September 23, 2023

TEMPO MADURO (OUTONO)

 


"O tempo é imaturo mas tudo acontece
Vertiginosamente como se fosse o fim.
Do beijo no seio à posse completa
Vai apenas o tempo de quebrar a relva.

Abre-se uma porta no teu sangue rubro
Onde se tornam concretos os enigmas...
As árvores despenteiam-se, dão sombra
E o espasmo constrói o teu futuro."


Egito Gonçalves, O Amor Desagua em Delta, Porto: Editorial Inova, 1971, p. 18. 

Friday, September 22, 2023

RETOUR À L' EXPÉDITEUR

            


"Muito obrigado pelas nuvens.
Muito obrigado pelo cravo bem temperado
e, por que não, pelas botas de Inverno forradas.
Muito obrigado pelo meu cérebro singular
e pelos outros órgãos todos que não estão à vista,
pelo ar, e naturalmente pelo vinho de Bordéus.
Muito agradecido por não se me acabar o isqueiro,
e os agudos anseios, e a piedade, a incessante piedade.
Muito obrigado pelas quatro estações,
pelo algarismo e e pela cafeína,
e claro pelos morangos no prato
pintado por Chardin, e também pelo sono,
pelo sono muito especialmente,
e, não vá eu esquecer-me,
igualmente pelo início e pelo fim
e pelos minutos de permeio,
um obrigado muito encarecido,
e por que não também pelas toupeiras lá fora no jardim."




Hans Magnus Enzensberger, 66 poemas, trad. Alberto Pimenta, s. l.: Edições do Saguão, 2019, p. 117.

Wednesday, September 20, 2023

ACORDAR

 


"Acordar velha seria o ideal. Não um pouco velha com alguns cabelos brancos e rugas a ter que disfarçar com cremes apropriados e fonds de teint muito espessos. Não. O que ela gostaria era de acordar totalmente velha, velha como a avó Cândida, velha sem remissão. Que boa coisa poder finalmente ser ela, natural mesmo por pouco tempo, sem mentira. Não se fazer de velha como dantes nem mais nova como lhe acontecia agora, nem mostrar-se mais inteligente nem mais estúpida conforme falava com este ou com aquele, nem fingir que gostava nem que deixara de gostar."


Maria Judite de Carvalho, "Tanta Gente, Mariana", in Obras Completas, vol. I, Lisboa: Minotauro, 2021, p. 65. 

Monday, September 18, 2023

A FÉ NA FÉ

 



"Não fosse a fé na fé
e seria apenas um
na procissão dos mortos vivos
Mas sempre formei o discurso
à luz de uma candeia
Por isso também nunca cheguei
à esfera onde giram as estrelas
Mas a modesta candeia
como guia
sendo trémula a luz
alumia."


Carlos Seixo, Fim de Tarde e Outros Devaneios, Barcelona: autografía editorial, 2023, p. 54.

Sunday, September 17, 2023

A ROTAÇÃO DAS NUVENS

 



"Assumo a condição
de construtor de pontes
Sentado sobre a aresta da fronteira
a minha pátria
é fluida como a rotação das nuvens
e da minha toca apenas sei
a toca onde não sei estar
Sinto-me vassoura que voa
sem bruxa
que lhe puxe as crinas
com um pé nas raízes da sequóia
e um olho a piscar para a última estrela
da Ursa Menor
e o meu lugar é sempre
o resto da divisão por dois."



Carlos Seixo, Fim de Tarde e Outros Devaneios, Barcelona: autografía editorial, 2023, p. 14.

Saturday, September 16, 2023

PROVEITOSAMENTE

 


"Há tantas coisas em que nunca pensámos por falta de tempo! Na esperança, por exemplo. Quem vai perder cinco ou dez minutos a pensar na esperança, quando pode usá-los muito mais proveitosamente a ler um romance ou a falar ao telefone com uma amiga, a ir ao cinema ou a redigir ofícios no emprego? Pensar na esperança, que coisa imbecil! Até dá vontade de rir. Na esperança... Sempre há gente... E ela metida como areia nas pregas e nas bainhas da alma. Passam anos, passam vidas, aí vem o último dia e a última hora e o último minuto e ela então aparece a tornar inesperado aquilo por que esperávamos, a fazer o que já era amargo ainda mais amargo. A tornar mais difíceis as coisas."


Maria Judite de Carvalho, "Tanta Gente, Mariana", in Obras Completas, vol. I, Lisboa: Minotauro, 2021, p. 14. 

Friday, September 15, 2023

DORES

 



"E que dizer de um rosto tão intenso
que não há retrato que o fixe?
Dele emana, maior que ele mesmo,
a aura em que se oculta
sem deixar à paisagem que o vê
chave que lhe desvenda o mistério."


Flor Campino, Reflexão dos Dias, Porto: Afrontamento, 2022, p. 65.

Thursday, September 14, 2023

FORTUNA



"Quando a manhã rompeu, toda a cidade estava reunida em volta de minha casa. Descrever a surpresa, o espanto geral, os choros, os gritos e os gemidos com que me torturavam seria coisa difícil, se não mesmo impossível. Os clérigos, sobretudo, e os meus discípulos, particularmente, martirizavam-me com as suas lamentações e os seus insuportáveis soluços. A sua compaixão era para mim mais cruel que o meu ferimento. Sofria mais com a minha confusão do que com a dor. Tristes imagens me vinham ao espírito: com aquela glória que desfrutava havia ainda bem pouco fora com tanta facilidade, num momento, derrubada, destruída!"

Pedro Abelardo, "Carta a um amigo, ou narrativa das minhas desventuras", in Cartas de Abelardo e Heloísa, trad. Franco de Sousa, Lisboa: Editorial Estúdios Cor, s. d., p. 34. 

Wednesday, September 13, 2023

CENTENÁRIO

 



"No perdido jardim que a Esfinge guarda
Onde unidos o trevo e o azul risonho
Estão numa perfeição que me acobarda
Fita-me o anjo que desperta o sonho.

Combinação de lua e anjo da guarda,
A seus estranhos ritos me disponho
E no oriente de um porvir que tarda,
Sei-me rainha e toda a alma ponho.

O meu silêncio de cristalinas falas
É a voz do meu povo, aqui proscrito,
Que em entrevistos céus me quer e aguarda.

Vou por bosques do sonho abrindo alas
E ao fim alcanço-me onde raia o mito
Do perdido jardim que a Esfinge guarda."


Natália Correia, Antologia Poética, org. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 268.

Monday, September 11, 2023

DE PEDRA

 



"Fechada na pedra de uma estátua
sou a voz à espera da palavra
que me leve à fonte onde
alvorada e raparigas se encontram.
Livre cantarei e junto delas serei
o mensageiro do amor e, acaso
chorem, bálsamo para a sua dor.
Às crianças levarei o trino das letras
primeiras. E tudo o que disser, o direi
pela boca de estátua com a palavra
viva a aquecer-lhe o coração de pedra."


Flor Campino, Reflexão dos Dias, Porto: Afrontamento, 2022, p. 50.

Sunday, September 10, 2023

MEDITAÇÃO

 



"Medita-se à janela a paisagem
como ela a si mesmo se medita.
Se pendor houver para a melancolia
remove-a o impacto subtil
do detalhe. Mas só da aliança
do amor e reflexão serena
se alcança o ponto exacto de onde, 
tão concreta e pura, nos reenvie
à metáfora que nos defina o dia."


Flor Campino, Reflexão dos Dias, Porto: Afrontamento, 2022, p. 30. 

Saturday, September 9, 2023

MESA

 



"a trovoada de verão
leva de cima da mesa
todos os papéis brancos"


Masaoka Shiki, Aves dormindo enquanto flutuam [haikus], versão de Joaquim M. Palma, Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 87.

Friday, September 8, 2023

MORADA

 



"Saúda a hora, esse fugidio ar dos minutos,
como quem, convertido à fonética do silêncio, 
soçobra na linguagem autista do poema.
Os pulmões expiram para longe o hálito 
dos anos e a memória alastra pelo papel
como uma assinatura. Este continente, 

lugar imposto no gráfico da tua vida, fixa-o, 
preste a erguer-se no ar como morada de exílio,
na lenda que é já a visão da tua íris estriada.
Com o nível do sangue a latejar na garganta
escreve, sob a luz dos revérberos, a despedida
às cerimónias crepusculares do velho mundo."


Paulo Teixeira, "Inventário e Despedida", in O Último Poeta Romano, Lisboa: Imprensa Nacional, 2020, p. 125. 

HIERÁTICO

 



"Privado de carne que tanto prazer lhe dava,
não mais assistirá a essa redução do homem

ao osso que lhe servia de pasto às larvas
e era nele o que mais se parecia com a pedra -

a estátua onde gostaria de ficar, hierático
e sentado, olhando de frente a multidão."



Paulo Teixeira, "O anel de Berlim", in O Último Poeta Romano, Lisboa: Imprensa Nacional, 2020, p. 546.

Tuesday, September 5, 2023

SALTO

 


"Ao contrário do acto linguístico, a problemática do acto icónico consiste em individuar a força que permite à imagem, na contemplação ou no toque, saltar de um estado de latência para a eficácia externa no âmbito do sentir, do pensar e do agir. Nestes termos, há que entender por acto icónico um efeito no plano do sentir, do pensamento e da acção, que dinama da força da imagem e da interacção com quem a olha, toca e também escuta."


Horst Bredekamp, Teoria do Acto Icónico, trad. Artur Morão, Lisboa: KKYN, 2015, p. 34. 

Monday, September 4, 2023

UNIÃO

 


"Enfim, ficámos primeiro unidos pelo mesmo tecto, depois pelo coração. Com o pretexto de estudar, inteiramente nos entregávamos ao amor. As lições ofereciam as oportunidades que o amor desejava. Os livros estavam abertos, mas ouvia-se mais palavras de amor que lições de filosofia, mais beijos que explicações, as minhas mãos dirigiam-se mais frequentemente para o seu seio que para os nossos livros. O amor reflectia-se muito mais nos nossos olhos do que a leitura a encaminhá-los para os textos. Para melhor afastar as suspeitas, eu ia ao ponto de lhe bater, pancadas dadas por amor, não pela cólera, pela ternura, não pelo ódio, e mais suaves que todos os bálsamos. Que mais poderei dizer? No nosso ardor, atravessámos todas as fases do amor. Tudo o que a paixão pode imaginar de requintado, o esgotámos. Quanto mais as alegrias eram novas para nós, mais as prolongávamos com delírio; não seria possível sentirmo-nos fatigados."

 

Pedro Abelardo, "Carta a um amigo, ou narrativa das minhas desventuras", in Cartas de Abelardo e Heloísa, trad. Franco de Sousa, Lisboa: Editorial Estúdios Cor, s. d., p. 25. 

Saturday, September 2, 2023

DÉCIMO QUINTO ANO

 




"Esperança seria dizer muito,
mas quando por sobre as aldeias destroçadas
aparece um duplo arco-íris,
durante minutos
eles baixam as facas
e ficam a olhar, a ver como
ante os seus olhos raiados,
ele vai lentamente desaparecendo."


Hans Magnus Enzensberger, 66 poemas, trad. Alberto Pimenta, s. l.: Edições do Saguão, 2019, p. 159.

Friday, September 1, 2023

ESCOLHA

 



"Escolhe entre os erros
que tens à tua disposição,
mas escolhe certo.
Talvez seja errado
fazer o que está certo
no momento errado,
ou esteja certo
fazer o que é errado
no momento certo?
Um passo ao lado,
impossível de corrigir.
O erro certo,
uma vez desaproveitado,
não é fácil que volte a surgir."


Hans Magnus Enzensberger, 66 poemas, trad. Alberto Pimenta, s. l.: Edições do Saguão, 2019, p. 137.