Saturday, August 31, 2019

CONTRASTES




"A luz da lâmpada aumentava o brilho dos olhos azuis-cinzentos de Anne e prolongava-lhe a sombra das pestanas pintadas no escuro, dando-lhe uma expressão de misteriosa tristeza. 
- São os contrastes que tornam as pessoas interessantes. Gosto de pessoas inconsequentes - declarou ela."


Patricia Highsmith, O Desconhecido do Norte Expresso, trad. Elisa Lopes Ribeiro, Lisboa: Livros do Brasil, sd., pp. 80-81. 

Friday, August 30, 2019

A SAGRADA FACE




"A dentadura encravou-se! Rezai,
prometei abstinência por um ano
para quem a prótese malfeita se despegue da boca.
Ó Deus, como éreis bom, 
rosas, dentes postiços, 
touceiras de coqueirinho, 
a profusão dos milagres. 
Casimiro de Abreu, que não era santo, 
mas que estava nos livros, 
também ele dizia, como Jó, 
como meu pai e minha mãe diziam:
«um Ser que nós não vemos
é maior que o mar que nós tememos...»
Que faço agora que Vos descubro em silêncio, 
mas, dentro de mim, em nossos ossos, 
vertiginosa doçura?
Os dentistas fazem as próteses, não Vós, 
a terra é que gera as rosas. 
Desde a juventude pedi, quero ver Teus Rosto, 
mostra-me a Tua Face. 
Então é este o esplendor, 
este deserto ardente, claro, 
de tão claro sem caminhos!
Esta doçura nova me empobrece, 
nascer sem pai, sem mãe, 
objeto de um amor em si mesma gerado. 
Flor não é Deus, terra não é, eu não sou. 
Pobre e desvalida entrego-me ao que seja
esta força de perdão e de descanso, 
paciência infinita. 
Quase posso dizer, eu amo."


Adélia Prado, "O Pelicano", in Com Licença Poética - Antologia, org. Abel Barros Baptista, Lisboa: Cotovia, 2003, p. 72. 

Thursday, August 29, 2019

LADO



"Achei que a interpretação de Cristo realçava o lado humano da sua natureza sem, contudo, negar que Ele é Deus, o que para mim era compreensível. O lado divino não compreende inteiramente o que o lado humano tem de fazer, que Ele tem de se transformar a si próprio e finalmente chegar ao sacrifício da cruz - Cristo, o homem, apenas apreende isto aos poucos, gradualmente."

Scorcese por Scorcese, org. David Thompson e Ian Christie, trad. Ana Paula Magalhães, Lisboa: Edições 70, 1991, p. 144. 

Wednesday, August 28, 2019

FUNDO


"«Os fundos», continuou, «devem embelezar. Mais do que isso devem imprimir imortalidade à pessoa retratada, independentemente da duração da sua existência.»"


Rose Tremain, Restauração, trad. Adelaide Cervaens Rodrigues e Teresa Carvalho, Porto: Edições Asa, 1996, p. 44. 

DEFINIÇÕES


"Deus está em toda a parte. Giordano Bruno já o dizia: «Um espírito encontra-se em toas as coisas e não existe corpo, por mais pequeno que seja, que não contenha em si uma parcela da substância divina que o anima». Cada átomo é, pois, provido de alma e assim o éter cósmico. Pode-se, portanto, definir Deus como a soma infinita de todas as forças naturais ou a soma de todas as forças atómicas e de todas as vibrações do éter. Chega-se assim essencialmente ao ponto que o anterior conferente, o qual definiu Deus: a lei suprema do mundo e o representa como a obra do espaço geral. Importa pouco o nome desta matéria tão elevada da crença, bastando a identidade da ideia fundamental, a unidade de Deus e do mundo, do espírito e da natureza. Pelo contrário, o homoteísmo, a ideia antropomórfica de Deus faz descer este conceito cósmico supremo até ao vertebrado gasoso."

Ernest Haeckel, O Monismo, trad. Fonseca Cardoso, 3.ª ed., Porto: Lello & Irmão, 1947, p. 66. 

Tuesday, August 27, 2019

CRUELDADE


"Meg chegou numa manhã bastante fria de Setembro. Ao ver-me com a minha bata e a boina soltou uma gargalhada de troça. Fiquei mais incomodado ainda porque enquanto despia a capa fez queixas sobre o ambiente frio e sombrio do meu Estúdio. 
«Está virado a Norte como deve ser», comentei, começando a afiar o pedaço de carvão. «Os artistas têm que trabalhar com a luz do Norte.»
«Porquê?» perguntou Meg Storey. 
Levantei os olhos. Não queria admitir perante esta impertinente libertina de taberna que não fazia a menor ideia. 
«Porque», respondi abruptamente, « a luz do Norte é cruel.»"


Rose Tremain, Restauração, trad. Adelaide Cervaens Rodrigues e Teresa Carvalho, Porto: Edições Asa, 1996, pp. 39-40. 

Monday, August 26, 2019

A CRIAÇÃO


“Criar a vida? Muito bem: criemos. A partir do nada: de putrefacção, de cadáveres desenterrados dos cemitérios, daquilo que mais medo mete aos homens desde que o mundo é mundo – a morte.”

Cathy Berheim, Mary Shelley, trad. José Álfaro, Lisboa: Antígona, 2014, p. 89.

CONSELHO


“Para Mary Shelley, o apocalipse serve apenas para sublinhar a impotência humana: a incapacidade para fazer face aos flagelos naturais é tão grave como os próprios flagelos. Além disso, ela tende a acreditar que se os seus contemporâneos vivem tão mal é porque uma parte eles adere às desgraças que os atingem. Basta que um só, de entre eles, seja portador da frágil aliança entre o prazer de viver e o desejo de conhecer para que a humanidade não esteja completamente perdida.”


Cathy Berheim, Mary Shelley, trad. José Álfaro, Lisboa: Antígona, 2014, p. 151. 

Saturday, August 24, 2019

REGRESSOS


"«Desisti de conversar com loucos e retirei-me para esta aldeia, onde me fiz jardineiro. Os pêssegos do meu pomar recordam-me a pele das Ménades, dourada pelo sol. Conservei pelos homens a minha antiga amizade, alguma admiração e muita piedade. E espero, enquanto cultivo esta quinta, o dia ainda longínquo em que o grande Diónisos virá, rodeado pelos seus faunos e as suas bacantes, ensinar de novo na Terra a alegria e a beleza, retaurando a Idade de Ouro. Então, voltarei a caminhar feliz atrás do seu carro. Mas quem sabe se nesse futuro triunfo ainda encontraremos homens na Terra?»"


Anatole France, A Revolta dos Anjos, trad. Álvaro Salema, Amadora: Cavalo de Ferro, 2017, p. 143. 

Friday, August 23, 2019

EXPIATÓRIO


"O sofrimento de um inocente não compensa coisa alguma e só acrescenta um mal a outro mal. No entanto, aparecem seres infelizes que se prestam a adorar Iavé e o seu filho expiatório e a anunciar os seus «mistérios» como uma boa nova. Já devíamos esperar essa loucura."

Anatole France, A Revolta dos Anjos, trad. Álvaro Salema, Amadora: Cavalo de Ferro, 2017, p. 125. 

Thursday, August 22, 2019

NATUREZA PRÓPRIA


"Os espíritos celestes diferem entre si na aparência, segundo a hierarquia e o corpo a que pertencem e segundo a sua própria natureza. Todos são belos - mas são belos de maneira diferente e nem todos apresentam aos olhos profanos as delicadas rotundidades e as ridentes nádegas das carnes infantis em que brincam os reflexos nacarados e claridades rubicundas."

Anatole France, A Revolta dos Anjos, trad. Álvaro Salema, Amadora: Cavalo de Ferro, 2017, p. 80. 

Tuesday, August 20, 2019

O SÁBIO



"Despojou-se das metáforas, 
depois sentou-se nos seixos do rio
a escutar as águas."


Paulo José Miranda, A voz que nos trai, Lisboa: Cotovia, 1997, p. 56. 

PRIMITIVO



"Estas palavras ficaram no ar; ninguém lhes deu atenção, e Guinardon, do alto do seu escadote, profetizou:
- Só os primitivos conseguiram entrever o Céu. O verdadeiro belo só se encontra entre o século XIII e o século XV, o antigo, o impuro antigo, que retomou a sua perniciosa influência nos espíritos desde o século XVI, inspirou aos poetas e aos pintores pensamentos criminosos e imagens sem modéstia, horrendas impurezas e coisas impudicas. Todos os artistas da Renascença foram indecentes, sem exceptuar sequer Miguel Ângelo."


Anatole France, A Revolta dos Anjos, trad. Álvaro Salema, Amadora: Cavalo de Ferro, 2017, p. 30.

Monday, August 19, 2019

DEFINIÇÃO



"A biblioteca Esparvieu é ainda hoje, em assuntos de teologia, jurisprudência e história, uma das melhores colecções privadas de toda a Europa. Podem ser nela estudadas a física, ou melhor, as físicas, em todos os seus ramos; e, por pouco que isso interesse, a metafísica ou as metafísicas, isto é, o que foi acrescentado às físicas e não tem outro nome por ser impossível designar por um substantivo o que não tem substância e não passa de sonho e ilusão. Pode-se admirar nela os filósofos, procedendo à solução, dissolução e resolução do absoluto, à determinação do indeterminado e à definição do infinito. De tudo se encontra nesse acervo de bíblias e bibliazinhas sacras e profanas - tudo, até ao pragmatismo mais recente e mais elegante."

Anatole France, A Revolta dos Anjos, trad. Álvaro Salema, Amadora: Cavalo de Ferro, 2017, p. 13. 

Saturday, August 17, 2019

O PARAÍSO


"Com 66 anos, nove anos antes de morrer, em 1955, Einstein descrevia o objetivo de toda a sua vida: «Havia este mundo enorme, que existe independentemente de nós, seres humanos, que permanece diante de nós um enigma gigantesco e eterno, acessível, pelo menos em parte à nossa inspeção e ao nosso pensamento. A contemplação deste mundo acenava como uma libertação [...] O caminho para este paraíso não era tão confortável nem atraente como o caminho para o Paraíso religioso; mas mostrou-se digno de confiança e nunca me arrependi de o ter escolhido.»". 

Carl Sagan, O Cérebro de Broca, trad. Maria do Rosário Pedreira, Lisboa: Gradiva, 1987, p. 51. 

IMPREVISÍVEL


"Os seres humanos estão, compreensivelmente, muito motivados para a descoberta de regularidades, de leis naturais. A procura de regras, única maneira possível de compreender um universo tão vasto e complexo, chama-se «ciência». O universo força aqueles que nele vivem a compreendê-lo. Essas criaturas que acham a experiência quotidiana um amontoado confuso de acontecimentos irregulares, imprevisíveis, estão moribundas. O universo pertence àqueles que, pelo menos em certa medida, perceberam isso."

Carl Sagan, O Cérebro de Broca, trad. Maria do Rosário Pedreira, Lisboa: Gradiva, 1987, p. 32. 

Wednesday, August 14, 2019

AS PESSOAS


"- Que hei-de pensar? As pessoas, só quando as perco me alcançam, só quando me deixam as vejo. Olha os amigos, quase desejo perdê-los para neles me confiar. Despedi com crueldade muita gente boa, só porque o convívio com eles impedia que os amasse. Ao ficar só, retomo-os mais completamente, já não há morte que mos leve de mim, eu própria sou e não sou a morte."

Agustina Bessa-Luís, O Susto, 2.ª ed., Lisboa: Relógio D'Água, 2019, p. 135. 

Sunday, August 11, 2019

IDADE



"Tanto Dietrich como Garbo vinham de vez em quando a casa de Boaty, a última sempre acompanhada por Cecil Beaton, que eu tinha conhecido quando ele me fotografou para a revista de Boaty (uma troca de palavras entre esses dois que foi ouvida: Beaton, «A coisa mais desoladora com a idade é que acho que as minhas partes privadas estão a mirrar.» Garbo, após um momento de pesar, «Ah, se eu ao menos pudesse dizer o mesmo»)."

Truman Capote, Súplicas Atendidas, trad. José Luís Luna, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2008, p. 35. 

Saturday, August 10, 2019

A SENTENÇA



"Os anos, de qualquer forma, ditarão a sua sentença, e o Tempo, que não fala, que só indica, cuja mão grosseira e rude afasta e esmaga os adventícios e os medíocres com a insolência e a crueldade próprias de uma estância cega, esse Tempo no qual a obra se prostra, porá Bocanegra no seu lugar."

Ricardo Menéndez Salmon, A Luz é Mais Antiga que o Amor, trad. Helena Pitta, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, p. 40. 

Friday, August 9, 2019

O ARTISTA


"Porque quem no ato de compor música, de pintar frescos, de esculpir o mármore ou de erigir catedrais se contempla a si próprio na perspetiva do ofício, não pode deixar de fazer esta pergunta: «Todo este esforço, toda esta luta de vaidades, toda esta encenação ingente, para quê?»"


Ricardo Menéndez Salmon, A Luz é Mais Antiga que o Amor, trad. Helena Pitta, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, p. 28. 

Thursday, August 8, 2019

MÁSCARAS


"Em qualquer dos casos era sempre insensato estar desapontado, mesmo como Tom Ripley. Tom Ripley nunca estivera realmente desapontado, se bem que muitas vezes o parecesse. Não teria aprendido algumas coisas nos últimos meses? Se queres estar alegre, ou melancólico, ou ansioso, ou pensativo, ou cortês, basta que representes o papel correspondente a cada um desses estados com todos os gestos que faças."

Patricia Highsmith, O Talentoso M. Ripley, trad. José Lourenço Galego, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 150. 

Wednesday, August 7, 2019

DURABILIDADE



"«A Durabilidade e o Tempo» foi o tema do seu primeiro ensaio, tinha ele dezoito anos. «Se vemos uma flor sucumbir, ou uma libélula perder as suas asas em vinte e quatro horas - escrevia ele -, dizemos que a sua vida foi efémera; e quando falamos de certas aves ou vegetais, surpreendemos neles vida quase incalculável. A duração das coisas é variável, admite confronto, é absolutamente mensurável, é uma actividade física. Mas o tempo não é a natureza duma resistência, é uma dimensão pura, isto é, impracticável.»"

Agustina Bessa-Luís, O Susto, 2.ª ed., Lisboa: Relógio D'Água, 2019, p. 32. 

Tuesday, August 6, 2019

UM TEMPO



"Foi um tempo de cansaço. 
A garganta ressequida,
E o olhar vidrado. 
                               Um tempo, 
Um tempo de cansaço!
Vidrado o olhar cansado, 
Quando, olhando para oeste
Vi qualquer coisa no céu."


Samuel Taylor Coleridge, Rima do Velho Marinheiro, trad. Gualter Cunha, Lisboa: Relógio D'Água, 2001, p. 29. 

Monday, August 5, 2019

MERIDIÃO



"Eu vivera como um pintor que sobe um caminho por cima de um lago cuja vista lhe é oculta por uma cortina de rochedos e de árvores. Consegue avistá-lo através de uma abertura, tem-no todo à sua frente, pega nos pincéis. Mas logo cai a noite que já não o deixa pintar, e após a qual o dia não tornará a nascer."

Marcel Proust, À Procura do Tempo Perdido - O  Tempo Reencontrado, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, p. 364. 

Sunday, August 4, 2019

ENCOBERTO




"Ja o Leaõ he experto
Mui alerto.
Ja acordou, anda a caminho.
Tirará cedo do ninho 
O porco, e he mui certo.
Fugirá para o deserto, 
Do Leaõ, e seu bramido,
Demostra que vai ferido
Desse bom Rei Encuberto."


Trovas do Bandarra, Natural da Villa de Trancoso, Apuradas e Impressas por Ordem de um Grande Senhor de Portugal, Nova Edição, Barcelona: 1809, LXXIV, p. 42.

Saturday, August 3, 2019

VÉSPERAS



"As crónicas hagiográficas sobre D. Sebastião faziam muitas vezes questão de dizer que ele era proporcionado, uma afirmação estranha explicada pelo facto de, segundo quase todos os relatos, não o ser. Todos os ministros de Filie II se referiam aos seus defeitos físicos, que o jovem rei pode ter conseguido ultrapassar com uma vigorosa atividade física. O homem que surgiu em Madrigal no verão de 1594 não ostentava nenhuma dessas características. Não era desproporcionado nem louro, era gracioso e sedutor, podia ter filhos, era de idade avançada e não falava português. Mas o que importava isso perante uma tradição ou revelação? Os caminhos do Senhor eram muitos e misteriosos. E quem melhor para perceber isso do que uma princesa num convento?"

Ruth Mackay, O Pasteleiro que queria ser Rei de Portugal, trad. Paulo Emílio Pires, Barcarena: Marcador Editora, 2013, p. 183. 

Friday, August 2, 2019

AS RAZÕES



"Il ne serait pas heureux, à moins de raisons insurmontables, de construire l'église dans un bruyant quartier d'affaires, et il est pourtant très urgent d'indiquer à une humanité qui s'est enlisée dans les choses de la terre le chemin qui mène au Dieu éternel."

Theodor Klauser, Petite Histoire de la Liturgie Occidentale, trad. Marc Zemb, Paris: Les Éditions du Cerf, 1956, p. 116. 

Thursday, August 1, 2019

ALEGRIA DO REAL




"Não fora eu a procurar no pátio as duas pedras da calçada irregulares em que tropeçara. Mas, justamente, a forma fortuita, inevitável, como a sensação fora reencontrada atestava a verdade do passado que ressuscitava, das imagens que desencadeava, visto que sentimos o seu esforço para subir até à luz, visto que sentimos a alegria do real reencontrado. Ela é também a prova da verdade de todo o quadro constituído por impressões contemporâneas que arrasta atrás de si, com aquela infalível proporção de luz e de sombra, de relevo e de omissão, de lembrança e de esquecimento que a memória ou a observação conscientes sempre hão-de ignorar."

Marcel Proust, À Procura do Tempo Perdido - O  Tempo Reencontrado, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, p. 199.