Wednesday, December 31, 2008

PASSEMOS OS SÉCULOS SEM ROSTO



"imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.

dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.

diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro."


Vasco Gato, Um Mover de Mão. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 9.

Monday, December 29, 2008

A PARTE DA FORÇA

"O delírio é um anjo embriagado. Bebe até cair; bebe até cair das nuvens. Foi a desgraça de Satã"


Teixeira de Pascoaes, O Pobre Tolo, Lisboa: Bertrand, 1973, p. 173.

Saturday, December 27, 2008

VISTA DE SERRÚBIA

"Estou aqui sentado - ali o mar,
as palmeiras.
O leite fresco, o pão na mesa.
O gesto sempre igual
da luz, o mesmo olhar da ave.
Existe uma secreta harmonia
entre a luz e o mar,
a mesma provavelmente
entre a palmeira e a ave,
o leite e o pão.
E com a palavra, o seu
voo a prumo,
com a palavra qual é a relação?"


Eugénio de Andrade, "O Sal da Língua" in Poesia, 2ª ed., Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2005, pp 514-515.

Friday, December 26, 2008

I AM SLOW AS THE WORLD


"Possuo a lentidão do mundo. Espero pacientemente
Que o meu tempo se escoe, o sol e as estrelas observando-me atentamente.
A preocupação da lua é mais íntima:
Passa e volta a passar luminosa como uma enfermeira.
Será que lamenta o que está prestes a acontecer? Não me parece.
É apenas o espanto perante a fertilidade."


Sylvia Plath, Três Mulheres, trad. Ana Gabriela Macedo. Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 19.

Wednesday, December 24, 2008

MIRABILMENTE IL TEMPO SI DISPLIEGA

"(...)
Não bastará um Natal inteiro
para trocarmos as fábulas mais suaves:
as túnicas de urtiga, os sete mares,
a dança sobre as espadas.

«Admiravelmente o tempo se desprega...»
reconduzirá no tempo esse mínimo
escorrer, uma mulher, um átomo de fogo:
nós que vivemos sem fim."


Cristina Campo, O Passo do Adeus, trad. José Tolentino Mendonça. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 45.

Sunday, December 21, 2008

WINTER'S BEGINING


"A minha história é como o canto do gaulês guerreiro quando sobre a pira inflamada, junto à penha druídica, fazia, aos deuses do seu povo, religiosa oblata duma rude existência."


Álvaro do Carvalhal, "A Febre do Jogo", in Contos. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 53

Sunday, December 14, 2008

POR PASSOS SEM ESPERANÇA ME LEVA SEMPRE O DESEJO

"Levanta o meu pensamento
No desejo tanta altura,
Que não se acha na ventura
Aquela glória que intento,
Senão em sombra e figura.

Porém como não descansa
Em contínuo imaginar,
Traz-me o cuidado em balança,
E é forçoso caminhar
por passos sem esperança.

Entre cuidado e cuidado
Me perco em qualquer extremo
Sempre igualmente arriscado:
Desespero quando temo.
E espero desconfiado.

Com temor e amor pelejo
Neste duvidoso enleio,
E pela mor parte vejo
Que donde nasce o receio
Me leva sempre o desejo."


Francisco Rodrigues Lobo, Poesias, selecç. Afonso Lopes Vieira, 2ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1955, pp. 164-165.

Sunday, December 7, 2008

ROUPA VELHA



"Assiste àquilo que eu desejo que ela veja, uma história ao vivo, um desenho que poderia estar pendurado nas cordas da sua roupa. O vento a empurrar uma mulher em cima de uma concha, uma visão que vem da espuma, enquanto outra lhe estende um manto vermelho. O que marca a linha do seu corpo são os cabelos, as mãos que procuram esconder o amor. São outras mulheres que dançam com os dedos entrelaçados, entre as árvores. É isto que eu quero que se contemple da sua janela, a Primavera que se despe e entra num sono profundo, uma rua onde não existe a guerra, onde os tanques não destroem os alicerces das casas, um espaço único, sem pó, nem sangue, com a luz a entrar pelas escadas. Enquanto jovens mancebos, em fila, lançam flechas contra os ciprestres."

Jaime Rocha, Anotação do mal, Lisboa: Sextante Editora, 2007, pp. 28-29.

Wednesday, December 3, 2008

"FAST FOOD" PODE LEVAR A DOENÇA DE ALZHEIMER



"O filósofo dizia que só os homens faziam o importante, enquanto os animais só dispunham de acções insignificantes.
Foi então que chegou o tigre e devorou o filósofo, comprovando com os dentes a teoria anteriormente apresentada."


Gonçalo M. Tavares, O Senhor Brecht. Lisboa: Ed. Caminho, 2004, p. 39.

Tuesday, December 2, 2008

HOW COMES IT THEN THAT THOU ART OUT OF HELL?



"Fausto -Como é que então estás aqui, fora do Inferno?

Mefistófeles - Mas isto é o Inferno; não estou fora dele.
Pois pensas que eu, que vi a face de Deus
E provei as eternas delícias do Céu,
Não me atormento com dez mil infernos
Só por estar privado da sempiterna felicidade?
Oh, Fausto, deixa essas perguntas vãs,
Que se me arrasa a alma de terror."


Christopher Marlowe, Doutor Fausto, trad. João Ferreira Duarte e Valdemar Ferreira. Mem Martins: Publicações Europa-América, 2003, cena 3; I, 3, p. 49.

Friday, November 28, 2008

DEPOIS DA COLHEITA


"Um pressentimento. Assim é que há-de chegar a seiva
ao ponto mais alto das árvores, a esse limite humedecido
pela noite? Não sei, mas acabaram os frutos por ficar
mais próximos. A sua curva inclina-se. Mostra-nos
uma cor que desconhecíamos antes. Estendemos
um dos braços e recolhemos o que se encontrava
ainda ausente, um corpo simples que lhe fica prometido
a partir de si mesmo. Com esse gesto tudo amadurece."


Fernando Guimarães, Lições de Trevas. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 47.

Tuesday, November 25, 2008

SINAIS DE FUMO


"Não haverá oficina para as minhas noites.
Vejo-as deitar fumo
como o alcatrão ainda quente
dos meus olhos fundamentalmente
sem trânsito,
ouço-as trémulas ao embaterem
nos ombros da sentinela de gesso
que me guarda o sono.
Não haverá mecânica para estes metais
soldados a frio, armados
sobre a estação
sinistra
onde os anjos fazem transbordo
e seguem, sentados, para o forno
da vida eterna.

Mas eu tenho uma têmpora ferida
pela pata marcial de um leopardo
e sangro o meu instinto
na concepção de uma biologia
mais vulnerável
e perigosa,
e uso a noite para este fim
e para este apenas
- e é de lava e sombra
a substância profana
em que tão avariadamente
trabalho.

Não haverá uma oficina
e os seus elevadores, não haverá
um martelo - não me corrijam,
esta vida vai em sobre-aquecimento
dos seus interiores,
perplexa, marginal,
honesta.

E se a virem parar no meio de uma estrada,

inflamada e contorcida,
é porque aí
encontrou
o mais justo câmbio
de vento
para as suas noites.

Não a reboquem, ponham-lhe flores,

e sigam, sentados, para o forno
da vida que vos coube."


Vasco Gato, Omertà. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007, pp. 65-66.

Sunday, November 23, 2008

CRIPTOGÂMICOS 1



"Não havia nenhum remédio. Ficavam de olhos colados às vidraças dos cafés a ver o tédio comer os passeios. Traziam os filhos, traziam tudo. Uma goma mortífera escorria-lhes pelas pálpebras. Olhavam uns para os outros atónitos de sono, imóveis no pavor de acordarem e serem fulminados pelo simples fulgor de uma pupila..."

Eduardo Valente da Fonseca, Os Criptogâmicos. Porto: Livraria Paisagem, 1973, p. 31.

Thursday, November 20, 2008

FADIGA DE METÁFORAS



"Já me cansa, senhor, ter sido feito
metáfora ou provérbio de má sorte;
ser mera imagem pouco me aproveita
quando me alcança o bico predador,
e ainda à dor banal se me acrescenta
o sofrimento de não ser real.
É verdade que a morte se embaraça
na trança irregular da minha tela;
mas nem isso me traz grande vantagem
se o que sobra de mim é só o efeito
de uma ilusão nos olhos de quem passa
e se entretém a ver uma miragem.
Antes queria ter lugar à mesa
onde se senta a gente prazenteira,
comer o mesmo pão que a vida amassa,
e sem ardor simbólico nenhum
ouvir na voz comum uma ligeira
ária de amor ao fim da refeição.
Sombra de um verso, não sei como possa
ter bom sucesso neste meu projecto
de te fazer meu cúmplice leitor;
uma vírgula mais talvez mudasse
o sentido do mundo, mas duvido
que uma tão ténue pausa chegue ao teu ouvido.
Se o meu desgosto é ser, na grande Teia,
mensagem virtual ou sopro vago,
talvez me queiras tu dar o teu rosto,
e eu no teu corpo me transforme em alma."


António Franco Alexandre, Aracne, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 27-28.

Tuesday, November 18, 2008

HABITAR O TEMPO



"Para não matar seu tempo, imaginou:
vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;
no instante finíssimo em que ocorre,
em ponta de agulha e porém acessível;
viver seu tempo: para o que ir viver
num deserto literal ou de alpendres;
em ermos, que não distraiam de viver
a agulha de um só instante, plenamente.
Plenamente: vivendo-o dentro dele;
habitá-lo, na agulha de cada instante,
em cada agulha instante; e habitar nele
tudo o que habitar cede ao habitante."


João Cabral de Melo Neto, "A Educação Pela Pedra", in Poesia Completa (1940-1980). Lisboa: IN-CM, 1986, p. 156.

Sunday, November 16, 2008

GENTE ESTRANHA 1


"era uma gente estranha que se podia mutilar até restar o mínimo. não significava que fossem pobres quando tinham só a cabeça, podia ser que se desenvencilhassem dos braços porque lhes causavam transtorno, como um peso ali pendurado a balançar, quantas vezes sem préstimo algum, pensavam assim os preguiçosos. claro, havia quem trocasse os seus braços pelos braços de outro, e a gente que aparecia na televisão podia dividir-se em ínfimos bocados, que um dedo de um músico famoso podia ser troca pelo corpo inteiro de um culturista anónimo verdadeiramente perfeito"


valter hugo mãe, a educação das pedras, Porto: Edições Éterogémeas, 2005, p. 4.

Wednesday, November 12, 2008

ESTAÇÃO DOS HELENISMOS

(altar de Zeus, museu Pergamon, Berlim)

"É o vazio da Física e do Barroco (há sempre mais um quark ou coisa assim). Não está lá ninguém, pois não? Para Roma é perigoso pensar se o Inferno tem um fim. E é de pensar, uma vez que Deus é infinitivamente misericordioso. E Deus é o criador do Inferno, uma vez que é o criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. Deus pode acabar com o Inferno. Acho que o que é perigoso é achar que há questões perigosas. Jesus faz perigar a noção de perigo."

Adília Lopes, "Irmã Barata, Irmã Batata", in Caras Baratas - Antologia, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 221.

Sunday, November 9, 2008

O PÁSSARO - HOMENAGEM A 'TIPPI' HEDREN


"How do you know but ev'ry Bird that cuts the airy way,
Is an immense world of delight, clos'd by your senses five?"


(Como não saber que as Aves que sulcam o ar/São vastos mundos de gozo fechados pelos cinco sentidos?)


William Blake, A União do Céu e do Inferno, trad. João Ferreira Duarte. Lisboa: Relógio D'Água, 1991, pp. 24; 59.

Tuesday, November 4, 2008

AQUILO A QUE CHAMAMOS O BEM

"O mal é fácil. Há uma infinidade dele. O bem, quase único. Mas um certo género de mal é tão difícil de encontrar como aquilo a que chamamos o bem e com frequência se faz passar com a marca do bem este mal particular. É preciso mesmo uma extraordinária grandeza de alma para a ele chegar da mesma maneira que se chega ao bem."


Blaise Pascal, Pensamentos, 408, trad. Américo Carvalho. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1998, p. 162.

Friday, October 31, 2008

NAS VÉSPERAS DOS MORTOS



"Nunca, entre tanta serenidade,
poderia pousar uma crispação, uma recusa
ou um brusco estremecimento do coração
desmedido. Não conhecer a paixão
é um privilégio dos mortos. Entre a mão
e a barca,
entre o silêncio e a aridez,
entre a claridade
e o tremor
caem as sombras sobre a água como
a roupa se desprende e cai do corpo desejado,
entrevisto,
como de tanto amor se tece a Morte!"


Luís Filipe Castro Mendes, "A Ilha dos Mortos", in Poesia Reunida. Lisboa: Quetzal Editores, 1999, p. 32.

Wednesday, October 29, 2008

PFAUENINSEL 2



"Foi numa tarde na Ilha dos Pavões que sofri a minha maior derrota. Tinham-me mandado procurar penas de pavão na relva. Como se tornou mais atraente para mim a ilha enquanto reserva de troféus tão encantadores! Contudo, depois de ter, em vão, revolvido todos os cantos da relva à procura do objecto prometido, fui assaltado por uma sensação de profunda tristeza, mais do que rancor, pelos animais que com as suas plumagens intactas se passeavam diante dos viveiros. Os achados são para as crianças o que as vitórias são para os adultos. Procurara algo que a ilha me dera muito pessoalmente, que me desvendara exclusivamente a mim. Com uma única pena ter-me-ia apoderado da ilha, da tarde, da travessia de barco a partir de Sakrow; tudo isto me teria total e incontestavelmente ficado a pertencer, se tivesse encontrado a minha pena. Perdeu-se a ilha e com ela uma segunda pátria: a terra dos pavões. E, só então, antes de ir para casa, fui capaz de ler nas vidraças reluzentes do palácio os avisos que o brilho do Sol neles deixara: hoje eu não devia lá entrar.
Naquele tempo, a minha dor não teria sido tão inconsolável se não tivesse perdido uma terra ancestral por causa de uma simples pena que me escapou."


Walter Benjamin, Infância em Berlim por volta de 1900, trad. Cláudia de Miranda Rodrigues. Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 190.

Monday, October 27, 2008

ANTROPOMORFISMOS OU IMPROVÁVEIS INTERTEXTOS INESIANOS


"Azul, azul é a relva junto ao rio
E os salgueiros transbordam a cerca do jardim,
E lá dentro, a senhora, a meio da sua juventude,
Branca, branca é a face, hesita, ao passar a porta,
Delicada, adianta a sua mão delicada;

E ela foi em tempos cortesã,
E casou-se depois com um borrachão,
Que sai agora para a rua a embebedar-se
E a deixa muito, muito só."

(atribuído a Mei Shêng, 140 a.C.)


Ezra Pound, Cathay, trad. Gualter Cunha, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 29.

Sunday, October 26, 2008

WHERE IS THERE AN END OF IT?



"Where is there an end of it, the soundless wailing,
The silent withering of autumn flowers
Dropping their petals and remaining motionless;
Where is there an end to the drifting wreckage,
The prayer of the bone on the beach, the unprayable
Prayer at the calamitous annunciation?"


T. S. Eliot, Quatro Quartetos, trad. Gualter Cunha, Lisboa: Relógio D'Água, 2004: pp. 58,60.

Tuesday, October 21, 2008

O SOL NO OUTONO


" Eu sou o pai do dia...
Sou velho tronco, a arder, no lar azul do espaço.
Os planetas abrange a curva do meu braço.
Eu sou um grande lar onde os mundos se aquecem...
Sempre milhar's de mãos que os gelos arrefecem
Se estendem sobre mim... E descobri entre elas,
Homem, as tuas mãos, orvalhadas d'estrelas,
De lágrimas, talvez... teu lúcido fulgor
Sabe compreender tuas lágrimas de dor
Que nas asas ideais da Vaporização
Alcançaram meu grande e ardente coração!
Vejo-as dentro de mim. E a minha luz bendita,
Que numa bênção cai da abóbada infinita,
Quando seus lábios vão beijar o pranto humano
Que lhes faz lembrar as ondas do oceano,
Sente-se triste... e vem trazer-me essa tristeza
Na nuvem que troveja e que suspira e reza!...
Tenho, dentro de mim, o humano sofrimento..."


Teixeira de Pascoaes, Para a Luz, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998: pp.78-79.

Friday, October 17, 2008

PFAUENINSEL 1



"Como há-de hoje alegrar-me à luz do dia
se não entras comigo na floresta
faísca o sol nos ramos negros Resta
que renová-lo o teu olhar podia

enquanto o ensino que o teu dedo assesta
à tábua de eu pensar se guardaria
em fiéis signos - tímido olharia
eu mas a morte vela à beira desta

estrada em teu lugar No bosque estou
mais só que arbustos onde a noite passa
Há um vento na encosta nua Dou

por claro meio-dia que me abraça
e o curvo céu mais fundo e azul prescruto
como um olho enigmático de luto."


in Os Sonetos de Walter Benjamin, trad. Vasco Graça Moura, Porto: Campo das Letras, 1999: p. 27.

Monday, October 13, 2008

UNIVERSO COMO REALIDADE AMBÍGUA




"«-O universo é uma realidade ambígua.» Por outro lado,
ele mexia o café e respirava apressadamente o ar húmido,
os cheiros da terra, a água a serpentear nos canteiros.
«- Do lado oculto, as coisas daqui tornam-se visíveis. Se-
res duplos, corpos sem alma, etc.» O contacto dos lábios
com a chávena! A neblina dissipava-se, revelando as
colinas, o pequeno bosque, casas já distantes e dispersas,
uma fogueira... e o ruído abstracto de lenha a crepitar
desviou-lhe o pensamento: paisagem? sonho? a construção
de um mundo interior no qual subitamente, ele próprio
perdesse a sua consistência - como se não fosse mais do
que um espírito vagueando entre uma e outra coisa, ali-
mentando a sua existência de qualidades diversas e con-
traditórias: a dureza de uma pedra, a transparência da
água, as cores da vegetação, o fumo do café."



Nuno Júdice, "Rimbaud Inverso", in Obra Poética (1972-1985). Lisboa: Quetzal Editores, 1991, p. 314.

Friday, October 10, 2008

O OUTONO


"O Outono não se caracteriza apenas pela queda das folhas, mas também pelo declínio das forças vitais de todos os seres, incluindo o homem.

A Via Láctea torna-se mais nítida. Todavia é a lua a alma desta estação. Na sua remota proximidade adensa o mistério da nossa existência. O vento soa também de maneira diferente e nele podemos surpreender, por vezes, o murmúrio da própria morte.

Os gritos dos insectos ecoam por todo o lado. Mas são os crisântemos, com a beleza das suas folhas e das suas flores e o seu perfume esotérico, a referência dominante da estação, logo a seguir à lua."


Matsuo Bashô, O Gosto Solitário do Orvalho, seguido de O Caminho Estreito, trad. Jorge Sousa Braga. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p. 39.

Sunday, October 5, 2008

CIDADES VISÍVEIS II


"Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida"


Daniel Filipe, a invenção do amor e outros poemas, 11ª ed., Lisboa: Edit. Presença, 2006, p. 35.

Thursday, October 2, 2008

NO 30º DIA, PARA A GRANDE ARTISTA



"Ergueu-se do cepo e de pé ficou diante das duas irmãs.
-Eu sou uma grande artista! - disse ela.
Esperou um momento e depois repetiu:
- Eu sou uma grande artista, Mesdames.
De novo por longo tempo se fez um profundo silêncio na cozinha.
Por fim, Martine disse:
- Então vai ser pobre para o resto da vida, Babette?
- Pobre? - retorquiu Babette. E sorriu como se só ela soubesse porquê. - Não, eu nunca serei pobre. Disse-vos que sou uma grande artista. Um grande artista, Mesdames, nunca é pobre. Temos qualquer coisa, Mesdames, que os outros nada conhecem. (...)
Continuava imóvel, perdida nos seus pensamentos.
- Sabem, Mesdames - disse por fim - essa gente pertencia-me, eram todos meus. Haviam sido educados a um custo que as senhoras, pobrezinhas, não imaginam ou sequer haviam de acreditar, e ensinados a compreender a grandeza da minha arte. Eu podia fazê-los felizes. Quando dava o meu melhor, fazia-os perfeitamente felizes.
Fez uma breve pausa.
-Era assim também com Monsieur Papin - disse ela.
- Com Monsieur Papin? - perguntou Phillipa.
- Sim, com o seu Monsieur Papin, minha pobre senhora - disse Babette. - Ele próprio mo disse: «É terrível e insuportável para um artista», dizia ele, «ser encorajado a fazer, e aplaudido por ter feito, uma coisa inferior a nós próprios.» Dizia ele: «O mundo inteiro é percorrido por um só grito; é o coração do artista que pede: «Deixai-me fazer o insuperável!»
Phillipa acercou-se de Babette e abraçou-a. Sentiu o corpo da cozinheira qual monumento de mármore contra o seu, que, esse sim, tremia da cabeça aos pés.
Por momentos, ficou incapaz de falar. Depois murmurou:
- Mas isto não é o fim! Sinto, Babette, que isto não é o fim. No Paraíso há-de ser a grande artista que Deus sempre quis que fosse! Ah - disse ainda, as lágrimas correndo-lhe pelas faces. - Ah, como irá, Babette, encantar os anjos!"


Isak Dinesen (Karen Blixen), Histórias do Destino - A Festa de Babette e outros contos, trad. Maria J. Jorge. Lisboa: Editorial Querco, 1988, pp. 60-62.

Monday, September 29, 2008

DIA DOS ANJOS, DAS ESPERANÇAS



"Os problemas que atormentam os homens são os mesmos problemas que atormentam os deuses. O que está em baixo é como o que está em cima, disse Hermes Três Vezes Máximo, que, como todos os fundadores de religiões, se lembrou de tudo, menos de existir. Quantas vezes Deus me disse, citando Antero de Quental, "Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?"
Tudo é símbolo e atraso, e nós, os que somos deuses, não temos mais que um grau mais alto numa Ordem cujos Superiores Incógnitos não sabemos quem sejam. Deus é o Segundo na Ordem manifesta, e não me diz quem é o Chefe da Ordem, o único que conhece - se conhece - os Chefes Secretos. Quantas vezes Deus me disse: «Meu irmão, não sei quem sou.»"

Fernando Pessoa, A Hora do Diabo, ed. Teresa Rita Lopes, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 58

Saturday, September 27, 2008

QUE FARIA DEUS ANTES DA CRIAÇÃO ?


"Não é verdade que estão ainda cheios de velhice espiritual aqueles que nos dizem: - «Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra? Se estava ocioso e nada realizava - dizem eles - porque não ficou sempre assim no decurso dos séculos, abstendo-se, como antes, de toda a acção? Se existiu em Deus um novo movimento, uma vontade nova para dar o ser a criaturas que nunca antes criara, como pode haver verdadeira eternidade, se n'Ele aparece uma vontade que antes não existia?»
A vontade de Deus não é uma criatura, está antes de toda a criatura, pois nada seria criado se antes não existisse a vontade do Criador. Essa vontade pertence à própria substância de Deus. Se alguma coisa surgisse na substância de Deus que antes lá não estivesse, não podíamos, com verdade, chamar a essa substância eterna. Mas se, desde toda a eternidade, é vontade de Deus que existam criaturas, por que razão não são as criaturas eternas?"


Santo Agostinho, Confissões, Parte II, Livro XI, 11, 13ª edição, trad. Lúcio Craveiro da Silva. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, pp. 276-277.

Tuesday, September 23, 2008

NOVA ANGELOGRAFIA


"Alguién ha entrado en la memoria blanca, en la inmovilidad del corazón.

Veo una luz debajo de la niebla y la dulzura del error me
hace cerrar los ojos.

Es la ebriedad de la melancolía; como acercar el rosto a
una rosa enferma, indecisa entre el perfume y la muerte."


Antonio Gamoneda, Libro del frío, in Antologia Poética, selecç. Tomás Sánchez Santiago, Madrid: Alianza Editorial, 2006, p. 152.

Saturday, September 20, 2008

NOVAS LITANIAS DO AZUL 1


"Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo."


Natália Correia, "O Livro dos Amantes", in Antologia Poética, org. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 54.

Thursday, September 18, 2008

ARMÁRIOS DO VAZIO



"Habitamos aqui
há tão pouco
e já a memória
nos serve de almofada.

Soubemos construir
os nossos móveis
da madeira melhor
que em nós guardávamos.

A chave roda
nos dedos da ternura.
Poupamos a manhã
que fecha a cicatriz.

Este lugar é nosso. Aqui
estudaremos lentamente
o que nos cerca e liga:
as próprias saliências do silêncio."


Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 19.

Tuesday, September 16, 2008

MEMÓRIAS DA LUZ

(museu Pergamon, Berlim)



"Lembra o jacinto pisado no monte
por pastores, por terra a flor de púrpura..."



Safo, XX, trad. Eugénio de Andrade, in Poemas e Fragmentos de Safo, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 5ª ed., 1995, p. 39.

Saturday, September 13, 2008

ESGOTAMENTOS E ANALOGIAS



"Quando todas as outras fontes de consolação ficam esgotadas, bem preciso será encontrar uma nova, mesmo no caso de ser absurda. Acontece com frequência, nas cidades alemãs, que as pessoas peçam ao forasteiro para lhes confirmar que a mais incendiada, destruída e arrasada das cidades em toda a Alemanha é aquela onde vivem. Não se trata de buscar alívio na aflição, é a própria aflição que se tornou alívio. Aquelas pessoas perdem a coragem quando se lhes diz que noutro sítio foram vistas piores coisas. E talvez não tenhamos o direito de o dizer; cada cidade alemã é a pior quando nela se tem de viver."


Stig Dagerman, Outono Alemão, trad. Júlio Henriques, 2ª ed. Lisboa: Edições Antígona, 1998, p. 32.

Tuesday, September 9, 2008

RESPOSTA EM VERSO À INGRATA QUESTÃO COLOCADA SOBRE O SOFRIMENTO DA AUSÊNCIA


"Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais - um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser
complicadas, quando nos damos conta da
diferença entre o sonho e a realidade. Porém,
é o sonho que me traz a tua memória; e a
realidade aproxima-me de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói."


Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 18.

Saturday, September 6, 2008

DIA EM CASA,REPETINDO SOPHIA


"Mergulho no dia como em mar ou seda
Dia passado comigo e com a casa
Perpassa pelo ar um gesto de asa
Apesar de tanta dor e tanta perda"


Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas. Lisboa: Editorial Caminho, 2004, p. 50.

Wednesday, September 3, 2008

UMA LEITURA PARA A VERA COM DUAS FOTOGRAFIAS (SIEGESSÄULE 2)





"Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões.
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo
Se se recorda dos movimentos migratórios
E das estações.
Mas não me importo de adoecer no teu colo
De dormir ao relento entre as tuas mãos."


Daniel Faria, Dos Líquidos, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2003, p. 55.

Tuesday, September 2, 2008

SOBRE ESTE DIA PRECIPITEM AS MANHÃS - em memória de Vera Vouga


"Os deuses nada nos dirão, nem tão pouco o Destino. Os Deuses estão mortos e o Destino é mudo."


Fernando Pessoa, Heróstrato.

Monday, September 1, 2008

NIGHT IS FALLING



"Não tarda a sombra, aí. Vai alto o Sete-Estrelo
São horas dela vir. Minha alma, atende!
Que já a Lua, a sentinela, rende
Na esplanada do Céu, às portas do Castelo...

Oiço um rumor: talvez... Ei-la, é ela: ao longe, avisto
Seu vulto em flor: postas as mãos no seio,
Com o cabelo separado ao meio,
Todo caído para trás, como o de Cristo!

Sorri. Que linda vem, Jesus! Que bem vestida!
Quantas lembranças deste peito arranco!
Foi assim que primeiro a vi, de branco,
Foi nesse traje que ela sempre andou, em vida!

Que luz projecta! Que esplendor! Parece dia!
Os galos cantam, anunciando a aurora...
Ide deitar-vos que ainda não é a hora,
Dorme o teu sono sossegado, ó cotovia!"

(...)


António Nobre, , Porto: Livraria Tavares Martins, 1950, p. 165.

Sunday, August 31, 2008

FROM THE DEPTHS OF DARK SOLITUDE



"Na fundura da minha solidão sombria,
Na eterna morada, meu refúgio sacrossanto,
Encoberto e embrenhado em reflexão soturna,
Reservado para os dias do porvir,
Busquei uma alegria, de dor liberta,
Alguma solidez isenta de mudança.
Ó Eternos! porque será morrer vosso desejo?
Porquê viver em perpétuas chamas?"


William Blake, Primeiro Livro de Urizen, trad. João Almeida Flor. 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, pp. 26-27.

Saturday, August 30, 2008

TO THE LIGHTHOUSE



"Levamos, rumo ao farol, a limpidez
o entusiasmo azul de tanto amor.

Pela tarde preciosa e semi-nua,
a vela abrasada à praia nos conduz.

Na pele o mal revela a matérica
fulguração de um sol interior.

Bátegas de gaivotas cor de lua
ateiam a lenta rendição da luz."


Jorge Vaz de Carvalho, A Lenta Rendição da Luz. Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 37.

Friday, August 29, 2008

FRAG NICHT



"Quando alguém parte, tem de deitar
ao mar o chapéu com as conchas
apanhadas ao longo do Verão,
e ir-se com o cabelo ao vento,
tem de lançar ao mar
a mesa que pôs para o seu amor,
tem de deitar ao mar
o resto do vinho que ficou no copo,
tem de dar o seu pão aos peixes
e misturar no mar uma gota de sangue,
tem de espetar bem a faca nas ondas
e afundar o sapato,
coração, âncora e cruz,
e ir-se com o cabelo ao vento!
Depois, regressará,
Quando?
Não perguntes."


Ingeborg Bachmann, O Tempo Aprazado, selec. e trad. de Judite Berkemeier e João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, p. 75.

Thursday, August 28, 2008

A SOLIDÃO DE DEUS

"Debaixo do chão da igreja matriz do Rosário encontraram uns mortos que estavam sentados. Ainda tinham nos pés meias de cores variadas como se costumava fazer dantes com os restos das malhas desfeitas.
De um buraco dos alicerces saiu uma espécie de pedra que não era realmente uma pedra mas parecia. Mais tarde viram que se tratava de um livro, talvez um caderno cosido à matroca no dorso como um cordel.
Um professor holandês, fartando-se de estudar, descobriu que se tratava do diário de um santo sepultado na igreja, mas tinham-lhe também roubado os ossos. Um ano depois, com lentes grossas que nem fundos de garrafas, o professor conseguiu ler qualquer coisa dentro da pedra. Em primeiro lugar, estas palavras: «Mais solitário que Deus não há ninguém»."


Tonino Guerra, O Livro das Igrejas Abandonadas, trad. José Colaço Barreiros. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 28.

Tuesday, August 26, 2008

PRECE / PERGUNTA



"Que triângulo ou círculo poderá cercar-te
Para que te detenhas demorada e minha
Para que não desças toda pela escada"


Sophia de Mello Breyner Andresen, Dual. Lisboa: Caminho, 2004, p. 11.

Monday, August 25, 2008

CONFISSÃO 1



"Com a Fotografia, entramos na Morte crua. Um dia, à saída de uma aula, alguém me disse desdenhosamente: «Você fala cruamente da Morte.» Como se o horror da Morte não fosse precisamente a sua crueza! O horror é isto: nada a dizer da morte de quem eu mais gosto, nada a ter de dizer da sua foto que contemplo incessantemente sem nunca poder aprofundá-la, transformá-la. O único «pensamento» que posso ter é o de que nessa primeira morte está inscrita a minha própria morte. Entre as duas mortes, a única coisa a fazer é esperar; não tenho outro recurso a não ser essa ironia: falar do «nada a dizer»."


Roland Barthes, A Câmara Clara (Nota sobre a fotografia), trad. Manuela Torres. Lisboa: Edições 70, 2008, pp. 103-104.

Thursday, August 21, 2008

AS PERDAS


“Ele saiu da cidade.
E quando saiu de lá, avistou, na berma da estrada, um outro jovem que estava a chorar.
Ele caminhou na sua direcção e tocando-lhe nas longas madeixas de cabelo perguntou-lhe: «Porque choras?»
E o rapaz olhou para cima e reconheceu-O . Pensando um instante, respondeu-Lhe: «Mas eu estive morto em tempos e tu tiraste-me a morte. Que mais posso fazer do que chorar?”



Oscar Wilde, “O Benfeitor”, in Poemas em prosa, trad. Possidónio Cachapa. Lisboa: Cavalo de Ferro, 2002, p. 24.

Friday, August 8, 2008

COLUNA DA VITÓRIA (SIEGESSÄULE) 1


"Exala dos teus ombros o templo dos sons
onde as palavras recolhem venerando
a luz exígua dos lábios que habitam,
o incenso dos olhos breves
ou a marca
dos pés despidos,

uma frase que reza como se deus estivesse morto
como se fosse então possível amá-lo para sempre."


Pompeu Miguel Martins, O Livro do Anjo, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2001, p. 14