Sunday, November 30, 2014

RESSONÂNCIA



"Antes de ser moralista ou artesão, Mann é desde logo um artista, isto é, como diria Proust, um homem educado que não deixa o preço nos presentes que oferece. É um artista clássico que se interessa pelos géneros e pelas suas potencialidades mais do que pelas lendas e pelas suas ressonâncias. O artista clássico não se interessa, em primeira instância, pelo mito nem pela desmistificação; interessa-se por uma operação muito precisa, aquela que faz do mito uma fábula, um muthos, na acepção aristotélica - uma representação de homens que agem, um agenciamento de acções detentoras, diz Aristóteles, de uma certa grandeza, de uma certa medida própria, um tempo que a subtrai ao tempo sem começo, sem meio, sem fim, do mundo."

Jacques Rancière, A Fábula Cinematográfica, trad. Luís Lima, Lisboa: Orfeu Negro, 2014, pp. 132-133. 

Saturday, November 29, 2014

DUPLO



"A comédia do hipócrita funciona porque utiliza a mais antiga alavanca dramática: o duplo sentido das palavras. Funciona porque Tartufo, tal como Édipo, diz algo distinto do que diz. E diz algo distinto do que diz, porque as palavras, em geral, dizem algo distinto daquilo que dizem". 

Jacques Rancière, A Fábula Cinematográfica, trad. Luís Lima, Lisboa: Orfeu Negro, 2014, p. 58. 

Friday, November 28, 2014

COLORAÇÃO



"Um pássaro em queda mesmo
Quando é proporcional à pedra
Que tomba do muro nunca
Alcança a mesma coloração do musgo
- Já nem sequer falo do tempo
Em que mudam a pena

Para fazeres ideia pensa
Como perde um homem a idade
De encontrar os ninhos

Retém na memória: o homem cai. Desloca-se 
O pássaro para que as estações não mudem

É dessa rotação que o muro
Pode cercar-se sem ninguém o construir. O cerco
Do voo é a pedra da idade

Para fazeres uma ideia pensa
Em engoli-la"



Daniel Faria, "Dos Líquidos", in Poesia, ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 293. 

Thursday, November 27, 2014

JOYLESS EYE




"Art thou pale for weariness
Of climbing heaven and gazing of the earth, 
Wandering companionless
Among the stars that have a different birth, - 
And ever changing, like a joyless eye
That finds no object worth its constancy?"


Percy Bysshe Shelley, "To the Moon", in English Verse, Vol. IV, Oxford: Oxford University Press, 1977, p. 299. 

Wednesday, November 26, 2014

INDISTINTO


"Com aquela viva consciência do imediato que é característica da mente infantil, o passado, em cada ocasião, tornava-se para Maisie tão indistinto quanto o futuro: ela entregava-se ao momento com boa-fé que poderia ter parecido tocante ao pai ou à mãe."

Henry James, Pelos Olhos de Maisie, trad. Paulo Henriques Britto, São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2010, p.44. 

Tuesday, November 25, 2014

ENCONTRO



"Podem gritar
as cigarras
e as serras dos carpinteiros. 
Nunca serão funestas, 
fariam a tarde
que continua inconsútil. 
O mundo é ininteligível,
mas é bom."


Adélia Prado, Com Licença Poética - Antologia, Lisboa: Cotovia, 2003, p. 120. 

Monday, November 24, 2014

OLHARES



"Naquele momento, a menina deu menos importância a elas do que à atitude desrespeitosa e ao rosto enrubescido de Moddle, que a intrigavam; porém conseguiu relembrá-las cinco minutos depois, quando, na carruagem, sua mãe, toda beijos, fitas, olhos, braços, ruídos estranhos e cheiros gostosos, lhe perguntou: "E o biltre do seu pai, meu anjinho, mandou um recado para a sua mamãezinha querida?". Só então ela constatou que as palavras pronunciadas pelo biltre do pai tinham, afinal, entrado em seus ouvidos atônitos, de onde, atendendo ao pedido da mãe, elas passaram direto para seus lábios cândidos, dos quais saíram numa voz límpida e estridente: "Ele pediu para eu dizer", repetiu ela direitinho, "que a senhora é uma grandessíssima vaca!".


Henry James, Pelos Olhos de Maisie, trad. Paulo Henriques Britto, São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010, p. 43. 

Sunday, November 23, 2014

MECANISMO



"Uma após outra, as semanas corriam e, em casa dos Saint-Clare, a vida retomara o seu curso normal, fechando-se como um oceano sobre o pequenino caixão sumido no fundo de uma cova. Como as realidades quotidianas, duras, implacáveis, imperiosas, comprimem e abafam os mais belos sentimentos da nossa alma!... É preciso comprar, vender, perguntar e receber as respostas!... Numa palavra, é preciso perseguir sombras quando perdemos a realidade. O hábito gelado, o mecanismo da vida, sobrevivem à própria vida!"

Harriet Beecher Stowe, Uncle Tom's Cabin, versão livre de Leyguarda Ferreira, 2ª ed., Lisboa: Edição Romano Torres, 1952, p. 237. 

Saturday, November 22, 2014

PERMEIO



"Não se é artista sem haver de permeio uma grande infelicidade. De ódio contra qual deus? E vencê-lo, para quê?"

Jean Genet, No Sentido da Noite, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2012, p. 82. 

Thursday, November 20, 2014

SUGERIR



"Mas então o drama? Se num autor existir a sua fulgurante origem, compete-lhe captar este raio e, a partir da iluminação que mostra o vazio, organizar uma arquitectura verbal - quer dizer, gramatical e cerimonial - sugerindo astuciosamente que é extraída desse vazio uma aparência que mostra o vazio."

Jean Genet, "A estranha palavra que...", in No Sentido da Noite, Lisboa: Sistema Solar, 2012, p. 94. 

Tuesday, November 18, 2014

NA ONDA



"Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos, 
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis, 
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos"


Manuel António Pina, in Todas as Palavras - Poesia Reunida, 3ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, p. 358. 

Monday, November 17, 2014

CONDIÇÃO



"Mas vou tentar que me entendam melhor. Para o poeta dispor da solidão absoluta, a que precisa se quiser realizar a sua obra - extraída de um nada que ela preencherá e fará ao mesmo tempo sensível - poderá expor-se numa atitude qualquer, que seja para ele a mais perigosa. Afasta cruelmente todos os curiosos, todos os amigos, qualquer solicitação que tratasse de inclinar a obra para o mundo. Queira ele, pode proceder assim: espalhando à volta um cheiro tão pestilencial, tão negro, que ele próprio se perca nele e fique por causa dele meio asfixiado. As pessoas evitam-no. Permanece só. A maldição aparente vai permitir-lhe todas as audácias porque mais nenhum olhar o perturba. Vê-lo-emos mover-se num elemento parecido com a morte, o deserto. A sua palavra não levanta nenhum eco. E porque ela já não se dirige a ninguém, já não deve ser compreendida pelo que está vivo, deve enunciar uma necessidade não exigida pela vida mas pela morte, que a ordenará."

Jean Genet, "O Funâmbulo", in No Sentido da Noite, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: sistema solar, 2012, p. 78. 

Sunday, November 16, 2014

PARTE ALGUMA




"O que se desenrola no palco é sempre pueril. Às vezes a beleza do verbo engana-nos quanto à profundidade do tema. No teatro tudo se passa no mundo visível, mas num sítio que não está em parte alguma."

Jean Genet, "Carta a Jean-Jacques Pauvert", in No Sentido da Noite, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: sistema solar, 2012, p. 40. 

Friday, November 14, 2014

OS VICIOSOS



"Encolhendo os ombros, Mme. Lysiane dizia muitas vezes, para consigo:«Felizmente que há viciosos, meninas; isso permite aos mal engendrados conhecer o amor.»Era boa."

Jean Genet, Querelle, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, s,d,, p. 90. 

Thursday, November 13, 2014

OCASO (em memória de Manoel de Barros)



"Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas. 
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da 
     Marinha, onde nasci. 
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do
     chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios. 
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de
     estar entre pedras e lagartos. 
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz. 
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me
    sinto como que desonrado e fujo para o
    Pantanal onde sou abençoado a garças. 
Me procurei a vida inteira e não me achei - pelo
    que fui salvo. 
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância. 
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de
    gado. Os bois me recriam. 
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
    faço coisas inúteis. 
No meu morrer tem uma dor de árvore."


Manoel de Barros, O Encantador de Palavras, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2000, p. 43. 

Wednesday, November 12, 2014

A LUZ APENAS (ao divino Marquês)



"Aquele outeiro sombrio
Está de névoas coberto;
Escorre entre canas, perto, 
Fraco, e murmurando, um rio. 
Naquele negro pinhal
Como tocha funeral, 
Brilha modesta candeia, 
Que ao pastor pobre alumeia
Com a luz embaciada;
Vem por corvos arrastada
         A Tarde;
A luz apenas das estrelas arde!...
        Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!..."


Marquesa de Alorna (D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre), "Oferenda aos Mortos", in Poetas Pré-Românticos, 2ª ed. Coimbra: Atlântida, 1970, p. 73. 

Tuesday, November 11, 2014

CÍMBALOS


"As vossas faces são címbalos que nunca se chocam, mas que deslizam em silêncio um pela superfície do outro."

Jean Genet, Querelle, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 84. 

VINHA


"Sou um objecto de repulsão. Amei-o de mais, e o amor excessivo repugna. Um amor demasiado grande transtorna os órgãos e todas as profundezas - e o que sobe à superfície causa náuseas."

Jean Genet, Querelle, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 84. 

Sunday, November 9, 2014

LUZ INCENDIADA



"A mulher vacilava, rodando o botão entre os dedos. 
- É o mais parecido que achei. 
- Está bem, está bem - repetiu a outra reabrindo o estojo. Passou a esponja em torno dos olhos. E vagarosamente lançou um olhar em redor. Examinou as mãos. Sorriu: -  Veja, Matilde, minhas mãos estão ficando da cor da tarde, tudo nesta hora vai ficando rosado...
- O céu parece brasa, que bonito!
- A gente vai ficando rosada também - disse atirando a cabeça para trás. Expôs a face à luz incendiada do crepúsculo. - E riu de repente: - Acho a vida tão maravilhosa!
- Maravilhosa?"


Lygia Fagundes Telles, "Um Chá Bem Forte e Três Xícaras", in Antes do Baile Verde, Lisboa: Círculo de Leitores, 1974, p. 121. 

Friday, November 7, 2014

DISFARCE



"O homem que veste a farda de marujo não obedece somente à prudência. O seu disfarce provém do cerimonial que preside sempre à execução dos crimes premeditados. Podemos começar por dizer o seguinte: envolve o criminoso em nuvens, desliga-o de uma linha de horizonte em que o mar tocava o céu: em longas passadas ondulosas e musculadas fá-lo avançar sobre as águas, personificar a Ursa Maior, a Estrela Polar ou o Cruzeiro do Sul"

Jean Genet, Querelle, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa- América, s.d., p. 11. 

Thursday, November 6, 2014

MONSTRO



"A sua vida é toda de sonho e no fundo da alma inocente pressinto outra coisa dolorosa - outra coisa monstruosa que não cabe no mundo..."

Raul Brandão, O Pobre de Pedir, Lisboa: Editorial Comunicação, 1984, p. 134. 

Wednesday, November 5, 2014

BONDADE HUMANA


"Bom. Talvez não haja ninguém bom. Inteligente e bom. Talvez só sejam bons aqueles sobre os quais pesa uma montanha de inutilidades."

Raul Brandão, O Pobre de Pedir, Lisboa: Editorial Comunicação, 1984, p. 118. 

Tuesday, November 4, 2014

GNOSIS



"Conheces-te a ti próprio - eis o que é difícil. Ainda posso conhecer os outros, mas a mim mesmo não consigo conhecer-me. Um fio - instintos e um fantasma... Dos outros faço ideia mais ou menos aproximada, de mim mesmo não faço ideia nenhuma."

Raul Brandão, O Pobre de Pedir, Lisboa: Editorial Comunicação, 1984, p. 115. 

Monday, November 3, 2014

MIRÍADES


"Assim, poderia cada um contemplar em vida o seu próprio fantasma, se lhe fosse dado vê-lo antes de baixar à sepultura. Sinistra entrevista numa sala escura e isolada de um velho edifício! O sibilar do vento faz estremecer as vidraças durante a sua misteriosa viagem. Porque donde ele vem e para onde vai, homem nenhum conseguiu ainda sabê-lo, desde que o mundo é mundo! O que é certo é que o seu caminho é alumiado por miríades de estrelas que cintilam através do espaço eterno, onde o nosso globo não é mais que um grão de areia, e a sua velhice uma infância!"

Charles Dickens, O homem e o espectro, trad. Maria Graciette Alves, Lisboa: Unibolso, s.d., pp. 38-39. 

ESPECTROS




"O seu rosto estava espantosamente pálido e talvez o tornasse ainda mais branco a azulada luz do fogo. Era formosa, mas a sua beleza parecia estiolada por preocupações e ansiedades. Tinha o aspecto de uma pessoa acostumada à dor mas a quem a dor não pode vencer, pois ainda havia nela o ar predominante de resolução orgulhosa e indomável. Tal foi, pelo menos, a opinião que formou meu tio, e ele considerava-se psicólogo, mesmo que fosse de espectros."

Washington Irving, Espectros, trad. José Barão, Lisboa: Inquérito, 1943, p. 34.