Friday, June 30, 2017

DEFLAGRA



"... o mar de que deflagram
as ondas por acção da memória."


Luís Miguel Nava, Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 75. 

Thursday, June 29, 2017

PHONÊ



"BARCOS - e, se me lembro bem dos búzios
debruço-me nos budas, beatifico os ecos
no dorso das aranhas por desérticos
tectos que vibram címbalos nos tímpanos!


António Barahona, Rizoma, Lisboa: Guimarães Editores, 1983, p. 30. 

Wednesday, June 28, 2017

FOGACHOS



"Morgado - Amada Hermenegilda! O meu coração é vosso. Dizei-me se o vosso coração é meu. 

D. Hermenegilda - Isso veremos. A gente, como diz lá o ditado, enquanto anda por este mundo ninguém sabe para o que nasceu."


Camilo Castelo Branco, O Morgado de Fafe Amoroso, Lisboa: Círculo de Leitores, 1979, pp. 150-151. 

O FEIO


"Pois tudo o que é amorfo, sendo por natureza apto a receber um formato e uma forma, se permanece impartícipe da razão e da forma, é feio e externo à razão divina: e isso é o inteiramente feio. Mas também é feio aquilo que não é dominado por um formato e por uma razão formativa, porque a matéria não suportou ser completamente formatada pela forma. Pois a forma, advindo, compõe e coordena aquilo que vai ser algo uno e composto de muitas partes, e o conduz a uma completude una e nele produz a unidade através da concordância, pois, sendo ela una, o que foi por ela informado também devia ser uno, na medida de suas possibilidades, uma vez que é composto de múltiplas partes."


Plotino, Enéadas I, 6, 2, trad. José Carlos Bacarat Júnior, in Plotino, Enéadas I, II e III; Porfírio, Vida de Plotino (Volume I), Campinas:Universidade Estadual de Campinas/Instituto de Estudos da Linguagem [tese de doutoramento], 2006, p. 306. 

Monday, June 26, 2017

ETERNO FEMININO



"Bernardo - É teimar. Tenho entendido. Mãos à empresa. Cobrei espírito novo. Dentro de um ano hei-de estar casado com mulher rica, bonita, inteligente, virtuosa...

João - Alto lá! Isso é muita coisa. Assim também o Bocage a queria para um assunto duma décima é disseram-lhe que não! Observa tu que nem para dez versos há isso tudo junto! Rica? de acordo: isso é possível. Inteligente? Isso não tira nem dá. Há opiniões a esse respeito, mas eu não tenho nenhuma; porém, sempre te direi que entre homem e mulher há igualdade de direitos, Formosa? Pieguice e contra-senso! Mulher formosa é sempre a mesma coisa, e aos olhos do marido perde pouco a pouco o prestígio da beleza. Mulher feia, com a continuação da convivência, vai perdendo a fealdade, e chega a parecer galante. As mulheres feias têm inspirado ardentíssimas paixões. Dizem que elas têm uma compensação de graças que lhes vão lavrando raízes no coração. Eu não sei se é no coração, se no fígado; o que posso asseverar-te é que tenho visto mulheres formosas apagarem muitos incêndios, e as feias atearem-nos. Dido, Helena e Cleópatra dizem que foram lindas mulheres por terem apaixonado Eneias, Páris e António. O que decerto não se sabe é se eram feias. Em quanto a virtuosa, meu caro Bernardo, a esse respeito tinha eu muito que dizer; mas os discursos são o espantalho da ação."


Camilo Castelo Branco, O Morgado de Fafe Amoroso, Lisboa: Círculo de Leitores, 1979, pp. 116-117. 

Sunday, June 25, 2017

CHAMAS



"D. Leocádia - Já ouviram cantar os anjos?

Pessanha - Em sonhos, já. Ouvem-se os anjos em sonhos, quando adormecemos com a alma cheia da voz melodiosa da mulher amada.

Baronesa, à parte - Que palavreado!

Pessanha - Vossa excelências, se nunca ouviram em sonhos as harmonias dos anjos, é que ainda não amaram daquele amor que nos repassa a alma das músicas de Anfião e Orfeu!

D. Leocádia, irónica - Sublime, magnífico, primo!

1.ª Dama - Os meus anjos cantam muito desafinados.

2.ª Dama - Os meus constipam-se nos gelos da alma."


Camilo Castelo Branco, O Morgado de Fafe em Lisboa, Lisboa: Círculo de Leitores, 1979, p. 10. 

Saturday, June 24, 2017

PAIRAR


"Passemos por cima destas experiências, que constituíam para mim outros tantos prazeres, prazeres por de mais simples no entanto para serem explicados. Mais uma vez: a verdadeira felicidade não se descreve; sente-se e sente-se tanto mais quanto menos se pode descrever, porque não resulta de um concurso de factos, é um estado permanente. Repito-me frequentemente, mas repetir-me-ia bem mais se dissesse a mesma coisa todas as vezes que esta me vem ao espírito."

Jean-Jacques Rousseau, Confissões, VI, 2.ª ed., trad. Fernando Lopes Graça, Lisboa: Portugália Editora, 1964, p. 233. 

Friday, June 23, 2017

RAÍZES


"De resto, não é extravagante sugerir que o belo e o sagrado encontram-se ligados nas nossas emoções e que ambos têm a sua origem na experiência da encarnação, que atinge a sua maior intensidade nos nossos desejos sexuais. Portanto, por via diferente, chegámos a uma conclusão que podemos, sem demasiado anacronismo, atribuir a Platão: o interesse sexual, o sentido da beleza e a reverência pelo sagrado correspondem a estados de espírito próximos que se alimentam mutuamente e que têm uma raiz comum."

Roger Scruton, Beleza, trad. Carlos Marques, Lisboa: Guerra & Paz, 2009, p. 59. 

Thursday, June 22, 2017

EXPOSIÇÃO


"Creio que foi desde que experimentei aquele jogo maligno dos interesses ocultos em que esbarrei toda a vida e que provocou em mim uma bem natural aversão pela ordem aparente que os gera."

Jean-Jacques Rousseau, Confissões, II, 2.ª ed., trad. Fernando Lopes Graça, Lisboa: Portugália Editora, 1964, p. 88. 

Wednesday, June 21, 2017

A ATENÇÃO


"Os seus ouvidos atentos distinguiam os sons apenas imperceptíveis vindos do mar, aparentemente imóvel. O ruído raspante da ressaca sobre a areia e o entrecortado breve e íntimo som as pequenas vagas quebrando de encontro à imobilidade petrificada das rochas, o grito agreste e longínquo das gaivotas... A vida da mulher considerada com lucidez perdera qualquer espécie de sentido e transformara-se numa asfixiante fantasmagoria... mas todos esses problemas nesse preciso instante ocupavam um oculto espaço na sua alma. O tépido vento do leste despenteava-lhe os cabelos castanhos curtos e abundantes."

Graça Pina de Morais, A Mulher do Chapéu de Palha, Lisboa: Antígona, 2002, pp. 11-12. 

Tuesday, June 20, 2017

FENDAS



"A casa abre fendas dos pés à cabeça
E ergo-a como quem necessita de estancar o sangue
Não consigo libertá-la da dinamite que trouxe das pedreiras
- Os veios caudalosos das pedras mais urgentes
A circulação em todos os compartimentos. 

O miolo do lume é de líquido quente como o sangue

Se estivesse bom tempo - prometi - para a travessia
Passaríamos devagar a linha
do horizonte.

Carrego a casa como um fardo
Carrego-a como promessa e o rasto 
Carrego a explosão da pedreira nos montes

O que sangro

Para o tempo da colheita queria um jumentinho
Costurar a casa tábua a tábua, encerar o soalho
Estendê-lo com passadeiras por dentro e por fora
De mim. Calcetar-me e aplanar-me e pensar
Vem

Virias - calculo, e embalo a casa
O baloiçar que aprendeu nos ventos - 
Estendendo a linha vagarosa da viagem pelos anos
Puxando o jumentinho, o meu sangue sobre as fendas.


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, pp. 316-317. 

Monday, June 19, 2017

DITE


"Uns estão suspensos, expostos aos ventos etéreos; a culpa de alguns que estão conspurcados é lavada com  água sob um vasto abismo ou purgada pelo fogo. Cada um de nós sofre os seus Manes. De lá somos enviados para o amplo Elísio. Poucos habitamos os campos da alegria. Até que o longo passar dos dias, completado o ciclo de tempo, nos livra do labéu antigo e deixa puro o celeste sentido e o puro fogo do espírito. O deus evoca todas estas coisas, depois de terem feito girar durante mil anos a roda do tempo, para junto do rio Letes, em grande multidão, precisamente para que, esquecidas, voltem a contemplar a abóbada celeste e comecem a ter o desejo de regressar aos corpos."

Vergílio, Eneida,VI, 738-769, trad. Luís M. G. Cerqueira, 4ª ed., Lisboa: Bertrand Editora, p. 165. 

OS ACONTECIMENTOS



"Caminhavam, envoltos na escuridão da noite solitária, pelo negrume, através das vazias moradas de Dite, dos reinos sem consistência, como quem vai por uma vereda de floresta, sob a ténue luz de uma lua bruxuleante, quando Júpiter esconde o céu com a escuridão e a noite negra tira a cor às coisas."


Vergílio, Eneida,VI, 249-80, trad. Luís M. G. Cerqueira, 4ª ed., Lisboa: Bertrand Editora, p. 149. 

Friday, June 16, 2017

CASA DO ASSOMBRO



"Tinha-se chegado ao limiar, quando a virgem diz:
- É altura de interrogar os Fados. O deus, eis o deus!
E subitamente, enquanto assim falava diante das portas, alterou-se-lhe a fisionomia, mudou de cor, espalhou-se-lhe o cabelo em desalinho, e começa a ofegar, o seu fero coração entumesce de frenesim, parece maior e a sua voz não soa como se fosse mortal, pois é bafejada pela divindade que se aproxima cada vez mais. 
- Demoras nos votos e nas preces, Eneias? Demoras? Pois antes não se abrirão as grandes portas da casa do assombro."

Vergílio, Eneida,VI, 47-48, trad. Luís M. G. Cerqueira, 4ª ed., Lisboa: Bertrand Editora, pp. 142-143.

Wednesday, June 14, 2017

MELANCOLIA


"Cessou a sua fala e ocultou-se nas densas sombras da noite. Aparecem os semblantes cruéis e o poder grande e adverso dos deuses."

Vergílio, Eneida, II, 623, trad. Luís M. G. Cerqueira, 4ª ed., Lisboa: Bertrand Editora, p. 59. 

Tuesday, June 13, 2017

NATURGEMÄLDE


"Ao mostrar as analogias inesperadas, o Ensaio, com a sua gravura do Naturgemälde, revelava uma rede da vida previamente invisível. A conexão era a base do pensamento de Humboldt. A natureza, escreveu, era uma «reflexão do todo», e os cientistas tinham de olhar para a flora, a fauna e os estratos globalmente. Falhar esse objetivo, prosseguia, equivaleria a transformarem-se esses geólogos que construíam o  mundo inteiro «de acordo com a forma das colinas mais próximas que os rodeassem». Os cientistas tinham de abandonar os seus sótãos e viajar pelo mundo."

Andrea Wulf, A Invenção da Natureza - As aventuras de Alexander von Humboldt, o herói esquecido da ciência, trad. Pedro Vidal, Lisboa: Temas e Debates, 2016, p. 177. 

Sunday, June 11, 2017

JAZ


"Foi este o fim da vida de Príamo, esta a morte que o levou, outorgada pela sorte, vendo Tróia incendiada e Pérgamo por terra. Ele, que fora outrora o altivo senhor de tantos povos e terras da Ásia, jaz na praia, uma massa grande e inerte, a cabeça separada dos ombros, um cadáver sem nome." 

Vergílio, Eneida, II, 554, trad. Luís M. G. Cerqueira, 4ª ed., Lisboa: Bertrand Editora, p. 58.

ENFRENTE


" - No mundo há só uma certa quantidade de bondade, como há só uma certa quantidade de luz - continuou ele em tom comedido. - Nós lançamos uma sombra em qualquer coisa quando estamos de pé e não vale a pena mudar de sítio para salvar coisas, porque a sombra segue-nos sempre. Escolhe um sítio onde não causes mal... sim, escolhe um sítio onde não possas prejudicar muito e fica aí, custe o que custar, enfrentando a luz do Sol."

E. M. Forster, Um Quarto com Vista, trad. Manuel de Seabra, Lisboa: Relógio D'Água, 2011, p. 156.

Friday, June 9, 2017

FLORIR



"Os lábios pequeninos
São brancos de perfume

E rodeiam
Os pés de um cavalo
Que morre galopando

Uma crina 
Branca
A florir



Daniel Faria, "A Casa dos Ceifeiros", in Poesia, ed. Vera Vouga, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 408. 

Thursday, June 8, 2017

REGRESSOS



" - O Jardim do Éden - continuou o senhor Emerson, ainda a descer -, que vocês situam no passado, está realmente para vir. Entraremos nele quando deixarmos de desprezar os nossos corpos. 
O senhor Beebe recusava-se a situar o Jardim do Éden fosse onde fosse.
- Nisto - não em outras coisas - nós, os homens, vamos à frente. Desprezamos o corpo mais do que as mulheres. Mas só quando formos camaradas, entraremos no Jardim. 
- Vamos, então e esse banho? - murmurou Freddy, aterrado ante a massa de filosofia que se estava a aproximar dele.
- Eu creio num regresso à Natureza. Mas como podemos nós regressar à Natureza se nunca estivemos com ela? Hoje acho que temos de descobrir a Natureza. Depois de muitas conquistas, atingiremos a simplicidade. É a nossa herança."


E. M. Forster, Um Quarto com Vista, trad. Manuel de Seabra, Lisboa: Relógio D'Água, 2011, p. 131.

Wednesday, June 7, 2017

PILARES



"«Erguei uma Tenda em volta, de cortinados densos, 
Prendei o vácuo entre cordas e pilares, 
Para os Eternos não os verem mais.»"


William Blake, Primeiro Livro de Urizen, 2ª ed., trad. João Almeida Flor, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 51. 

Monday, June 5, 2017

VEDUTA



"Ele submeteu-se. Naturalmente. Os homens bons primeiro, as violetas depois. Continuaram através do matagal, que se tornava cada vez mais espesso."

E. M. Forster, Um Quarto com Vista, trad. Manuel de Seabra, Lisboa: Relógio D'Água, 2011, p.  73. 

Sunday, June 4, 2017

INGESTÕES


"- Ah! Que ides fazer?
- Comer esta galinha - tornou-lhe o homem da múmia.
- Não o façais - disse-lhe o gangárida. - Pode acontecer a alma da defunta ter passado para o corpo desta galinha e vós não quereis, por certo, correr o risco de comer vossa tia. Cozer galinhas é um ultraje da natureza.
- Que quereis vós dizer com a vossa natureza e as vossas galinhas? - tornou o colérico egípcio. - Adoramos um boi e nem por isso deixamos de comer boi."


Voltaire, Zadig ou o destino - História Oriental, trad. João Gaspar Simões, Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 55. 

Saturday, June 3, 2017

DA COMPREENSÃO



"Mas, embora tivesse evitado o ator principal, o cenário infelizmente permaneceu. Charlotte, com a complacência do destino, conduziu-a do rio à Piazza Signoria. Ela nunca acreditaria que umas pedras, uma loggia, uma fonte, a torre de um palácio, teriam tal significado. De repente, compreendeu a natureza dos fantasmas."

E. M. Forster, Um Quarto com Vista, trad. Manuel de Seabra, Lisboa: Relógio D'Água, 2011, p. 54.

Thursday, June 1, 2017

DEUCALIÃO & PIRRA (em homenagem a Armando Silva Carvalho)



"Oiço a secreta respiração da rua.
Uma mancha de sol espalhou-se no papel
e ensina-me a não acumular a vida. 
Mas depressa se afasta essa nódoa de luz. 

Ou será que regressa?

Não sei, só sei que existe a rua
com seus leves rumores
de energia dispersa. 
E que a memória chega e desaparece
carregada de dor, traindo
a natureza. 

O tempo consumiu os sentimentos
e só o ar percorre 
o pensamento vão de que algo permanece:
a ilusão da beleza, o frágil monumento da palavra, 
o trabalho da terra que nasce de eu olhar
a água proibida. 

Oh, as flores da paciência
e da paixão
mortas sobre a mesa. 

Alimentos do fogo no mover da mão
reflexos e refluxos da pobreza 
de Deus
na minha vida."


Armando Silva Carvalho, "Os Elementos", in Verbo - Deus Como Interrogação na Poesia Portuguesa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, pp. 170-171.