Friday, November 30, 2012

A DERIVA DA LUZ - NOVEMBRO


"Descobre-se Novembro. A nostalgia
desenvolve-se até se instituir em única
luz. Em vigília
a deslocar a sua
concentração para a longínqua
fronteira aonde se dissipa a bruma.
E fica Novembro. Fica,
como que pátria e urna
derivando cristalina,
para o sítio onde as vozes cantam múltiplas
vivacidades contíguas
emergindo do cerne das colunas.
E mortos e vivos se resignam
a ouvir-se em timbre de expansivas urnas
sob a deriva da luz da nostalgia
com que Novembro vai tecendo a bruma."
  Fernando Echevarría, "Sobre os Mortos", in Poesia 1987-1991, Porto: Edições Afrontamento, 2000, p. 163.

Thursday, November 29, 2012

SABEDORIA


"O sisudo e o sandeu,
tudo vi que tinha fim,
e disse então antre mim:
«Que me presta o saber meu?»
Inorantes e prudentes,
todos tem ua medida:
na morte nem nesta vida
não vos vejo diferentes."
 
Luís da Silveira, "A um propósito seu, em que segue Salomão no «Eclesiastes»", in Antologia do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, selec. e org. Maria Ema Tarracha Ferreira, Lisboa: Ulisseia, s.d., pp. 241-242.

Wednesday, November 28, 2012

OS GATOS DE LEÇA DA PALMEIRA


"- Os meninos ricos do colégio também me batem.
- Morde-lhes, filho.
- E os ricos não repartem?
- Os ricos dão esmola, mas é para rebaixar a gente.
- Os ricos são maus?
- Como as pedras. Ninguém neste mundo se importa com as desgraças dos outros, senão para se consolar. Cada um por si. E quem tem dinheiro tem tudo. Este mundo é de quem mais apanha e o céu é de todos. - Às vezes também diz: - Este mundo é uma bola, partido ao meio dá duas gamelas. - Às vezes também ri - e o seu riso mete medo."
  Raul Brandão, A Farsa, Ed. José Carlos Seabra Pereira, Lisboa: Relógio D'Água, 2001, p. 90.

Tuesday, November 27, 2012

TERRÍVEL HORIZONTE


"Olhai agora ao cair quotidiano da tarde
A linha humana dessa fronte
Aí qualquer coisa começa
Não há na natureza à volta tão terrível horizonte
nem nada que se pareça."
  Ruy Belo, Aquele Grande Rio Eufrates, 5ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1996, p. 40.

Monday, November 26, 2012

ONDE JÁ O CORPO SE DILUI


"Talvez a ideia
simples
do silêncio
e só a ideia
simples, como angústia,
encha de pureza
o fogo alarve
e se emocione
nas ruínas.

Aqui.

Onde já o corpo
se dilui
numa resignada
e triste
numa mansa
e débil
e sempre resignada
disformidade:

na noite
sufocada
pela penumbra."
Laureano Silveira, Caprichos, Porto: Limiar, 1987, p. 21.

Sunday, November 25, 2012

ORAÇÃO PAGÃ


"Ao largo, sobre barcos que pareciam fazerem um só corpo com as águas, os pescadores estavam cantando as Vésperas. Cantavam como mortos, abatidos pela paz daquela hora e, ainda que olhassem para as igrejas, a sua voz caía sobre o mar e ardia levemente, como um óleo, tocada pelo sol que se enganava e se acercava a receber aquilo que lhe parecia uma oração pagã."
  Hélia Correia, Lillias Fraser, Lisboa: Relógio D' Água, 2001, p. 73.

Saturday, November 24, 2012

O DESACORDO COM O MESTRE


"Piramidal e pétrea, cor de aurora
na de entre chuva matinal distância,
do plaino mar levanta-se mosteiro
a que Merveille chamam. Para entrar-se
há que subir degraus que não acabam:
a tanta penitência não resiste
maravilha nenhuma deste mundo;
é melhor vê-la ao longe, na distância,
piramidal e pétrea, cor de aurora."
  Jorge de Sena, Sequências, Lisboa: Moraes Editores, 1980, p. 63.

Friday, November 23, 2012

CAPRICHO


"(...)
Se, ao menos, os teus dedos
pudessem colher rosas
em vez de atormentarem
o sono da morte
o seu leve pairar
tranquilo
sobre tudo...
(...)"
  Laureano Silveira, Caprichos, Porto: Limiar, 1987, p. 54.

Wednesday, November 21, 2012

INCÓLUME


"Ora da névoa e da lama,
Trágicas mãos, mãos ardentes,
Mãos de angústia e resistência,
Incólume, erguem a chama
Que de sempre aos céus reclama,
Para os mortos existentes,
Vida!, e não só existência..."
José Régio, "Os Cristos", in Fado, Lisboa: A Bela e O Monstro Edições, 2011, p. 113.

Tuesday, November 20, 2012

O MARMELEIRO


"«É verdade, porra, se não fosse o anjo sem cara que ia pousando nos ramos e os partia, eu não estava aqui agora. O que mais me lixa é que mesmo que eu lhe desse pauladas para o afastar, o pau passava por ele sem lhe tocar», dizia na taberna, meio bêbedo e cansado diante do riso de todos. «O anjo é o pai de todos os pássaros que me vão comer!»"
José Riço Direitinho, "O Amieiro" in A Casa do Fim, 3ª edição, Porto: Asa, 2007, p. 57.

Monday, November 19, 2012

DA PAIXÃO


"A Escola Flamenga é o açougue da peixaria, quando não é os quartos de carne fresca nos ganchos de talho do Rubens... É boa altura para falar dos Vélázquez! Podem as suas infantas ter caras de cera e cabelo de seda desfiada; podemos assim mesmo apaixonar-nos por essas bonecas. Há reflexos de autos-da-fé nos matizes e nos cetins dos seus vestidos; e as rosas que elas agarram com desdém na ponta dos dedos, essas rosas são vermelhas com todo o sangue dos judeus degolados no limiar das catedrais. E com isto tão deliciosamente escrofulosas!... Basta este Vélázquez para pintor das velhas aristocracias!"
Jean Lorrain, O Senhor de Bougrelon, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: sistema solar, 2012, p. 41.

Sunday, November 18, 2012

O FEITIÇO


"E nesta altura o Senhor de Bougrelon, que até então estivera calado:
- Não sentem como eu, senhores, o feitiço das modas antiquadas, o encanto doloroso das coisas antigas ainda vivas? Sim, porque estou a ver-vos empalidecidos por uma emoção poderosa, já que ela se mantém em silêncio. Ter-vos-ia enganado quando disse: preparem-se para o sofrimento? Perante as adoráveis mortas com uns quantos adornos que se impõem ao olhar, não sentem aqui a sua presença mais forte do que à frente do verniz ou do embaciado de um retrato? Ah! O sortilégio dos tecidos gastos, dos langores patrícios de todas as joalharias de seda e cetim!
«Se reina aqui uma atmosfera de igreja (porque não será um respeito de lugar santo aquilo que sentimos?) é por flutuar, palpável e invisível, a imperiosa alma de velhas aristocracias. Que graça autoritária, que altivez nas pregas destes vestidos, que elegância inata nestas anquinhas tufadas, que bela audácia no próprio ridículo destas cabeleiras! É toda uma sociedade desaparecida que eu aqui reencontro porque a conheci. Estou em minha casa, eu. Um camarim de Mortas, de facto, mas de mortas vivas porque sei as palavras que dão corpo a estes trapos, sei as palavras de amor e de carícia que reacendem aqui sorrisos e olhares; porque estas Mortas regressam, sim, estas Mortas regressam, senhores, porque eu as amo, e por saberem isso elas obedecem-me; só o amor ressuscita os mortos.»"
 
Jean Lorrain, O Senhor de Bougrelon, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: sistema solar, 2012, pp. 48-49.

Saturday, November 17, 2012

ILUMINAÇÃO


"Jurava que um anjo se tinha metido de permeio, partindo um a um todos os ramos da árvore a que ele ia tentando atar a corda. Era inevitável estar agora vivo, três dias depois de ter adormecido sob o amieiro e sonhado com a sua morte atroz.
Desde essa manhã não mais conseguira tornar a fechar os olhos, com medo que a morte lhe visitasse outra vez os sonhos; mantinha-se alerta para afastar com um pau todos os pássaros que se aproximassem."
  José Riço Direitinho, "O Amieiro" in A Casa do Fim, 3ª edição, Porto: Asa, 2007, p. 55.

Thursday, November 15, 2012

IN THE HOLLOW ROUND OF MY SKULL


"Senhora, três leopardos brancos sentavam-se debaixo de um zimbro
À friagem do dia, tendo-se alimentado até à saciedade
Das minhas pernas do meu coração do meu fígado e do
conteúdo
Do círculo oco da minha caveira. E Deus disse
Hão-de viver estes ossos? hão-de viver
Estes ossos? E aquilo que fora contido
Nos ossos (que estavam secos) disse chiando:
Por causa da bondade desta Senhora
E por causa da sua beleza, e porque
Em sua meditação venera a Virgem,
Brilhamos nós com fulgor intenso. E eu que aqui estou
desmembrado
Encomendo os meus actos ao olvido, e o meu amor
À posteridade do deserto e ao fruto da cabaça."
 
T.S. Eliot, Quarta-Feira de Cinzas, trad. Rui Knopfli, Lisboa: Relógio D'Água, 1998, p. 13.

Wednesday, November 14, 2012

DIA DE AMADEO


"Não perguntem agora como lhe foi a vida, com que espécie de filamentos se manufacturou a tessitura da biografia a escrever. Quando a passagem é tão curta como esta, não será que tudo se reduz a um dia único, lavado e sem heroísmo assinalável, nele se degustando apenas o tegumento que não amadureceu? De Amadeo, como de outros, poderemos dizer que oscilou do apetite à renúncia. Nem lume nem gelo o tiranizaram alguma vez, porque incólumes de intempéries ficam os homens missionários."
  Mário Cláudio, Amadeo, Lisboa: Publicações Dom Quixote / Planeta DeAgostini, 2000, p. 133.

Tuesday, November 13, 2012

LACRYMAE NATURAE


"A Natureza não era mais do que o cérebro explodia pra todos os lados. Oh! puff! como Eu odeio a humanidade que se exprime! O que é o escândalo senão o Homem? escândalo no sentido obsceno! Há coisas mais obscena que a Humanidade? esta coisa que pretende dominar na terra e que escorrega em desordem plos continentes até secar em morte! Que forma terá a lesma que nos segrega? Nenhum outro excremento é venenoso como o da terra! Ignóbeis parasitas omnívoros que vos atulhais em impotência dentro de um penico inconvenientemente convencional! que pretendeis Vós com esa fúria de subjetivismo? pra que complicais tão enterradamente-viva a Ignorância? Deus certamente enganou-se em me nascer!"
  José de Almada Negreiros, K4 - o quadrado azul, Lisboa: A Bela E o Monstro Edições, 2011, pp. 34-35.

Monday, November 12, 2012

DESVENTURA MUI CERTA



"Para mim nasceo cuidado,
cuidado desaventura;
para mim nasceu tristura.

Começou meu mal no ver,
em ver foi seu começar;
a vista fez dessejar:
o dessejo e o querer
deram continuo cuidar.

Cuidando meu mal passado
- e no presente dobrado -
sei que nasceo antre nós:
o descuido para vós,
para mim nasceo cuidado.

Cuidado sem esperança
é o que eu por vós cuidei,
seguindo por firme lei
em mais mal menos mudança,
isto cuido e cuidarei.

A males que não tem cura,
esperar-lha da ventur
vã esperança seria,
que, esperando, creceria
cuidado, desaventura.

Desaventura mui certa
é nos começos errar,
e o presumir de acertar
no mais quem não acerta
é mui certo perigar.

Isto em mim bem se assegura,
porque o tromento me dura
que do começo nasceo,
e do que ele mereceo
para mim nasceo tristura."
  Bernardim Ribeiro, Obras Completas, vol. II- Éclogas, 3ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1982, pp. 187-188.

Sunday, November 11, 2012

MARTINHO


"Poucas vezes o outono se demorou
tanto nestas águas
sem as cobrir de névoa.
Dos montes desce
o vinho - não tardará nas ruas:
só ele é novo ainda, só
ele dança. Tu e eu
vamos com as folhas, as últimas
aves: tão leve
o que deixamos por herança."
  Eugénio de Andrade, "Rente ao Dizer", in Poesia, 2ª edição revista, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 472.

Saturday, November 10, 2012

CALCAR


"Ora eu bem sei que todos nós somos mais ou menos actores para levarmos a vida a termo. Tudo na natureza cumpre o seu destino com gravidade - só o homem é histrião. Apenas conheço duas maneiras de triunfar na existência: pela força, num áspero combate, ou pela manha aproveitando os defeitos dos outros. O triunfo para ela era uma côdea, e, para a obter, tinha de explorar a vaidade, o orgulho, as más qualidades da outra gente. Desengonçava-se para comer, amesquinhava-se para comer, fazia-se estúpida para comer.
A gente é humilhada na vida? - Gosta também de calcar e lá estava a Candidinha a propósito. Ter, de quando em quando, diante dos olhos aquela velha caricata e rota, sentir piedade, rir da abjecção - é mais que útil, é necessário. Conforta. A infâmia dos outros consola das nossas próprias infâmias."
  Raul Brandão, A Farsa, ed. José Carlos Seabra Pereira, Lisboa: Relógio D'Água, 2001, p. 70.

Friday, November 9, 2012

HAVER DE SER TUDO TERRA


"Hontem pos-se o sol, e a noute
cobriu de sombra esta terra.
Agora é já outro dia,
tudo torna, torna o sol;
só foi a minha vontade
para não tornar co tempo!

Todalas cousas, per tempo,
passam como dia e noute.
Uma só, minha vontade,
nam, que a dor comigo a aterra;
nela cuido enquanto ha sol,
nela em quanto nam ha dia.

Mal quero per um só dia
a todo o outro dia e tempo,
que a mim pôs-se-me o sol
onde eu só temia a noute;
tenho a mim sobre a terra,
debaxo minha vontade.

Dentro na minha vontade
nam ha momento do dia
que nem seja tudo terra:
ora ponho a culpa ao tempo,
ora a torno a pôr à noute.
No milhor pôs-se-me o sol!

Primeiro nam haverá sol
que eu descanse na vontade.
Pôs-se-me hua escura noute
sobre a lembrança de um dia,
inda mal, porque houve tempo
e porque tudo foi terra.

Haver de ser tudo terra
quanto ha debaxo do sol
me descança, porque o tempo
me vingará da vontade,
se nam que antes deste dia
ha de passar tanta noute!"
Bernardim Ribeiro, Obras Completas, vol. II- Éclogas, 3ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1982, pp. 182-183.

Thursday, November 8, 2012

UMA SOMBRA


"Num dia prazenteiro, nos confins da eternidade, enquanto as Sombras de todos os grandes escritores se repousavam nos Campos Eliseos em leitos de asfódelos e moli, felizes por nada mais ouvirem da boca uns dos outros do que abundantes citações das suas próprias obras (pois Júpiter tinha-lhes generosamente enfeitiçado os ouvidos), acercou-se-lhes, com ar triunfante, uma Sombra de todos desconhecida. Ela (pois a recém-chegada evidenciava tais sinais de sexo como o cabelo curto e um andar masculino) sentou-se no meio deles e, com um sorriso de superioridade, disse-lhes:
- Após séculos de opressão resgatei os meus direitos das garras dos deuses ciumentos. Na Terra fui a Poeta da Reforma e cantei para ouvidos desatentos. Agora aguardam-me a honra e a glória eternas.
Mas assim não aconteceu e depressa se tornou na mais infeliz das imortais, desejando em vão vaguear de novo na escuridão dos lagos infernais. Júpiter não lhe tinha enfeitiçado os ouvidos e o que ouvia dos lábios das Sombras bem-aventuradas era a citação incessante das obras delas. Como se isso não bastasse, foi-lhe negada a ventura de repetir os seus próprios poemas. Não se lembrava de um único verso, pois Júpiter tinha decretado que a memória deles habitasse nos penosos domínios de Plutão, enquanto parte do sistema."

Ambrose Bierce, Esopo emendado & outras fábulas fantásticas, trad. Fernando Gonçalves, Lisboa: Antígona, 1996, pp. 27-28.

Wednesday, November 7, 2012

VIRGEM E MÁRTIR


" - Não tenho dinheiro. O senhor sabe disso, padre.
- Deixemos as coisas como estão. Confiemos em Deus.
- Sim, padre.
Porque é que aquele olhar se tornava corajoso perante a resignação? Que lhe custava a ele perdoar, quando era tão fácil dizer uma, duas ou cem palavras, se elas fossem necessárias para salvar uma alma. Que sabia ele do céu e do inferno? No entanto, ele, perdido numa aldeia sem nome, sabia os que tinham merecido o céu. Havia um catálogo. Começou a percorrer os santos do calendário católico, começando pelos do dia: «Santa Numilona, virgem e mártir; Anércio, bispo; Santas Salomé viúva, Alodia ou Elodia e Nulina, virgens; Córdula e Donato.» E continuou. Já estava prestes a sucumbir ao sono, quando se sentou na cama: «Estou a recitar uma lista de santos como se estivesse a ver saltar cabras."
 
Juan Rulfo, Pedro Páramo, trad. António José Massano, Lisboa: Editores Reunidos Lda, 1994, p. 33.

Tuesday, November 6, 2012

AGORA É PIOR


"Agora estou nu e toda a mentira me é impossível; agora estou nu e todas as palavras são inúteis; agora estou nu diante da imensidade e não posso ao mesmo tempo com o céu e com o inferno. Agora é pior, agora tanto faz resistir um dia como um século. Agora é pior: não nos podemos ver. Como dois amigos que se encontram passados muitos anos, perdemos todos os pontos de contacto. Estamos aqui a representar: a verdade é que não nos podemos ver. Eis-nos bichos em frente de bichos."
  Raul Brandão, Húmus, Porto: Porto Editora, 1991, p. 180.

Monday, November 5, 2012

EXPETATIVA



"Mais há quem diga, escutando
O uivo da animalidade
Na carne humana que chora,
Que não é mais que ir sonhando
Um sonho sem realidade
Sonhar que o homem melhora."


José Régio, "Fado das Mulheres de Vida Fácil", in Fado, Lisboa: A Bela e O Monstro Edições, 2011, p. 92.

Friday, November 2, 2012

COISAS DESCABELADAS



"Atrás da insignificância andam os céus, os mundos, os vagalhões doirados. Anda o desespero. Anda o instinto feroz. Atrás disto andam as enxurradas de sóis e de pedras, e os mortos mais vivos do que quando estavam vivos. Atrás do tabique e das palavras anda a Vida e a Morte e outras figuras tremendas. Atrás das palavras com que te iludes, de que te sustentas, das palavras mágicas, sinto uma coisa descabelada e frenética, o espanto, a mixórdia, a dor, as forças monstruosas e cegas.
Em certas ocasiões, se as palavras e a insignificância desaparecessem da vida, só ficava de pé o espanto."
 
Raul Brandão, Húmus, Porto: Porto Editora, 1991, p. 21.

DIA DOS MORTOS


"Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos hábitos. Construímos ao lado da vida outra vida que acabou por nos dominar. Vamos até à cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, têm a espessura de montanhas. São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos conduzem. Toda a gente forceja por criar uma atmosfera que a arranque à vida e à morte. O sonho e a dor revestem-se de pedra, a vida consciente é grotesca, a outra está assolapada."

Raul Brandão, Húmus, Porto: Porto Editora, 1991, p. 15.