Sunday, April 30, 2017

REGRESSAR (para A.)



"Como pó de planura e ruas de Alentejo
ruínas e mosaicos pela sombra crua. 
Paguei para que as luzes se acendessem
em San Vitale e Teodora viesse
oposta a Justiniano abrindo os olhos
de faraós do Egipto. Os batistérios, 
os dois Apolinários e no azul geométrico
Gala Placídia dorme de romano fim
como Teodorico de ostrogodo a morte. 
Tudo isto é só por dentro ou luz do dia
ou luzes que se pagam de acordá-los. 
E o Dante dorme e perto dele o Byron
passou como Sodoma sobre o império extinto. 
Não luz se acende para vê-los - Dante
de Itália teve abrigo especial
contra os bombardeamentos da Segunda Guerra
(um belo pensamento): mais inda será
menos que pó com tantos italianos
acomentendo pelo mundo uma lectura Dantis?
E Byron - isles of Greece, o isles of Greece - 
memória só (como poesia sempre)
do amor que o rosto amado por amor não vê."

Jorge de Sena, "Exorcismos", in Poesia - III, Lisboa: Edições 70, 1989, p. 157. 

Saturday, April 29, 2017

OLHAR AS PEDRAS


"E o poeta demora-se olhando as pedras e 
        interroga-se
existem acaso
entre estas linhas estragadas as arestas os
        gumes os côncavos e as curvas
existem acaso
aqui onde se encontra a passagem da chuva do vento
        e do desgaste
existem o movimento do rosto o traçado do carinho
daqueles que diminuíram tão estranhamente dentro da nossa vida
desses que ficaram sombras de vagas e reflexões com
        a imensidade do mar
ou porventura não nada fica a não ser apenas o peso
a saudade do peso duma existência viva
aí onde agora sem substância ficamos vergando
como hastes do salgueiro abominável amontoadas dentro
        da duração do desespero
enquanto lenta a amarela torrente arrasta para baixo dentro da lama
         juncaria arrancada
imagem de rosto que se tornou mármore para baixo dentro da lama
         amargura para sempre.
O poeta um vazio."

Yorgos Seferis, Poemas Escolhidos, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Lisboa: Relógio d'Água, 1993, p. 101. 

Friday, April 28, 2017

RELÂMPAGOS


"Rama prosseguiu:
- Ignoro se há homens nascidos fora da Humanidade, ou se alguns deles são tão humanos que fazem os outros parecer irreais. Talvez uma divindade venha viver para a Terra, de vez em quando. O Joseph possui força sob uma visão confusa, tem a calma das montanhas e as suas emoções são tão selvagens, ferozes e vivas como os relâmpagos, e tão destituídas de racionalidade quanto eu me possa ter apercebido. Quando estiveres longe dele, tenta pensar nele e verás o que quero dizer com isto. A sua figura crescerá até se tornar enorme, até ser maior que as montanhas, e a sua força parecer-se-á com o irresistível impulso do vento."


 John Steinbeck, A Um Deus Desconhecido, trad. Samuel Soares, Bibliotex Editor, 2003, p. 98. 

Wednesday, April 26, 2017

CANTOS



"O mundo escrito recolhe a uma concha. A música é a nova linguagem do século. A controvérsia teológica adopta os estribilhos dos cantos devotos. A liturgia bizantina cria a forma dramática. A cruz, que na arte do fim da Antiguidade era um símbolo transcendente - como um troféu romano da vitória ou a estrela celeste numa abóbada de mosaico -, carrega agora com o corpo do Crucificado, por influência do patético canto sírio de Sexta-Feira Santa."

Peter Brown, O Fim do Mundo Clássico, trad. António Gonçalves Mattoso, Lisboa: Verbo, 1972, p. 193. 

Tuesday, April 25, 2017

IMPÉRIO


"Além da música, a imagem. A imagem visual, o retrato estilizado, torna-se um símbolo poderoso que fala diretamente ao homem da rua. A média dos homens perdera o contacto com o simbolismo erudito e literário que caracterizava a vida pública o Império."

Peter Brown, O Fim do Mundo Clássico, trad. António Gonçalves Mattoso, Lisboa: Verbo, 1972, p. 193. 

Monday, April 24, 2017

SONHOS


"Um retórico grego, Élio Aristides (118-180), legou-nos um relato completo dos seus sonhos. Chamou-lhes Histórias Sagradas, porque estes sonhos relacionam-se principalmente com revelações do deus Esculápio. São sonhos. São sonhos de terror e de exaltação religiosa. O seu autor estava convencido de que era o eleito do deus, de que a sua vida era um «drama divino», marcado passo a passo pelo carinhoso amor de Esculápio."

Peter Brown, O Fim do Mundo Clássico, trad. António Gonçalves Mattoso, Lisboa: Verbo, 1972, p. 51. 

Saturday, April 22, 2017

PRINCÍPIO GERADOR


"O que primeiro fora terror, veio, depois de um ano, à brandura das reminiscências que não mortificam, porque o tempo é o princípio gerador de imagens novas que desfazem sempre as impressões das velhas. O ferro abre profundos sulcos no córtice da árvore: depois, as fibras da camada, vigorosa de nova seiva, passam por cima, e deixam como sinal uma cesura impercetível."


Camilo Castelo Branco, A Neta do Arcediago, 4ª ed., Lisboa: Companhia Editora de Publicações Ilustradas, s.d., p. 23. 

Friday, April 21, 2017

ESTRELAS



"Ele contemplou-a calmamente, espantado com a sua expressão do seu próprio pensamento. 
- Como é que te lembraste disso, querida?
- Não sei. Porquê?
- Porque estava a pensar na mesma coisa... e há ocasiões em que as pessoas, as colinas, a terra, tudo, exceto as estrelas, são uma só unidade, e o amor delas é forte como a tristeza. 
- Então as estrelas não?
- Não, as estrelas nunca. Elas são sempre estranhas... às vezes demoníacas, mas sempre estranhas."

John Steinbeck, A Um Deus Desconhecido, trad. Samuel Soares, Bibliotex Editor, 2003, pp. 84-85. 

Thursday, April 20, 2017

NUNCA



" - Os mortos estão sempre presentes, señor. Nunca se vão embora.
- Não - disse sinceramente Joseph. - É mais que isso. O meu pai está dentro daquela árvore. O meu pai é aquela árvore! É uma coisa imbecil, mas quero acreditar nela. Importas-te de conversar um bocado comigo, Juanito? Tu nasceste cá. Desde que vim, desde que aqui cheguei, sei que esta terra está cheia de fantasmas. - Fez uma pausa, inseguro. - Não, não é isso. Os fantasmas são débeis sombras da realidade. Aquilo que vive cá é mais real do que as pessoas. Nós é que somos os fantasmas da sua realidade. Que se passa, Juanito? O meu cérebro está enfraquecido de ter estado dois meses sozinho?
- Os mortos nunca se vão embora - repetiu o outro."

John Steinbeck, A Um Deus Desconhecido, trad. Samuel Soares, Bibliotex Editor, 2003, pp. 29-30. 

Wednesday, April 19, 2017

HOMEM


Maldito seja o homem que confia no homem!» são palavras de Jeremias, que viveu há coisa de dois mil anos e passou o seu tempo a chorar a torpitude da sua raça, e da nossa, que piorou muito com a excrescência do contrato do tabaco e sabão, do cobrador da fazenda, e do conselho de saúde."

Camilo Castelo Branco, Duas Horas de Leitura, 8ª ed., Lisboa: Parecia A. M. Pereira, 1967, p. 148. 

Tuesday, April 18, 2017

SANTO




"É heresia, porque só em Roma se fazem santos. Aquele S. Lourenço, arcebispo de Braga, que deu cutilada bravia nos mouros, está beatificado: é dos de Roma. S. Hildebrando que cortou mais orelhas do que rezou Padre-Nossos, também é dos de Roma. Ora, cá os meus santos nunca ninguém se lembrou nem lembrará de os recomendar ao bispo de Roma, para que ele os inscreva na categoria dos santos, segundo o breviário."


Camilo Castelo Branco, Duas Horas de Leitura, 8ª ed., Lisboa: Parecia A. M. Pereira, 1967, p. 49. 

Monday, April 17, 2017

SUCESSO



"Te informaré de un suceso
que en dos palabras resumiré:
por tu amor me entraré en la tierra
y de la tierra por tu amor me partiré."


Abdulaíd Abuljair, Rubayat, trad. Clara Janés y Ahmad Taherí, Madrid: TrottA, 2003, P. 48. 

Saturday, April 15, 2017

LIÇÃO



"Agora, recolhei a vossas casas, leitores. Ide aos vossos bailes, cismai nos vossos cálculos de fortuna, fazei de conta que a vida é uma brincadeira,  folgai, e, se vos puderdes furtar um instante às vossas orgias ilustradas, vede se é possível fazerem-se dois santos fora de Roma. Todavia, tenho a fraqueza de dizer-vos que não vos vejo habilitados para santos dos que por cá se fazem assim, e dos que por lá se fazem, doutro modo. 
Não há, já agora, Matildes nem Paulos, pela mesma razão que não há conventos.Os cavalheiros do hábito de Cristo, esses há-de havê-los em todo o tempo; e os de hoje, mais medrados nas insígnias nobiliárias, gloriam-se de terem filhos dignos deles. 
Este mundo é o melhor de quantos há, diz o doutor Pangloss, e eu também."


Camilo Castelo Branco, Duas Horas de Leitura, 8.ª ed. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1967, p. 86. 

Thursday, April 13, 2017

VÉSPERAS


"Mas com a mesma segurança, apanhando-o de surpresa, viera a morte que nele calara e abafara qualquer futuro desespero."

Giorgio Bassani, Contos de Ferrara, trad. Inácia Dias Fiorillo, Lisboa: Edições Ática, 1964, p. 62. 

Wednesday, April 12, 2017

ARETÊ - PARA A MEMÓRIA DA DIVINA MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA



"Há um apólogo que diz 
que Arete habita em rochedos inacessíveis, 
na companhia de um coro sagrado de céleres ninfas. 
Porém não é visível aos olhos de todos os mortais,
- apenas aos daquele que, alagado de suor que devora o ânimo, 
chegar ao cume, graças à sua coragem."



Simónides, in Hélade - antologia da cultura grega, trad. e org. Maria Helena da Rocha Pereira, 5ª ed., Coimbra: 1990, p. 147. 

Saturday, April 8, 2017

ANTRO



"Pensamento, eu já não tenho palavras. 
Mas tu que és em substância?
algo que chora por vezes
e por vezes dá luz. 
Pensamento, onde estão as tuas raízes?
Na minha alma tresloucada
ou no meu ventre destruído?
És tão ousado voraz, 
consomes toda a distância;
diz-me que me volte
como fez Orfeu
olhando a sua Eurídice. 
para que possa perder-te
no antro da loucura."

Alda Merini, A Terra Santa, trad. Clara Rowland, Lisboa: Cotovia, 2004, p.  27. 

Friday, April 7, 2017

DO ALTO




"A Ciência. Não era esta a sua missão?
Fora certamente ele quem falara nisso, uma vez; e entretanto olhava para a sua frente, sem ver mais nada nem ninguém, sorrindo levemente.
 Era na verdade um olhar estranho, pobre Gemma! Como se as coisas e as próprias pessoas, desde a madrugada desse dia em diante ele as olhasse sempre assim: lá do alto, e quase fora do tempo."


Giorgio Bassani, Contos de Ferrara, trad. Inácia Dias Fiorillo, Lisboa: Edições Ática, 1964, p. 102. 

Thursday, April 6, 2017

CIRCUNFUSA



"Corpo, ludíbrio cinzento
com os teus sinais escarlates, 
por quanto tempo me manterás presa?
Alma circunflexa, 
circunfusa e incapaz, 
alma circuncisa, 
que fazes estendida no corpo?"


Alda Merini, A Terra Santa, trad. Clara Rowland, Lisboa: Cotovia, 2004, p. 31. 

Wednesday, April 5, 2017

RESERVA


"Ficou tão admirado ao saber que G... M... tinha conseguido seduzir Manon que, ignorando que eu contribuíra para o meu infortúnio, ofereceu-se para reunir todos os seus amigos a fim de empregar os seus braços e as suas espadas na libertação da minha amante. Fiz-lhe compreender que esse estrépito podia-nos ser pernicioso, a Manon e a mim. - Reservemos o nosso sangue - disse-lhe - para os extremos."

Abade Prévost, Manon Lescaut, trad. João Barreira, Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 94. 

Tuesday, April 4, 2017

CONOPEU


"Em torno ao pasto
mortal
nas orlas de Deus
silvam serpentes mordem o corporal
nos quatro ângulos do conopeu
retraem-se as folhas
dos céus
fendas danificam os pilares."


Cristina Campo, O Passo do Adeus, trad. José Tolentino Mendonça, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 69. 

Monday, April 3, 2017

PARA O DIVINO FERNANDO CAMPOS



"Uma grande serenidade inundou a minha alma. Sei agora quem sou. Sei o essencial."


Fernando Campos, A Casa do Pó, 4ª ed., Lisboa: Difel, 1986, p. 313. 

Sunday, April 2, 2017

MATERNO TERRORE



"Sobre a pedra angular
que estilhaça a morte
eleva-a à altura das lágrimas
e repousa-a
com materno horror
sobre estigmas, esses lábios
que curam
a vida."


Cristina Campo, O Passo do Adeus, trad. José Tolentino Mendonça, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 69. 

Saturday, April 1, 2017

AFECTO



"Consolava Manon pelo caminho, mas cá dentro sentia desânimo no coração. Matar-me-ia mil vezes se não tivesse nos braços o único ser que me prendia à vida. Era o único pensamento a amparar-me. 
- Ao menos é minha - dizia eu - ama-me, pertence-me. Por mais que Tiberge diga, não é um fantasma de ventura. Veria morrer todo o universo sem me importar, porquê? Porque não tenho o afecto mais alto. 
Este sentimento era verdadeiro, todavia, no tempo em que fazia bem pouco caso dos bens deste mundo, sentia ter ao menos precisão de uma pequena parte para desprezar ainda com mais altivez tudo o mais. O amor é mais forte que a fartura, mais forte que os tesoiros e as riquezas, mas tem necessidade do seu auxílio, e nada desespera mais um amante sensível do que ser por ele levado contra a vontade, à grosseria das almas vis."

Abade Prévost, Manon Lescaut, trad. João Barreira, Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 73.