Sunday, January 31, 2016

DONDE?


"Du Roy olhava para ela com interesse e perguntava a si próprio que desgosto, que dor, que desespero, podiam torturar aquele coração. Rebentava de miséria - isso era visível - e tinha talvez um marido que a moía com pancada ou um filho doente. Murmurou: «Pobres criaturas. Há tantas que sofrem assim!» Apoderou-se dele uma cólera contra a natureza implacável. Reflectiu depois que aqueles pobres diabos, pelo menos, acreditavam haver quem se interessava por eles lá em cima e que a sua identidade se encontrava inscrita nos registos do céu com as colunas do «Dever» e do «Haver»: «Lá em cima? Onde?»"

Guy de Maupassant, Bel-Ami, trad. Jaime Brasil, Lisboa: RBA Editores, 1995, p. 200. 

Saturday, January 30, 2016

FACTOTUM


"Jorge ria ao pensar naquele encontro. Dizia para si: «As igrejas servem-lhe para tudo. Consolam-na de ter casado com um judeu, dão-lhe uma atitude de protesto no mundo político, um ar de pessoa distinta na sociedade e um abrigo para os seus encontros galantes. O que é o hábito de se utilizarem da religião como duma coisa que serve para tudo! Se está bom tempo, é uma bengala; se faz calor, é um guarda-sol; se chove, é um guarda-chuva, e se a pessoa não sai, deixa-o à porta, no bengaleiro. Há centenas delas assim que se importam tanto do bom Deus como da primeira camisa que vestiram, mas não querem ouvir dizer mal dele, embora o tomem em certas ocasiões como alcoviteiro. Se lhes propuserem ir a uma hospedaria, consideram isso uma infâmia, mas parece-lhes muito simples ter encontros amorosos aos pés dos altares.»"

Guy de Maupassant, Bel-Ami, trad. Jaime Brasil, Lisboa: RBA Editores, 1995, p. 199. 

Thursday, January 28, 2016

DEVORA



"Um coiso que grita devora glorioso e natural."


emma santos, O Teatro, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Assírio & Alvim, 1981, p. 15. 

Wednesday, January 27, 2016

DESMESURA




"«A mim, ao Fogo, à Vida, ao Turbilhão!
Só morre quem tem medo à própria Vida; 
Nunca o que expira a arder de exaltação
E esperança desmedida.»"


Jaime Cortesão, Poesias-I, Lisboa: Portugália Editora, 1967, p. 80. 

Tuesday, January 26, 2016

BOULESIS


"As coisas cá fora asfixiam-me a voz e destroem a linguagem. Constroem no lugar das cidades as suas casas de pessoas importantes, as casas sem portas e sem janelas."

emma santos, O Teatro, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Assírio & Alvim, 1981, p. 40. 

Monday, January 25, 2016

THUMOS



"Os prédios das pessoas crescidas amolecem, desfazem-se, esboroam-se. A água sobe, cai dos telhados. Os polígonos tornam-se pólipo, poliedro, polyestereno e outras palavras deles que eu não sou capaz de pronunciar. De vez em quando incendeiam-se. É bonito. Aliviam-se, acalmam, respiram. Ficam aliviados. Eu abafo, sufoco. Asfixia."

emma santos, O Teatro, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Assírio & Alvim, 1981, p. 22. 

Sunday, January 24, 2016

EPITHUMIA



"As palavras estão velhas, ridículas. Mercadoria estragada, restos que por esquecimento se não limparam. Repugnante. As palavras ficam no exterior da cidade, nas zonas de entulho. Às palavras, lançam-se-lhes pedras, aos loucos, escarra-se-lhes em cima. As palavras loucas seguem o seu caminho, sozinhas, sem amor. Arrastam-se moribundas, vão para o hospital e pedem que as capem."

emma santos, O Teatro, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Assírio & Alvim, 1981, p. 41. 

COMENSAIS



"A seguir à sopa, serviram uma truta cor-de-rosa como a pele de uma rapariga, e os convivas começaram a conversar."

Guy de Maupassant, Bel-Ami, trad. Jaime Brasil, Lisboa: RBA Editores, 1995, p. 67. 

Friday, January 22, 2016

ABERTURA


"Todo aquele que não participa na Cidade é, na realidade, como um estrangeiro que acaba de chegar a esse meio. Se nalguns lugares se esconde esta distinção, fechando os olhos acerca dos domiciliados que usurpam a qualidade de cidadão, é para iludir e adormecer a sua malvadez."

Aristóteles, Tratado da Política, L.I, trad. M. de Campos, Mem Martins: Publicações Europa-América, 2000, p. 37. 

Thursday, January 21, 2016

REVER



"Após dez minutos de reflexão, decidiu deixar para o dia seguinte a página do começo do artigo e fazer, de imediato, uma descrição de Argel. Traçou no papel: «Argel é uma cidade muito branca...», sem conseguir dizer outra coisa. Revia, na memória, a cidade clara a descer, como uma cascata, de casas atarracadas, desde o alto da colina até ao mar; mas não encontrava uma palavra para exprimir o que tinha visto, o que sentira. Depois dum grande esforço, acrescentou: «É habitada em parte por árabes...» Atirou com a pena para cima da mesa e levantou-se."


Guy de Maupassant, Bel-Ami, trad. Jaime Brasil, Lisboa: RBA Editores, 1995, p. 35. 

OREXIS


"Único será, então, o princípio motor: o objecto que é desejado. Com efeito, se dois princípios, o intelecto e o desejo, estivessem eles próprios na origem do movimento, só poderiam ambos ser motores em virtude de um carácter comum. Mas, na verdade, verifica-se que o intelecto não se pode mover sem o apetite (já que a volição consiste numa forma de apetite e quando se move segundo o raciocínio, também se move por volição)."

Aristóteles, Da Alma, 433a20, trad. Carlos Humberto Gomes, Lisboa: Edições 70, p. 119. 

Monday, January 18, 2016

THROW ME TOMORROW



"Um facto, porém, podemos estabelecer: nascem os desejos do combate travado entre uns e outros, tal acontecendo quando a razão e os apetites atuam em sentido contrário; sendo tal facto próprio dos seres que possuem a percepção do tempo: move-nos, por conseguinte, o intelecto no sentido de podermos resistir ao futuro; o apetite, pelo contrário, move-nos unicamente na mira do imediato, parecendo o prazer do momento ser-nos agradável e bom absolutamente, de tal modo que não é possível vislumbrar aquilo que realmente acontece."

Aristóteles, Da Alma, 433b5-433b10, trad. Carlos Humberto Gomes, Lisboa: Edições 70, p. 120. 

Sunday, January 17, 2016

ESQUIVO



"Manobramos, esquivamo-nos à dificuldade, contornamos o obstáculo e batemos os outros por meio de um dicionário. Todos os homens são estúpidos como galinhas e ignorantes como carpas."

Guy de Maupassant, Bel-Ami, trad. Jaime Brasil, Lisboa: RBA Editores, 1995, p. 14. 

Saturday, January 16, 2016

COMO A VIDA



"Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas 
que deitamos fora
como a vida
porque achamos
que não presta

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a fé
porque achamos
que é pirosa"


Adília Lopes, Florbela Espanca Espanca, in Caras Baratas - antologia, Lisboa: Relógio d'Água, 2004, p. 188. 

Friday, January 15, 2016

CEIA



"A mesa, todos
interligados
pela realidade do alimento
pelo universo único
do ser
a mesa, todos
coexistem no júbilo
comungando a oferta pura das coisas."


Orides Fontela, Trevo (1969-1988), São Paulo: Duas Cidades, 1988, p. 242. 

Thursday, January 14, 2016

EM TERRA


"Sossegamos, no entanto, porque existem teses sólidas sobre a propagação de raios x, y ou z na exosfera terrestre que impedem, de certa forma, uma travessia tranquila do espaço terrestre. Afinal, o cosmos partilha a personalidade azeda do mar: quando menos se espera, um vagalhão destroça embarcações pesadas e modernas, enquanto um veleiro de 1930 cruza o Atlântico numa destreza de ginasta. Não há que reclamar, porque os caprichos da natureza alastram-se a tudo quanto pode ser explorado."
Valério Romão, Facas, Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2013, p. 36. 

Tuesday, January 12, 2016

PERSISTE


"A vida passa por mim como um turbilhão de facas e lasca-me a memória e a felicidade, arranca fatias de bom humor e não se vai embora por muito que eu lhe grite vai-te embora, ela não vai, é vida-sombra que queremos deixar à noite, onde não há luz, para podermos vesti-la de manhã e ver se mudou de cor, se está mais justa, se lhe talharam bolsos, se já assenta melhor no corpo, mas a vida é persistente mesmo às escuras, é uma sombra encalhada no meio de todas as outras e acordamos de manhã e está igual, está rota, deslavada, vida fato-macaco de pobre, vida-embarcadiço a olhar mar fora à procura de uma mudança no horizonte, à espera de poder gritar terra!, terra à vista! mas nunca aparece terra, somente uma faixa longa de oceano onde todas as esperanças do mundo dormem e se afogam."

Valério Romão, Facas, Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2013, pp. 12-13. 

Monday, January 11, 2016

STARDUST (em memória do Divino David Bowie)



"Os Fados, porém, foram implacáveis; e ela mais não pôde fazer que atirar por cima do ombro um beijo antes que Orlando partisse."

Virginia Woolf, Orlando, trad. Ana Luísa Faria, Lisboa: Relógio D'Água, 1994, p. 89. 

Sunday, January 10, 2016

CABEÇA PAGÃ


"Havia momentos em que a sua interlocutora lhe parecia uma delicada criatura de asilo - uma surpreendente surda-muda ou uma destas cegas com capacidade para trabalhar. A nobre cabeça pagã conferia-lhe privilégios que ela desaproveitava, e quando alguém lhe admirava o rosto ficava a pensar se o não fariam por haver um bem ateado incêndio no seu quarto. Era simples, amável e bondosa; inexpressiva, mas não insensível nem estúpida." 

Henry James, O Mentiroso, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2012, p. 37. 

Saturday, January 9, 2016

INTRUSÕES



"A realidade é um calhamaço insuportável?
Tragam-me então resumos. 
A vida que se leva é um filme inassistível?
Vejamos só os anúncios. 

São os limites do corpo intrusões malignas
de um demiurgo escroto?
O corpo não é preciso, e o espírito é impreciso:
eu não é um nem outro. 

Anda inconveniente a tal da poesia, 
a significar?
Nada como um bom significante vazio
para abolir o azar."


Paulo Henriques Britto, Formas do Nada, São Paulo: Editora Schwarcz, 2012, p. 18. 

Wednesday, January 6, 2016

JACENTE 3



"Vemos somente o repouso
como uma face neutra
além de tudo o que
significa.

(Mas se nos víssemos
no verbo totalizado
- forma que se concentra
além de nós - 

(Mas se nos víssemos
na contenção do ser
o repouso seria
expressão nítida.)

Vemos apenas
repouso: 
contenção da palavra
no silêncio."


Orides Fontela, Trevo (1969-1988), São Paulo: Duas Cidades, 1988, p. 69.

Tuesday, January 5, 2016

JACENTE 2



"O jacente
é mais que um morto: habita
tempos não sabidos
de mortos e vivos. 

O jacente 
ressuscitado para o silêncio
possui-se no ser
e nos habita."


Orides Fontela, Trevo (1969-1988), São Paulo: Duas Cidades, 1988, p. 68. 

Monday, January 4, 2016

JACENTE 1



"O jacente
é mais que um morto: habita
um dinamismo que se alimenta
de sua contenção pura. 

Jacente
uma atmosfera cerca
de tal força o silêncio

como se jacente guardasse
o gesto total do segredo."


Orides Fontela, Trevo (1969-1988), São Paulo: Duas Cidades, 1988, p. 68. 

Sunday, January 3, 2016

ARTE



"O que observou nesses três dias mostrou-lhe um Capadose fértil mas não mentiroso perverso, e que a sua admirável faculdade era exercida sobretudo em temas de reduzida importância directa. «É o mentiroso platónico», disse para consigo próprio: « é desinteressado e não actua com expectativa de ganho ou desejo de causar dano. Trata-se de arte pela arte, e é incitado pelo amor à beleza. Uma visão interior mostra-lhe o que as coisas poderiam ser, o que deveriam ser, e dá ajuda à boa causa com a simples substituição de uma nuance. De certo modo ponto, o que eu também faço!»"

Henry James, O Mentiroso, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2012, pp. 63-64. 

Saturday, January 2, 2016

STOA


"(Cézanne) Sabe? Gosto muito que Flaubert nas suas cartas se impeça rigorosamente de falar de uma arte com uma técnica que ele ignora. É muito dele... Não que eu deseje os pintores ignorantes. Pelo contrário. Nas grandes épocas sabiam tudo. Nos velhos tempos, os artistas eram os mestres do ensinamento da multidão. Olhe, está a ver além a Notre-Dame. A Criação e a história do mundo, os dogmas, as virtudes, a vida dos santos, as artes e os ofícios, tudo quanto nessa altura se sabia era ensinado pelo seu pórtico e pelos seus vitrais. Como em todas as catedrais da França, aliás. A Idade Média, como a mãe de Villon, aprendia a sua fé pelos olhos..."

O que ele me disse... por Joachim Gasquet, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2012, p. 93. 

Friday, January 1, 2016

ENGENHO



"O nosso passado é uma espécie de ameaça:
«Cuidado, estou de volta, que vos mato!»
Fecha-se o céu, agarrando o ácer: rosa - 
Que arda em chama! - erguida apenas para os olhos."


Arsenii Tarkovskii, «8 ícones», trad. Paulo da Costa Domingos (vrs. ingl.), Lisboa: Assírio & Alvim, 1987, p, 40.