Thursday, December 31, 2020

FINDA

 



"Nas nossas trevas não há um espaço para a Beleza. Todo o espaço é para a Beleza."


René Char, Furor e Mistério, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 271. 

NO INTERIOR DO SEU INTERIOR

 



"Aquele que declarou esta guerra em si próprio, está em paz com os seus semelhantes, e, embora seja por inteiro o campo de batalha mais violenta, no interior do seu interior reina uma paz mais activa do que todas as guerras juntas. E quanto mais reina a paz no interior do seu interior, no silêncio e na solidão central, mais se encarniça a guerra contra o tumulto das mentiras e da ilusão inumerável."


René Daumal, A Guerra Santa, trad. António Barahona, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 37. 

UN LOURD SILENCE

 


"então, um grande silêncio, um pesado silêncio dilatar-se-ia primeiro que tudo, um silêncio grávido de mil trovões."


René Daumal, A Guerra Santa, trad. António Barahona, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 17. 

Wednesday, December 30, 2020

A FARSA

 


"Não pôde ser deixado naquele estado à vista de todos. Na noite de 19, foi decidido levá-lo e depositá-lo na Capela das Febres para lhe dar uma sepultura provisória. A operação, contada por Burckard, transforma-se numa farsa macabra e sórdida: «Foi depositado perto de uma parede, num canto do lado esquerdo do altar. Esta tarefa foi realizada por seis carregadores muito rústicos, que se divertiam e injuriavam o papa e o seu cadáver, e dois mestres carpinteiros, que lhe fizeram um caixão demasiado estreito e curto. Não havia qualquer tocha ou iluminação, nem ninguém para cuidar do corpo, pelo que acabaram por fazê-lo entrar aos socos no caixão, deformando a mitra. Em seguida, cobriram o corpo com o tapete antigo já referido."


Ivan Cloulas, César Bórgia, trad. Victor Silva, Lisboa: Edições 70, 2009, p. 198. 

Tuesday, December 29, 2020

ELEVAÇÃO



"Antes de prosseguirmos, desejamos lembrar ao leitor a história da pedra que, atirada do alto de um monte, começa por deslizar devagarinho, rodeando obstáculos. Mas quando toca o termo da viagem e adquire força, vence grandes distâncias de cada salto, transpõe barrancos e muros e a sua carreira torna-se cada vez mais rápida e impetuosa à medida que se aproxima do momento de ser condenada a repouso eterno."


Walter Scott, A Aventura de Waverley, trad. António Vilava, Lisboa: Romano Torres, 1955, p. 385. 

Monday, December 28, 2020

LIMITE

 


"O reencontro é caloroso. Muito feliz por tornar a vê-los, o papa fá-los sentar nos degraus do seu trono. Após este episódio, a família marca encontro para o dia 22 de Maio, em S. Pedro, a fim de celebrarem o Pentecostes. Neste dia, para grande escândalo de Burckard, as damas de honor, para melhor desfrutarem do espectáculo, trepam, atrás de Lucrécia e Sancha, as estalas dos cónegos e vão instalar-se no ambão, onde se canta a epístola e o Evangelho. Longe de se melindrar, Alexandre alegra-se até ao riso: na Basílica venerável, que é a da autoridade suprema da Cristandade, parece ter sido ultrapassado o limite entre o cumprimento do ritual e o prazer dos sentidos."

Ivan Cloulas, César Bórgia, trad. Victor Silva, Lisboa: Edições 70, 2009, p. 64. 

Sunday, December 27, 2020

UNIÃO

 


"Quando, pois, Irmãos dilectíssimos, celebramos o Natal do Senhor, dia que foi escolhido, entre todos os dos tempos passados, conquanto a ordem dos acontecimentos materiais, como os tinha destinado o decreto eterno, já tenha passado, e a humildade do Redentor já tenha sido toda elevada à glória da majestade do seu Pai, «para que ao nome de Jesus, todo o joelho se dobre nos Céus, na Terra e nos infernos, e toda a língua confesse que Jesus é Senhor e tem glória igual à do Pai», contudo não cessamos de adorar o próprio parto da Virgem que nos traz a salvação; e aquele indissolúvel união do Verbo e da carne não menos a contemplamos deitada no presépio do que sentada no altíssimo trono de seu Pai."

S. Leão Magno, "Nono Sermão da Epifania do Senhor", in Sermões para o Natal, trad. pe. António Fazenda, Lisboa/São Paulo: Verbo, 1974, pp. 154-155. 

Saturday, December 26, 2020

DO CORAÇÃO E DE VONTADE

 


"O outro caso é o de Domingas Domingues, que apresenta uma história deveras interessante e bem complexa e elucidativa do contexto e das implicações da cura. De novo, na presença do túmulo da rainha e das testemunhas anteriormente referidas, compareceu Domingas Domingues, que narra o seu caso, referindo que em tempos «que não sabia quando» bebera uma sanguessuga e que devido a isso tinha frequentes «golfadas de sangue», que alguns diziam ser de uma dor que ela tinha, outros da referida sanguessuga.Para pôr fim a tal desgraça, aconselharam-na a ir à Fonte do Alfafar para beber da sua água, e que tal não resultara, e depois fora ainda a um barco, chamado o «veleiro», junto a Penela, e que igualmente bebera de uma água, que também não surtiu qualquer efeito. Depois foi a São Brás de Coumbra, e ainda a Santa Maria da Parede da Igreja de São Bartolomeu e nada disto resultou, até que foi aconselhada a ir junto do túmulo da rainha Isabel em Coimbra. Aí pedira-lhe «do coração e de vontade" que rogasse a Deus por ela e que a aconselhasse sobre o que fazer com o seu sofrimento, e lançando muito sangue sobre o túmulo sai-lhe pelo nariz a referida sanguessuga, ficando curada."

Maria Filomena Andrade, Isabel de Aragão, mãe exemplar, Lisboa: Círculo de Leitores, 2012, pp. 26-27. 

Friday, December 25, 2020

DIES NATALIS


"Contempla por entre os aloés e os dedos
A criança que acampou connosco agora
O menino que abre uma estrela e nos convoca
Ele contempla. Ele vem. Ele é um cedro que transborda"


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 205.

Thursday, December 24, 2020

ANTE O MISTÉRIO

 



"E ao anjo ela disse:
ante o mistério os meus olhos cerram-se porque na crença
como no amor há a rudeza

e por isso eu quis
que a palavra viesse da boca sôfrega e seca,

que ela fosse proscrita e bela
quis, para ela, o brilho lamacento da pobreza

Assim, escolherei um rosto de ácida doçura
com suas linhas rudes e sua cor morena

Eu canto a cidade negra e branca
incandescente e dura, prometida, sonhada, 
inconcedida"



Maria Andresen, O que Move o Silêncio do Cavalo e Anteriores Lugares, Lisboa: Relógio D'Água, 2020, p. 28. 

Wednesday, December 23, 2020

CUMULADO

 


"Sou o excluído e o cumulado de graças. Termina-me, beleza que aplainas, pálpebras ébrias mal cerradas. Todas as chagas mostram à janela os seus olhos de fénix despertos. A alegria da resolução canta e geme no outro da parede."

René Char, Furor e Mistério, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 89. 

Tuesday, December 22, 2020

A VIAGEM DA ENERGIA

 



"Vislumbro o dia em que alguns homens que não se julgarão generosos e absolvidos, visto que terão conseguido expulsar o desânimo e a submissão ao mal do trato com os seus semelhantes, ao mesmo tempo que terão atacado e dominado as forças da chantagem que de todas as partes os reclamavam, vislumbro o dia em que alguns homens empreenderão sem astúcia a viagem da energia do universo. E, como a fragilidade e a inquietude se alimentam de poesia, será exigido no regresso a esses altos viajantes que se dignem a lembrar-se."


René Char, Furor e Mistério, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 67. 

Monday, December 21, 2020

ANIVERSÁRIO

 


" - Trouxe-vos até aqui, capitão Waverley, não só por me lembrar de que a paisagem vos agradaria, como também porque as poesias montanhesas perderiam muito do seu valor sem o cenário que lhes compete. Servindo-me da linguagem poética da minha pátria, digo que o trono mais apropriado para a musa céltica é o outeiro solitário, envolto em neblina, embalado pelo murmúrio das águas. Aquele que a invoca deve preferir a rocha estéril ao vale arborizado e fértil, a solidão do deserto ao ruído dos palácios."

Walter Scott, A Aventura de Waverley, trad. António Vilava, Lisboa: Romano Torres, 1955, p. 131. 

Saturday, December 19, 2020

O ENCOBERTO

 



"Eu tinha a vaga esperança de que surgisse um sismo ou um furacão, de maneira a poder renascer num mundo tranquilo e luminoso."


Sadeq Hedayat, O Mocho Cego, trad. Carimo Mohomed, Silveira: Letras Errantes/E-Primatur, 2020, p. 103. 

Friday, December 18, 2020

LEITURA

 


"Não existe hábito que mais se enraíze do que o de ler sem método nem fim determinado, principalmente se encontramos ensejo e facilidade para o fazer."


Walter Scott, A Aventura de Waverley, trad. António Vilava, Lisboa: Romano Torres, 1955, p. 23. 

Wednesday, December 16, 2020

FEIXE

 



"quem deixou sobre o coração
um feixe de luz
cega nunca"


valter hugo mãe, publicação da mortalidade, Lisboa: Assírio & Alvim, 2018, p. 56. 

Tuesday, December 15, 2020

METÁFORA

 



"A minha vida está a derreter-se gradualmente no meio das quatro paredes que forma o meu quarto, no meio da robusta fortificação que está construída à volta da minha vida e dos meus pensamentos. 
Não, estou enganado. A minha vida é como um tronco de madeira acabado de cortar e deitado ao lado de uma lareira: está queimado e chamuscado pelo fogo de outros troncos de madeira a queimar, mas não arde completamente nem permanece recente e verde - o fumo sufoca-o."


Sadeq Hedayat, O Mocho Cego, trad. Carimo Mohomed, Silveira: Letras Errantes/E-Primatur, 2020, p. 59. 

Monday, December 14, 2020

SERVIR

 



"o pássaro não esquece a canção

afundá-lo no olhar
a roubar vento
navegar para casa
navegar para casa

onde a lágrima de cristal
pousa entre as louças da cozinha

amar é servir para outro mundo"


valter hugo mãe, publicação da mortalidade, Lisboa: Assírio & Alvim, 2018, p. 36. 

Sunday, December 13, 2020

EXISTÊNCIAS

 


"Neste momento, os meus pensamentos gelaram. Uma vida singular, ímpar, fora criada em mim, porque a minha vida estava presa a todas as existências que me rodeavam, a todas as sombras que tremeluziam à minha volta. Senti uma profunda e inseparável relação com o mundo, com o movimento de todas as criaturas e com a natureza. Todos os elementos, meus e da natureza, estavam ligados pelos caudais invisíveis de uma qualquer corrente agitada e perturbadora. Nenhum pensamento ou imagem eram para mim antinaturais. Eu compreendia os segredos das antigas pinturas, os mistérios de tratados filosóficos difíceis e a eterna tolice das formas e das normas, porque neste momento eu participava na rotação da Terra e dos planetas, no crescimento das plantas e nas actividades do mundo animal. O passado e o futuro, distante e próximo, partilhavam a minha vida sensível e eram unos comigo."

Sadeq Hedayat. O Mocho Cego, trad. Carimo Mohomed, Silveira: Letras Errantes/E-Primatur, 2020, p. 30. 

Saturday, December 12, 2020

O DESEJO

 



"Que este dia seja tão doce e tão perfeito que nos seja possível evitar as forças das trevas até atingirmos o termo da nossa vida, fixado por Deus na felicidade."


Caspar Hartung Vom Hoff, O Pequeno Livro sobre a Arte, trad. Cristina Diamantino, Lisboa: Edições 70, 1990, p. 39. 

Thursday, December 10, 2020

ESPERANÇA

 



"Esperando que um mundo seja desenterrado pela linguagem, alguém canta no lugar onde se forma o silêncio. Logo verificará que não porque se mostre furioso existe o mar, nem igualmente o mundo. Por isso cada palavra diz o que diz e além disso mais e outra coisa."


Alejandra Pizarnik, Antologia Poética, trad. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Tinta-da-China, 2020, p. 131. 

Wednesday, December 9, 2020

PREITO

 



"É lei do tempo, Senhora, 
Que ninguém domine agora
E todos queiram reinar.
Quanto vale nesta hora
Um vassalo bem sujeito, 
Leal de homenage e preito
E fácil de governar?

Pois o tal sou eu, Senhora: 
E aqui juro e firmo agora
Que a um despótico reinar
Me rendo todo nesta hora, 
Que a liberdade sujeito...
Não a reis! - outro é meu preito:
Anjos me hão-de governar."


Almeida Garrett, Folhas Caídas, Lisboa: Ulisseia, 1992, p. 163. 

Tuesday, December 8, 2020

FLOR ABERTA

 




"Quem me dera voltar à inocência
Das coisas brutas, sãs, inanimadas, 
Despir o vão orgulho, a incoerência:
- Mantos rotos de estátuas mutiladas!

Ah! Arrancar às carnes laceradas
Sem mísero segredo de consciência!
Ah! Poder ser apenas florescência
De astros em puras noites deslumbradas!

Ser nostálgico choupo ao entardecer, 
De ramos graves, plácidos, absortos
Na mágica tarefa de viver!

Ser haste, seiva, ramaria inquieta, 
Erguer ao sol o coração dos mortos
Na urna de oiro duma flor aberta!..."


Florbela Espanca, Sonetos Completos, 8.ª ed., Coimbra: Livraria Gonçalves, 1950, p. 141.

Monday, December 7, 2020

ANOITECER-ME

 



"Mãos crispadas confinam-nos ao exílio.
Ajuda-me a não pedir ajuda.
Querem anoitecer-me, vão morrer-me.
Ajuda-me a não pedir ajuda."


Alejandra Pizarnik, Antologia Poética, trad. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Tinta-da-China, 2020, p. 93. 

Sunday, December 6, 2020

PRENHES

 



"Debandava tudo de seus lugares e quem estivesse irremediavelmente preso à casa, ao mester, apelava para a misericórdia divina, como único salvatério, esforçando-se por merecê-la com preces, penitências, votos de toda a ordem, de que nunca mais conseguiria desonerar-se, se alguma vez buscasse cumpri-los. Mas era como as promessas impossíveis a Santa Bárbara, que só o são enquanto a trovoada está armada ou vai ribombando das nuvens prenhes de raios e coriscos."

 

Aquilino Ribeiro, Humildade Gloriosa, 2.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 126. 

Saturday, December 5, 2020

SANS SOLEIL

 




"Wilde acreditava que existe no artista uma qualquer fatalidade, e a ideia é mais forte que o homem. 
- Há duas espécies de artistas - dizia. - Uns dão respostas e outros fazem perguntas. Precisamos de saber se somos dos que respondem ou dos que interrogam; porque o que interroga nunca é o que responde. Há obras que aguardam e não são durante muito tempo compreendidas porque dão respostas a perguntas que ainda não foram feitas; é frequente a pergunta surgir muitíssimo tempo depois da resposta. 
E ainda dizia: 
- A alma nasce velha no corpo; o corpo envelhece para rejuvenescê-la. Platão é a juventude de Sócrates."


André Gide, Os Meus Oscar Wilde, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2020, p. 19. 

Friday, December 4, 2020

MAS A VIDA

 



"a morte morre de riso mas a vida
morre de pranto mas a morte mas a vida
mas nada nada nada"


Alejandra Pizarnik, Antologia Poética, trad. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Tinta-da-China, 2020, p. 28. 

Thursday, December 3, 2020

ESFERA

 



"Como quem confundido percorre a esfera
da terra só em busca de lugar seguro. 
Escreve para uma linhagem futura o que lhe resta
do nome, esse nada que é a música da língua
rompendo entre a noite esmaltada dos seus dentes. 

Vendo a crista das montanhas, escurecendo
ao longe o sol no horizonte, partilha
com o ar pela última vez as volúpias da alma
e da visão, a aura das nossas cidades tributárias."



Paulo Teixeira, Inventário e Despedida, Lisboa: Editorial Caminho, 1991, p. 22. 

Wednesday, December 2, 2020

ESPIRAIS

 


"Os homens, no geral, à luz do dia e sempre que empunhavam a vara do mundo eram monstruosos tiranos, e ignóbeis na animalidade debaixo de telha."

Aquilino Ribeiro, Humildade Gloriosa, 2.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 57. 

Tuesday, December 1, 2020

LIBERTAÇÃO (para a memória de Eduardo Lourenço)

 


"Só a palavra poética é libertação do mundo. Em luta com a mastigação discursiva do mundo, ela descobre por rara e imerecida graça a passagem para esse Instante onde repousaríamos sempre mesmo que a nossa marcha fosse mais vertiginosa que a luz. De repente estamos num continente novo e descobrimos que essa terra nos esperava há muito."


Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Lisboa: Relógio D' Água, 1987, p. 40. 

Monday, November 30, 2020

NA ORLA

 



"Estavam ambos na orla do mundo conhecido, e cairiam no desconhecido porque a vertigem não os deixava explicar-se melhor."


Rachilde, Nossa Senhora dos Ratos, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: 2020, p. 97. 

Sunday, November 29, 2020

ENTREGA

 


"São marcos de cada vez que pousamos
um dedo no mapa da distância que nos julga
defender, estes nomes, póstumos, abandonados
à sua sorte, ao fogo que por eles ascenda
em canos de chaminé, em condutas para um gás
combustível, no rasto dos dardos que cruzam
o céu e se cravam no âmago do seu destino,
a Suíça, daí irrompendo, em efusão de arcadas,

para a fumigação perfeita destas noites.
E agora que o milénio chega ao fim e o tempo
trabalha para demolir, em ânsias de arrumar
a sala, sua é a entrega formal, a rendição
ao abismo em que os tem suspensos Deus,
acaso, infortúnio,
unidos numa posteridade que, muda, alarmada,
se deduz de um modelo de factos conhecidos."


Paulo Teixeira, O Rapto de Europa, Lisboa: Caminho, 1993, p. 29.

Saturday, November 28, 2020

O HOMEM

 



"Ele, o homem, através de todos os tormentos, já sentia o paraíso. Farejava-o como provisão prometida a todos os mártires da carne. Como devia ser bom, comparado com a fealdade da existência! Desde o começo da vida deste mundo, as coisas complicavam-se."


Rachilde, Nossa Senhora dos Ratos, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: 2020, p. 18. 

Friday, November 27, 2020

ENCONTRO

 



"Por sorte havia o céu. Como é que poderíamos viver sem nos lembrarmos do céu? Como bem sabíamos, aqui nos encontrávamos de passagem."


Rachilde, Nossa Senhora dos Ratos, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: 2020, p. 18. 

Thursday, November 26, 2020

MORTALIDADE

 



"Em Palmira, a fonte de Efqa, 
na base da colina onde se ergue 
o templo de Baal-Hamnon, 
secou misteriosamente.

Nem Baal triunfa sobre a morte. 
Nem os deuses vivem para sempre."



Paulo Teixeira, A Comoção do Mundo, Lisboa: Caminho, 2020, p. 67. 

Wednesday, November 25, 2020

DIMENSÕES



"A manipulação destas ideias provocava-me uma euforia crescente. Acumulei provas que demonstravam que a minha relação com os intrusos era uma relação entre seres de diferentes dimensões. Nesta ilha poderia ter sucedido uma catástrofe imperceptível para os seus mortos (eu e os animais que a habitavam); depois teriam chegado os intrusos."


Adolfo Bioy Casares, A Invenção de Morel, trad. Miguel Serras Pereira, 3ª. ed., Lisboa: Antígona, 2019, p. 79. 

Tuesday, November 24, 2020

SAÍDA


                       


"O pesadelo agora continua... O meu fracasso é definitivo, e para aqui estou a contar sonhos. Quero acordar, e deparo com essa resistência que barra a saída dos sonhos mais atrozes."


Adolfo Bioy Casares, A Invenção de Morel, trad. Miguel Serras Pereira, 3ª. ed., Lisboa: Antígona, 2019, p. 52. 

Monday, November 23, 2020

HOMENAGEM A PAUL CELAN NO SEU CENTENÁRIO

 



"Ninguém nos moldará de novo em terra e barro, 
ninguém animará pela palavra o nosso pó. 
Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir. 
Em direcção
a ti. 

Um Nada
fomos, somos, continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém. 

Com o estilete claro-de-alma, 
o estame ermo-de-céu, 
a corola vermelha
da purpúrea palavra que cantámos
sobre, oh sobre
o espinho."


Paul Celan, "A Rosa de Ninguém", in Sete Rosas Mais Tarde - Antologia Poética, trad. João Barrento e Y. K. Centeno, 2.ª ed., Lisboa: Ed. Cotovia, 1996, pp. 103; 105. 

Sunday, November 22, 2020

ALTURAS


"Esquecemos as palavras,
as inscrições na pedra, 

o espelho do mundo
nos ecrãs de plasma - 

a crucificação pelas imagens."


Paulo Teixeira, A Comoção do Mundo, Lisboa: Caminho, 2020, p. 68. 

Saturday, November 21, 2020

A LENTA DESCIDA DAS ALTURAS

 



"A lenta descida das alturas do clima
para o espaço físico, sem memória, 
sem bandeiras, sem oráculos nem heróis. 

Envolta numa bandagem de gelo, 
a Europa, nas primeiras horas da manhã
de Março, entre o display e a escotilha, 

entre o mapa e o território, adormecida, 
por momentos, na ausência de poder
que se deduz da plácida geografia. 

É uma questão de escala e de altitude
o desejo do cartógrafo: medir o espaço
e desenhar-lhe com os dedos os contornos.

Este o prazer secreto da agrimensura, 
a passagem, numa pausa entre as nuvens, 
da paisagem árida, lunar, à topografia.

Portugal é uma orla, um fino recorte
do mundo, e torna-se mais nítido
o rosto com que fita o oceano. 

Em baixo, os pequenos pontos luminosos
são o presente e a intenção que move
os veículos pelas estradas nacionais.

Desces para uma história de vida, 
além da mancha de retalhos da lavoura. 
O rio, as pontes, a torre e o mosteiro, 

as docas vazias de Alcântara, pontuam 
de referências conhecidas o cenário
onde encenar de novo uma pertença - 

a trepidação no regresso ao script da origem, 
ao logos de nascença, a razia aos prédios
e a queda implacável no real quotidiano."


Paulo Teixeira, A Comoção do Mundo, Lisboa: Caminho, 2020, pp. 31-32. 

Friday, November 20, 2020

ÂNGULOS

 



"É tão estranho
o que se desenha
e configura no olhar - 

habitamos numa região
de espelhos, uma galeria
redonda de imagens

pessoais, ângulos, poses, 
perfis, factos montados, 
primaveras instruídas, 

revoluções iniciadas, 
às ordens dos robôs, 
terramotos induzidos, 

aviões que desaparecem, 
misteriosamente, aéreas
diversões com o clima. 

O mundo, impassível, 
assiste a dois passos
do cadafalso, ao ronco

das coisas a serem removidas
dos seus lugares. A esfera
confiscada: o resto é nevoeiro."


Paulo Teixeira, a comoção do mundo, Lisboa: Caminho, 2020, p. 77. 

Wednesday, November 18, 2020

TERRÍVEL

 


"Assim era pelos vistos nos tempos longínquos e obscuros, quando havia profetas, quando havia menos ideias e menos palavras, quando era jovem a lei terrível que fazia pagara morte com a morte, quando os animais ainda tinham amizade com o homem e o relâmpago lhe estendia a mão - assim, naqueles tempos longínquos e estranhos, o transgressor ficava exposto às mortes; a abelha picava-o, o touro de cornos aguçados marrava contra ele, a pedra esperava pela hora da sua queda para partir a cabeça descoberta do homem; e a doença rasgava-o à vista de todos, como um chacal rasga uma carcaça; e todas as setas, desviando-se do seu voo, procuravam o seu coração negro e os seus olhos baixos; e os rios mudavam o seu curso, fazendo aluir a areia sob os seus pés, o seu próprio potentado oceano lançava à costa as suas ondas alterosas e, rugindo, enxotava-o para o deserto.Milhares de mortes, milhares de túmulos."

 


Leonid Andréev, "O Governador", in As Trevas e Outros Contos, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Antígona, 2018, p. 170. 

Tuesday, November 17, 2020

A PRESSA

 



"Andamos apressados na colheita dos dias, 
não vá o Sol queimar a pele dos frutos, 
a chuva magoar as novidades, 
o vento derrubar as flores da macieira,.
Temos medo de chegar tarde
ao tempo da fartura.
De fome nos contaram
velhos homens de viagens, 
mulheres jovens dispostas ao amor. 
Vamos cabisbaixos, 
cães com dono e coleira, 
amarrados à cantata da fama, 
à luz do pote de oiro.
Chegaremos ou não 
a colher as virtudes e as glórias.
Assim curvados não veremos
a alegria de uma flor de Inverno. 
Temos pressa.
Outro tempo virá, 
o da flor desmaiada, 
da porta fechada.
Da rua nem se fala, 
que o seu nome perdemos, 
para sempre."


Licínia Quitério, Travessia, Braga: Poética Edições, 2019, p. 30. 

Monday, November 16, 2020

HARPA DE FOLHAS

 




"A harpa de folhas ensaia o festim do Outono. 
Componho o cabelo, 
defendo-me do vento e da frescura. 
Enrosco-me em lembranças da cor do feno
e da fadiga dos homens. 
Demoro-me no deslizar vegetal, 
seguro a ternura nos degraus da escada.
Permaneço na esteira do meu país, 
nos seus estranhos dias
em que o vinho não morre
nem fermenta."


Licínia Quitério, Travessia, Braga: Poética Edições, 2019, p. 24. 

Sunday, November 15, 2020

OS SONHOS

 



"- Que parvo és, Tomé! Com que sonhas tu: com uma árvore, com um muro, com um burro?
Tomé embaraçou-se estranhamente e não objectou. Mas à noite, quando Judas já fechava o seu olho vivo e inquieto, Tomé, no seu leito - os dois dormiam agora lado a lado, em cima do telhado -, disse de repente em voz alta:
- Não tens razão, Judas. Tenho sonhos muito maus. O que achas: o homem também deverá ser responsável pelos seus sonhos?
- Mas não será outro qualquer, e não ele próprio, que sonha os seus sonhos?
Tomé suspirou baixinho e ficou pensativo. Judas, entretanto, sorriu com desprezo, fechou bem o seu olho de ladrão e entregou-se aos seus sonhos agitados, monstruosos, às visões loucas que rasgavam em pedaços o seu crânio coberto de bossas."


Leonid Andréev, "Judas Iscariotes", in As Trevas e Outros Contos, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Antígona, 2018, p. 74. 

Saturday, November 14, 2020

ALIMENTO

 




"Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá pr'ó futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.

Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.

O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce à cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.

Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.

Para que me lastimas
se este é o meu auge?
Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas torres de marfim. 


Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que fala da porta da torre
que dá para donde vim."


José de Almada Negreiros, Poemas, 3.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, pp. 167-168.

Friday, November 13, 2020

TOPOGRAFIA



"Não existe qualquer produto natural no Purgatório, nem árvores, nem frutos. Tudo é sem cor, mais ou menos sombrio segundo o grau de purificação. Os lugares que servem de estada são dispostos com alguma regularidade, mas não como no «seio de Abraão», espécie de região com uma natureza que é própria; as almas, aqui, possuem já as cores da sua futura auréola."


A Vida de Ana Catarina Emmerich, Lisboa: Paulus Editora, 2013, pp. 285-286. 

Thursday, November 12, 2020

FRESCO (para a memória do Divino G. R. Telles)

 



"Este fresco jardim era teu
Com suas terraças para o mundo.
Eram tuas as cores deste céu
E o pequeno pastor, ao fundo"


Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p. 154. 

Wednesday, November 11, 2020

GERADORES

 



"Considero o Homem um fazedor de ruídos. 
Os seus ruídos são diferentes dos ruídos cósmicos e dos ruídos da natureza. 
O Homem é emissor natural de sons: a voz (a fala e o canto). Mas também os produz com instrumentos: uma pedra, um ferro, embatendo em qualquer coisa: as formas de fazer música, a máquina... (o ruído-máquina.)
A máquina é útil. Não o seu ruído, e é pior se for exagerado ou pouco moderado. Habitualmente, não se modera, não se controla nem se reprime. Produz, em quem o gera, uma euforia de poder (um poder agressivo?)
Os seres humanos são geradores de sons. São (os outros)."


Antonio Di Benedetto, O Silencieiro, trad. Isabel Pettermann, Amadora: Cavalo de Ferro, 2020, p. 115. 

Tuesday, November 10, 2020

PLÁTANO



"Os dias já andam sozinhos
nem sabem no que se metem
uma simples teia de aranha
ou uma chave falsa
lhes basta
para a fonte que ignoram.
Olham os órgãos da planta
- grande plátano em violeta - 
e transmutam a substância 
em lentes e sal. 
Do infinitamente pequeno
ao infinitamente pequeno
que longa caminhada. 
Depois deles a treva
agita-se ao fundo do retrato
e os personagens acenam-nos
no sentido contrário."


Artur do Cruzeiro Seixas, Obra Poética, vol. I, Vila Nova de Famalicão:Quasi Edições, 2002, p. 191.