Monday, January 31, 2011

DAS TENTAÇÕES ECFRÁSTICAS: FRANCIS BACON, ESTUDO SOBRE O RETRATO DO PAPA INOCÊNCIO X DE VELÁZQUEZ



"És, tempo, o inesperado
interlocutor.

Dizes-te na usura do rosto.
Dizes-te neste amigo onde descubro o estrangeiro,

o que abandonou a sua outra vida
e a retoma como se nascesse agora.

Quebra o espelho, tu
que falas através de alheia voz.

Quebra."


Luís Quintais, Verso Antigo, Lisboa: Cotovia, 2001, p. 40.

Sunday, January 30, 2011

DAS TENTAÇÕES ECFRÁSTICAS: VIEIRA PORTUENSE, FUGA DE MARGARIDA DE ANJOU



"Fizeste de mim uma coisa obtusa,
uma floresta petrificada,
alguém que não pode chorar
as maternidades desfeitas.
Fizeste de mim uma floresta
onde serpenteiam cobras venenosas
e a hiena prepara uma emboscada,
porque eu era uma ninfa
apaixonada e doce
e tinha filhotes macios.
Mas as minhas unhas sedentas
cavam firmes a terra,
e eu Medusa
olho-te fixamente nos olhos.
Eu sonhadora experiente
que ainda hoje me abrigo numa cama
vestida de luto
para nunca mais sentir a carne."


Alda Merini, A Terra Santa, trad. Clara Rowland, Lisboa: Cotovia, 2004, p. 83.

Saturday, January 29, 2011

DAS TENTAÇÕES ECFRÁSTICAS - ARTUR LOUREIRO, ESTUDO PARA A OBRA "TIGRES"



"- Ah, que agradável cear assim - cantarolou Koroviev -, à lareira, sem cerimónias, num pequeno círculo...
- Não, Fagot - replicou o gato -, o baile tem também o seu encanto e a sua grandeza.
- Não há nele qualquer encanto nem nenhuma grandeza - disse Woland. - E aqueles ursos estúpidos, bem como aqueles tigres do bar, quase me provocam dores de cabeça com os seus berros.
- Às suas ordens, messire - disse o gato -, se acha que o baile não tem grandeza, eu adopto imediatamente a mesma opinião.
- Tu vê lá! - respondeu Woland.
- Estava a brincar - disse o gato com submissão. - Quanto aos tigres, vou dar ordens para que os assem.
- Os tigres não se comem - afirmou Hella.
- Acha? Pois então escute - disse o gato e, semicerrando os olhos de prazer, contou que uma vez errara durante dezanove dias pelo deserto e a única coisa que tinha para se alimentar era a carne de um tigre morto por ele.
Todos escutaran com interesse aquele divertido relato e, quando Behemot terminou, todos exclamaram em coro:
- Mentira!
- O mais interessante dessa mentira - disse Woland - é que é mentira da primeira à última palavra.
- Ai é mentira?! - exclamou o gato, e todos pensaram que ele ia começar a protestar, mas limitou-se a dizer calmamente: - a História nos julgará."


Mikhail Bulgákov, Margarita e o Mestre, trad. António Pescada, Lisboa: Relógio D'Água, 2007, p. 254.

Thursday, January 27, 2011

DAS TENTAÇÕES ECFRÁSTICAS - CARAVAGGIO, CESTO DE FRUTAS




"Margarita, sem abrir os olhos, bebeu um gole, e uma onda suave percorreu-lhe as veias, os seus ouvidos retiniram. Pareceu-lhe ouvir um canto abafado de galos, e que algures se tocava uma marcha. A multidão dos convidados começou a perder a sua fisionomia. Homens e mulheres desfaziam-se em cinzas. Diante dos olhos de Margarita a putrefacção conquistou a sala, sobre a qual flutuou um cheiro a sepulcro. As colunas desintegraram-se, as luzes apagaram-se, tudo encolheu, e nada restou das fontes, das camélias, nem das tulipas. Ficou apenas o que havia: a modesta sala de estar da joalheira, onde uma porta entreaberta deixava entrar um raio de luz. E Margarita entrou por essa porta entreaberta."


Mikahil Bulgákov, Margarita e o Mestre, trad. António Pescada, Lisboa: Relógio D'Água, 2007, p. 252.

Tuesday, January 25, 2011

DAS AVES 1



"Mesmo quando as aves levantam voo
Em ondas e ondas de grande debandada
Eu nada vejo, fico cega
Porque presa a ti e ausente
Dois corações obedientes no seu bater
A minha vida ligada à tua
A tua beleza o elo."


Poemas de Amor do Antigo Egipto, trad. Helder Moura Pereira, 2ª ed. rev., Lisboa: Assírio & Alvim, 2011, p. 36.

Sunday, January 23, 2011

A LUZ DO SEU DESESPERO


"Orphuls - (...) Não deis as mãos em gestos falsos como se em grupo pudésseis excluir o gemido de Deus, não, tendes de ouvir o som do Seu desespero, e temos de aprender com Judas cujo Evangelho não está escrito, temos de aprender com ele que ficou sozinho, pois Judas não vendeu Cristo nem era corrupto, mas Judas era cruel por conhecimento, e sem Judas não poderia haver ressurreição. A Beleza, a Crueldade e o Conhecimento, esta é a tripla ordem do Deus Gemente, falo como vosso conselheiro em cuja dor podeis ver beleza, louvo a minha beleza e vós tendes de louvar a vossa!"


Howard Barker, Os Europeus - Lutas para Amar, trad. Francisco Frazão, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2010, pp. 83-84.

Saturday, January 22, 2011

DAS SÁBIAS CONCLUSÕES


"Susannah - Acho que vivemos no Inferno, mas qualquer coisa torna o inferno suportável. O que será? A raiva? Tenho tão pouco jeito para a raiva.

Orphuls - Isto não é o Inferno.

Susannah - Não é o Inferno? Então o que é o Inferno?

Orphuls - A ausência.

Susannah - Garanto-te, isto é a ausência.

Orphuls - De Deus."


Howard Barker, Os Europeus - Lutas para Amar, trad. Francisco Frazão, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2010, p. 44.

Thursday, January 20, 2011

DOS MÍSTICOS SEDUTORES



"E à meia-noite houve uma visão do inferno. Um homem elegante, de olhos negros, com a barba pontiaguda, de fraque e olhar majestoso, saiu para a esplanada e relanceou os seus domínios. Dizia-se, diziam os místicos, que houvera tempos em que o homem elegante não usava fraque, mas andava cingido por um largo cinto de couro, do qual saíam as coronhas das pistolas, e usava os seus cabelos negros asa de corvo atados por uma fita escarlate, e que sob o seu comando navegava no mar das Caraíbas um brigue sob pavilhão negro com uma caveira.
Mas não, não! Os místicos sedutores gemem, não existem no mundo nenhuns mares das Caraíbas nem neles navegam flibusteiros temerários, nem os perseguem as corvetas, nem o fumo dos canhões flutua sobre as vagas. Não há nada, nunca houve nada! Há lá fora uma tília estiolada, há uma vedação de ferro, e para lá dela o bulevar... E o gelo funde-se no balde, e vêem-se do outro lado da mesa próxima os olhos bovinos raiados de sangue de alguém, e é horrível, horrível... Oh, deuses, deuses, dêem-me veneno, veneno!..."


Mikhail Bulgákov, Margarita e o Mestre, trad. António Pescada, Lisboa: Relógio D'Água, 2007, p. 63.

Wednesday, January 19, 2011

PRAZERES SÓ OS GERA A FANTASIA




"Só males são reais, só dor existe;
Prazeres só os gera a fantasia;
Em nada, um imaginar, o bem consiste,
Anda o mal em cada hora e instante e dia.

Se buscamos o que é, o que devia
Por natureza ser não nos assiste;
Se fiamos num bem, que a mente cria,
Que outro remédio há aí senão ser triste?

Oh! quem tanto pudera que passasse
A vida em sonhos só, e nada vira...
Mas, no que se não vê, labor perdido!

Quem não fora tão ditoso que olvidasse...
Mas nem seu mal com ele então dormira,
Que sempre o mal pior é ter nascido!"


Antero de Quental, Poesia Completa, org. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, pp. 227-228.

Tuesday, January 18, 2011

NEREIDAS FRIAS, AINDA DURANTE A TARDE



"Entre as trêmulas mornas ardentias,
A noite no alto-mar anima as ondas.
Sobem as fundas úmidas Golcondas,
Pérolas vivas, as nereidas frias:

Entrelaçam-se, correm fugidias,
Voltam, cruzando-se; e, em lascivas rondas,
Vestem as formas alvas e redondas
De algas roxas e glaucas pedrarias.

Coxas de vago ônix, ventres polidos
De alabastro, quadris de argêntea espuma,
Seios de dúbia opala ardem na treva;

E bocas verdes, cheias de gemidos,
Que o fósforo incendeia e o âmbar perfuma,
Soluçam beijos vãos que o vento leva..."


Olavo Bilac, O Caçador de Esmeraldas e outros poemas, Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 86.

Monday, January 17, 2011

O SER COMO O VALE


"Sou como um vale, numa tarde fria,
Quando as almas dos sinos, de uma em uma,
No soluçoso adeus da ave-maria
Expiram longamente pela bruma.

É pobre a minha messe. É névoa e espuma
Toda a glória e o trabalho em que eu ardia...
Mas a resignação doura e perfuma
A tristeza do termo do meu dia.

Adormecendo, no meu sonho incerto
Tenho a ilusão do prêmio que ambiciono:
Cai o céu sobre mim em pirilampos...

E num recolhimento a Deus oferto
O cansado labor e o inquieto sono
Das minhas provações e dos meus campos."


Olavo Bilac, O Caçador de Esmeraldas e outros poemas, Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 80.

Sunday, January 16, 2011

DA VIDA



"Mas que vem a ser isto? Porquê? Não pode ser. Não é possível que a vida seja assim tão sem sentido, tão abjecta. E se ela fosse assim tão abjecta e sem sentido, para quê então morrer, e morrer sofrendo? Qualquer coisa está mal.
«Talvez eu não tenha vivido como devia?», ocorreu-lhe de súbito. «Mas como, se fiz tudo como deve ser?», disse para si mesmo e imediatamente afastou essa única solução de todo o mistério da vida e da morte como coisa completamente impossível."


Lev Tolstoi, A morte de Ivan Ilitch, trad. António Pescada, Lisboa: BIS/Leya, 2008, pp. 79-80.

Saturday, January 15, 2011

JANUS BIFRONS



"Lembrou-se ele de que esta antipatia pelos artistas fora a iniciação do seu amor. E ao perguntar-lhe qual a sua razão de ser: «São, dizia ela, uns desequilibrados, uns complicados que acrescentam sempre qualquer coisa à verdade... Fizeram-me muito mal...»
Ele protestava:
«Mas a arte é uma coisa bela... Não há nada que embeleze e engrandeça tanto a vida.»
«Olha, meu amigo, a beleza é ser-se simples e recto como tu, ter vinte anos e amar...»"


Alphonse Daudet, Sapho, Lisboa: BIS/Leya, 2008, p. 22.

Friday, January 14, 2011

DO AUTO-RETRATO



"É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha linha a antiga fúria.
Sempre o mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre o meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência."


Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética, 2ª edição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, pp. 55-56.

Thursday, January 13, 2011

BICHO CALAMITOSO


"
279


Se a vida é torpe, a vida dos homens, a arte que a deseja resumir, substituir, emendar será torpe também? Poderei reunir sob a mesma cúpula ética e estética a natureza e as suas perversões? Que fazer com este bicho calamitoso que por vezes imita, e até parece superar, a harmonia de uma gota de orvalho, do canto de um estorninho na tarde que parte?"


Casimiro de Brito, Fragmentos de Babel seguido de Arte Poética, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007, p. 66.

Tuesday, January 11, 2011

NIKANOR


"Era seguramente belo, com aquela beleza sombria, de raça autoritária, que as mulheres, em geral, reconhecem como dominadora. Com os homens mostrava-se distante e frio; mas um tal comportamento nunca dissuade o género feminino. As leis insondáveis do belo sexo são tais que uma mulher tímida nunca receia um homem feroz e altivo."


Bram Stocker, "O Segredo do Ouro que Cresce", in O enterro das ratazanas e outros contos, trad. João Costa, Lisboa: K4/Babel, 2010, p. 98.

Sunday, January 9, 2011

UM ARCANJO DE FRIO


"Todas las tardes en Granada,
todas las tardes se muere un niño.
Todas las tardes el agua se sienta
a conversar con sus amigos.

Los muertos llevan alas de musgo.
El viento nublado y el viento limpio
son dos faisanes que vuelan por las torres
y el día es un muchacho herido.

No quedaba en el aire ni una brizna de alondra
cuando yo te encontré por las grutas del vino.
No quedaba en la tierra ni una miga de nube
cuando te ahogabas por el río.

Un gigante de agua cayó sobre los montes
y el valle fue rodando com perros y con lirios.
Tu cuerpo, con la sombra violeta de mis manos,
era, muerto en la orilla, un arcángel de frío."



Federico García Lorca, "Diván del Tamarit", in Poesía Completa III, ed. Miguel García-Posada, Barcelona: De Bols!llo, 2004, pp. 158-159.

Saturday, January 8, 2011

DING DONG THE WITCH IS DEAD!




"Qué esfuerzo,
qué esfuerzo del caballo
por ser perro!,
qué esfuerzo del perro por ser golondrina!,
qué esfuerzo de la golondrina por ser abeja!,
qué esfuerzo de la abeja por ser caballo!
Y el caballo,
qué flecha aguda exprime de la rosa!,
qué rosa gris levanta de su belfo!,
y la rosa,
qué rebaño de luces y alaridos
ata en el vivo azúcar de su tronco!;
y el azúcar,
qué puñalitos sueña en su vigilia!;
y los puñales diminutos,
qué luna sin establos, qué desnudos,
piel eterna y rubor, andan buscando!
Y yo por los aleros,
qué serafín de llamas busco y soy!;
pero el arco de yeso,
qué grande, qué invisible, qué diminuto!
sin esfuerzo."


Federico García Lorca, "Poeta en Nueva York", in Poesía Completa III, ed. Miguel García-Posada, Barcelona: De Bols!llo, 2004, p. 92.

Thursday, January 6, 2011

DOS MAGOS E SUAS VESTES



"Durante a noite os três reis foram transportados para a cripta da igreja de S. Jorge, fora das muralhas. Reinaldo quis vê-los, e explodiu numa série de imprecações indignas de um arcebispo:
- Com bragas? E com este barrete que parece de um jogral?
- Senhor Reinaldo, assim se vestiam evidentemente naquela época os sábios do Oriente: há uns anos estive em Ravena e vi um mosaico onde na veste da imperatriz Teodora os três estão representados mais ou menos assim.
- Precisamente, coisas que podem convencer os greculos de Bizâncio. Mas imaginas se apresento em Colónia os Magos vestidos de malabaristas? Vamos vesti-los de outra maneira.
- E como? - perguntou o Poeta.
- E como? Eu consenti que comesses e bebesses como um feudatário escrevendo dois ou três versos ao ano e tu não sabes como hás-de vestir quem foram os primeiros a adorar Nosso Senhor Jesus Cristo?! Veste-os como toda a gente imagina que sejam vestidos, de bispos, de papas, de arquimandritas, sei lá!
- Saquearam a igreja-mor e o bispado. Talvez possamos recuperar paramentos sagrados. Vou tentar. - disse o Poeta.
Foi uma noite terrível. Os paramentos foram encontrados, e até qualquer coisa que pareciam três tiaras, mas o problema foi despir as três múmias. Se os rostos estavam ainda como vivos, os corpos - tirando as mãos, completamente secas - estavam reduzidos a uma armação de vimes e de palha, que se desfazia a cada tentativa de tirar as roupas. - Não importa - disse Reinaldo - que uma vez em Colónia já ninguém vai tornar a abrir o caixão. Metam paus, qualquer coisa que os mantenha direitos, como se fossem espantalhos. Mas com respeito, não se esqueçam.
- Jesus Senhor - lamentou-se o Poeta -, nem a cair de bêbedo imaginei alguma vez poder vir a enfiar os Reis Magos pelo traseiro.
- Cala-te e veste-os - disse Baudolino -, estamos a agir para a glória do império. - O Poeta emitia horríveis blasfémias e os Magos agora pareciam cardeais da santa igreja romana."


Umberto Eco, Baudolino, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa: Difel, 2002, pp. 107-108.

Tuesday, January 4, 2011

DE NOVO, AS MULAS E OUTRAS POÇÕES



"Alguns destes "remédios" eram mais do tipo "mata ou cura". Revelando que possuía um estômago tão forte como a vontade, Catarina bebia abundantes doses de urina de mula, que correntemente se dizia ser uma forma primitiva de inoculação contra a esterilidade. Recebeu, contudo, instruções claras para nunca se aproximar da mula. Os alquimistas providenciam cataplasmas tão revoltantes que custa a crer que o delfim conseguisse sequer fazer amor com a mulher. Os emplastros macios, quentes e malcheirosos eram feitos de hastes de veado trituradas e excrementos de vaca. Para disfarçar a fetidez era misturada uma pitada de pervinca com leite de égua. As cataplasmas eram então colocadas na "fonte da vida" de Catarina, onde ficavam a operar, mas estes "métodos infalíveis" não produziam quaisquer resultados, excepto talvez um desejo crescente por parte do delfim de não se aproximar da mulher e muito menos dormir com ela. Foram também consultados astrólogos e ela seguia rigorosamente todas as suas instruções, mas continuava a não engravidar.
Por fim, Catarina convenceu-se de que era sexualmente incompetente e de que estava a cometer algum erro crasso. Tinha de imitar o que quer que Diana andasse a fazer com o marido. Consta que a corajosa mulher mandou abrir buracos no soalho (provavelmente em Fontainebleau) a fim de poder espreitar para o quarto onde o marido e Diana passavam as suas noites de paixão. As aias de Catarina suplicaram-lhe que não se desse a tão angustiante trabalho mas ela não deu ouvidos a ninguém e preparou-se para observar Henrique a fazer amor com a amante. Quando o momento chegou, a sua mágoa à vista do completo abandono dos amantes nos braços um do outro foi tão profunda que pouco viu; os seus olhos encheram-se de lágrimas antes de se afastar. O que vira, no entanto, sugeriu-lhe que fizesse uma coisa muito diferente com o marido quando se deitassem juntos."


Leonie Frieda, Catarina de Médicis, trad. Isabel Alves, Porto: Civilização Editora, 2005, p. 91.

Monday, January 3, 2011

DA FOME E SEUS CORRELATOS



"Anrique da Mota - No tempo dos caramelos
que comês que Deos vos valha?

A Mula - Ua quarta de farelos
ua jueira de palha.

Anrique da Mota - Nam comês outra bitalha?
assi gozedes.

A Mula - Nam como mais nimigalha.

Anrique da Mota - Dar-vos-á fome batalha.

A Mula - J'ora vedes.

Anrique da Mota - Ora bem e no beber
assi vos põem provisam?

A Mula - Quant' a disso farta sam
nam há i al que dizer.
se me dessem de comer
dessa maneira
bem podia gorda ser
nam me viria morrer
de lazeira.

Anrique da Mota - Tendel' os ossos mui altos
E a carne mui somida
andais bem fora dos saltos
sois de quadris bem fornida.

A Mula - Pois i verês vós a vida
que eu passo
e por ser mais destroída
vou com um homem nesta ida
mui escasso."


Anrique da Mota, "Trovas d' Anrique da Mota a ua Mula mui magra e velha que viu estar no Bombarral à porta de dom Diogo filho do Marquês e era de dom Anrique seu irmão, que ia em romaria a Nossa Senhora de Nazarete e levava nela um seu Amo", in Obras de Anrique da Mota, ed. Osório Mateus, Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, p. 65.

Sunday, January 2, 2011

TROIANOS


"São nossos esforços, o dos infortunados:
são nossos esforços como os dos troianos.
Conseguimos um pouco; um pouco
levantamos a cabeça; e começamos
a ter coragem e boas esperanças.

Mas sempre surge alguma coisa que nos pára.
Aquiles junto do fosso à nossa frente
surge e com grandes gritos assusta-nos. -


São nossos esforços como os dos troianos.
Cuidamos que mudaremos com resolução
e valor a contrariedade da sorte,
e estamos cá fora para lutar.

Mas quando vier o momento decisivo,
o nosso valor e a nossa resolução perdem-se;
a nossa alma fica alterada, paralisa;
e em redor das muralhas corremos
à procura de nos salvarmos pela fuga.

Porém a nossa queda é certa. Em cima,
nas muralhas já começou o pranto.
Choram pelas memórias e os sentimentos dos nossos dias.
Amargamente choram por nós Príamo e Hécuba."


Konstandinos Kavafis, Poemas e Prosas, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Lisboa: Relógio D'Água, 1994, p. 33.

Saturday, January 1, 2011

CONSELHO PARA O NOVO ANO




"É, pois, evidente que também os desenlaces devem resultar da própria estrutura do mito, não do deus ex machina, como acontece na Medeia ou naquela parte da Ilíada em que se trata do regresso das naves. Ao deus ex machina, pelo contrário, não se deve recorrer senão em acontecimentos que se passam fora do drama, ou nos do passado, anteriores aos que se desenrolam em cena, ou nos que ao homem é vedado conhecer, ou nos futuros, que necessitam ser preditos ou prenunciados - pois que aos deuses atribuímos nós o poder de tudo verem."


Aristóteles, Poética, 1454 a-b, trad. Eudoro de Sousa, 2ª ed., Lisboa: IN-CM, 1990, p. 124.