Thursday, March 28, 2013

A VERDADE


"- Pois então és rei?, perguntou Pilatos. Jesus respondeu-lhe:
- Tu o dizes. Eu sou rei. Eu não nasci e não vim ao mundo senão para fazer ouvir a minha voz a todos os que são da verdade.
- O que é a verdade? - perguntou-lhe Pilatos.
- A verdade é do céu, respondeu Jesus. Pilatos retomou: «E sobre a terra não há verdade?» Jesus disse a Pilatos: «Tu vês como os senhores do poder sobre a terra julgam aqueles que dizem a verdade!»."
 
Os Actos de Pilatos (séc. V), in Evangelhos Apócrifos, trad. Madalena Cardoso, 2ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1999, p. 156.

SUMMUM DONUM


"Quem quiser semear um solo virgem
liberta primeiro o campo de rebentos,
corta com a foice os silvados e o mato
para que uma nova Ceres avance carregada
com o peso dos frutos.
O fruto do labor das abelhas é mais doce
se a boca experimentar primeiro um sabor desagradável.
Os astros brilham de forma mais grata
quando o Noto pára de dar estrondos
que anunciam a chuva.
Só depois de Lúcifer ter afastado as trevas
com os seus róseos corcéis.
Também tu, olhando primeiro os falsos bens,
começa a fugir com a cerviz ao jugo.
É a partir daí que os verdadeiros bens
começarão a entrar no teu espírito."
 
Boécio, Consolação da Filosofia, trad. Luís M.G. Cerqueira, Lisboa: IN-CM, 2011, p. 78.

Wednesday, March 27, 2013

A TENTAÇÃO DE SANTO ANTÃO


"Falta-me, para isso, o melhor - o orgulho, que é a primeira alma do artista; e, ao pé de ti, bem sabes, não tenho orgulho.
O que, de momento, me seduz não é mais do que a arte pura; ser, ainda como escritor um estatuário; ora o público não entende o drama frio das estátuas; vê, pois, a celebridade que me espera!"
 
Visconde de Vila Moura, Os Últimos, Porto: Renascença Portuguesa, 1918, p. 147.

Saturday, March 23, 2013

COMO O FOGO


"Crepita como o fogo a mocidade e a vida;
É um meio-dia de sol do triunfo do louro;
E, a cada chama, cai a cinza consumida,
Caminha envolta a Decadência em manto d' ouro.

Diz a estátua de bronze o lugar do ataúde
De uma desilusão que ali deixou a Sorte;
Cada beijo prevê o fim da juventude;
Cada c'roa imortal cinge a fronte da Morte."
Duarte Solano, Coroa de Rosas, Penafiel: Associação dos Amigos da Biblioteca de Penafiel, 2013, p. 54.

A LIBERDADE ANTIGA


"Tenho em mim deuses e espíritos. Todo eu sou hybris, êxtase, desmesura. Sou o homo demens. A realidade não me domina, nem a televisão, nem o partido. Sou o caos, faço a festa permanente. O homem do trabalho e da técnica nada me diz. Sou o homem só no palco que berra. Sou Dionisos na dança. Celebro o triunfo da Arte sobre a sobrevivência. Sou o homem que vem dos séculos, da floresta. Trago em mim o enigma da existência. Sou rei, mago, poeta. Sou delírio e loucura. Sou o primeiro homem. Não conheço limites, sigo a liberdade antiga."

A. Pedro Ribeiro, Fora da Lei, Braga: e-ditora, 2012, p. 22.

ESTRANHA TERRA


"
O Mendigo

E, num riso de sangue, movendo o peito vestido de cruzes, que fixa um momento.

A de Cristo era de cedro. Devia ser...
Estas, depois de me levarem o sangue, tiram-me o calor!...

O Espectro

Até aí cumpriste. Depois?

O Mendigo

Depois, volvi à Terra...

O Espectro

Para quê?

O Mendigo

E sei-o eu?
Por instinto! Pela mesma força de minha fraqueza. Porque me ensinaram que é vergonha ter fome!

O Espectro, apagando-se.

Oh, que pesado sono entorpece a Terra! Estranha terra, onde só os mortos velam!"

Visconde de Vila Moura, "A Dor" in Obstinados, Rio de Janeiro: Editores Anuário do Brasil/Renascença Portuguesa, 1921, p. 165.

Friday, March 22, 2013

EM MEMÓRIA DE ÓSCAR LOPES


"Umas das funções da poesia talvez consista em lembrar-nos como o maravilhoso é conatural ao homem; como a esperança transborda, quer de todas as realidades dadas, quer de todos os mitos que ela própria, esperança, inventa: como, e a despeito de tudo, existe uma certa certeza inerente ao que se é e ao que se faz; e como essa esperança, que é certeza a reconquistar para cada momento, tem justamente a medida daquilo que cada um de nós, verdadeiramente, exige da vida."
 
Óscar Lopes, Uma Espécie de Música (A Poesia de Eugénio de Andrade), Lisboa: IN-CM, 1981, pp. 16-17.

Thursday, March 21, 2013

DIA DA ÁRVORE


"A tarde trabalhava
sem rumor
no âmbito feliz das suas nuvens,
conjugava
cintilações e frémitos,
rimava
as ténues vibrações
do mundo,
quando vi
o poema organizado nas alturas
reflectir-se aqui,
em ritmos, desenhos, estruturas
duma sintaxe que produz
coisas aéreas como o vento e a luz."
Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 184.

Wednesday, March 20, 2013

ANIMAL FOGOSO


"Foi por isso que vim,
descendo aos infernos que ardem
no olhar futuro
dos animais fogosos
que estás criando
em teu ventre secreto.

Foi por isso que vim,
morrendo longamente
as mortes embuçadas no trajecto."
  Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 100.

Tuesday, March 19, 2013

CANORA



"Toda a poesia, dizem, constitui um acto repulsivo.
Sobretudo para os que abandonaram o conforto
da alma para se sentar, nova teoria de celibatários,
face a um ponche frio. Ouvirão ainda a música?
E contudo, a chama que se apaga no seu interior
é sempre minúscula. Para outros, o problema
parece residir mais no físico - no princípio
de corrosão que depressa nos castiga.
Compreende-se assim o cansaço com que
os homens encaram o soalho e a candura
com que o aplainam, sempre à espera
de que no espelho se defina um nódulo
do ser mais escuro. Sobre a mobília
resta apenas uma memória de música.
Ruína consentida de que, na sombra,
o Sol se conjuga. Porque é na falta
de ideias que o fascínio da poesia
no que tem de mais certo em nós perdura."
  Fernando Guerreiro, Teoria da Revolução, Braga: Angelus Novus, 2000, p. 30.

Monday, March 18, 2013

PRIMEIRO DIA


"Porque não criar por criar, pintar por pintar, escrever por escrever? Porque não continuamos crianças, a produzir sem sentido utilitário, apenas pelo sentimento agradável que as formas das coisas suscitam? Porque não manter uma sensibilidade lúdica e infantil, enriquecendo a afectividade, como diz Edgar Morin? Porque não a imaginação pura? Parece que depois da infância e da adolescência há mundos que nos são vedados, metem-nos a disciplina do trabalho e os valores castradores do capitalismo dos mercados na cabeça. Não, nós não éramos assim. Nós tínhamos o sonho, o imaginário, a magia. Temos de recuperá-los. Temos de ir buscá-los à nossa alma. Temos de voltar ao primeiro dia. Sejamos como as crianças, como a criança sábia, caminhemos sem direcção definida, interroguemos o mundo. Estejamos abertos para a eterna novidade. Escrevamos simplesmente porque queremos escrever, sem imposições, sem prazos, sem limites. Sejamos loucos, afastemo-nos da realidade que nos querem impor. Voltemos às pinturas rupestres. Criemos livremente, sem medos, sem patrões, sem papões. Celebremos o primeiro dia."
A. Pedro Ribeiro, Fora da Lei, Braga: e-ditora, 2012, p. 59.

Sunday, March 17, 2013

PRAIA


"Só o meu craneo fique
Rolando insepulto no areal
Ao abandono e ao acaso do simoün...
Que o sol e o sal o purifique"

Camilo Pessanha, Clepsydra, ed. crítica de Paulo Franchetti, Lisboa: Relógio d'Água, 1995, p. 115.

Saturday, March 16, 2013

NEFELIBATA


"E, dando pela sua fixide de sonâmbulo no lar aceso:
- Acorda! Que estás p'ra aí a espiar o lume?
- Estou a fazer contas com os pecados da memória, a queimar lembranças, respondeu Ismael. Ouço-as estalar, arder com a lenha!"
 
Visconde de Vila Moura, "Ismael" in Doentes da Beleza, 2ª ed., Rio de Janeiro: Edição do Anuário do Brasil, 1927, p. 11.

Thursday, March 14, 2013

OS VIANDANTES


"Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o golpe do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se o vento, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas."
Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 33.

HABEMUS PAPAM FRANCISCUM


"Acordo quando os muros são o medo,
Acordo quando o tempo cai contado,
E no meu quarto entra o arvoredo,
E se desfolha ao longo dos meus membros.

Acordo quando a aurora nas paredes
Desenha nardos brancos e macios,
Acordo quando o sono nos convence
De que sois rios."
  Sophia de Mello Breyner Andresen, "Coral", in Obra Poética -I, Lisboa: Caminho, 1992, p. 179.

Tuesday, March 12, 2013

CULPA



"Exilámos os deuses e fomos
Exilados da nossa inteireza"
 

Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, Lisboa: Caminho, 2004, p. 53.

Monday, March 11, 2013

MEU CORAÇÃO COMO UM VENENO ESTRANHO



"Louvo o teu impudor. Os seios nus
Entre espumas de renda, junto ao leito,
Enches a alcova toda, como a luz
Do fogo, da volúpia do teu peito.

Da tua carne a embriaguez - tépido banho
Em que se escoa a vida - oh! entontece
Meu coração como um veneno estranho
Que em lento sonho a morte me trouxesse!

Mas sou feliz mal entro a tua porta:
Nada mais sinto do que o teu carinho,
Esqueço tudo, só te quero amar...

Que outros ames depois - o que me importa!
Que importa que outros bebam igual vinho,
Se este me chega p'ra me embriagar?..."
  Duarte Solano, Coroa de Rosas, Penafiel: Associação dos Amigos da Biblioteca de Penafiel, 2013, p. 94.

Sunday, March 10, 2013

DIA DA MÃE


"Antes da noite
Brunirás os montes

Bordarás a chuva
Tecerás o tempo

Com as tuas lágrimas
Lavarás o vento"

Daniel Faria, Poesia, ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 403.

Saturday, March 9, 2013

PÉS


"Muito caminho andado, na senda da vida prática, desde quando a noiva de Filipe IV, Mariana d'Áustria, em viagem para Madrid, viu o alcaide duma cidade apresentar-lhe com profunda reverência, meia dúzia de pares de meias de seda, obra prima da manufatura local. O mordomo, porém, repeliu com gesto desdenhoso o estojo que encerrava essas maravilhas do artesanato, dizendo:
- Saiba, senhor alcaide, que a rainha de Espanha não tem pés.
Acrescentam os cronistas do tempo que a real noiva desmaiou de susto, julgando que na capital lhe seriam amputadas as pernas, de acordo com rigorosissima etiqueta espanhola."
 
Pitigrilli, A Dança dos Chimpanzés, trad. Marina Guaspari, Rio de Janeiro: Casa Editora Vecchi, s.d., p. 89.

Thursday, March 7, 2013

THE HOUSE OF LIFE


"Como Rossetti resgatando a dádiva de amor
verso a verso ao corrupto corpo
de Elizabeth Eleanor, o escritor
é um ladrão de túmulos. E é um morto

dormindo num sono alheio, o do livro,
que a si mesmo se sonha digerindo
sua carne e seu sangue e dirigindo
a sua mão e o seu livre arbítrio.

Quem construiu a sua casa? Quem semeou
a sua vida quem a colherá?
Nem a sua morte lhe pertence, roubou-a
a outro e outro lha roubará.

Toma, come, leitor: este é o seu corpo,
a inabitada casa do livro,
também tu estás, como ele, morto,
e também não fazes sentido."

Manuel António Pina, "Os Livros", in Todas as Palavras - Poesia Reunida (1974-2011), 3ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, p. 339.

Wednesday, March 6, 2013

RILKEANA, PODENDO TAMBÉM SERVIR DE HOMENAGEM A MAGRITTE


"Soluço, soluço, puro soluço!
Janela onde ninguém procura apoio!
Cerca fechada sem consolo,
repleta da minha chuva!

É o demasiado tarde, é o ainda cedo
que decidem das tuas formas:
tu as cobres, cortina,
do vestido vazio com nadas!"
Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos, trad. Maria Gabriela Llansol, Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 299.

Tuesday, March 5, 2013

DEFINIÇÕES 2


"António Sérgio não quis compreender assim, e afirma erradamente que nós não definimos a saudade, mas um rude facto geral de toda a animalidade. E como prova apresenta uma chalaça canina que pode fazer arreganhar os dentes... só para rir, é claro.
Sim, meu caro amigo, eu conheço alguns cães bem mais capazes de sentirem a saudade que certos seres da espécie humana. «Quanto mais conheço os homens, mais amo os cães», dizia Lamartine."
 Teixeira de Pascoaes, "Os meus comentários às duas cartas de António Sérgio" [A Águia, nº22, 2ª série, Outubro 1913], in A Águia, selec. Marieta Dá Mesquita, Lisboa: Publicações Alfa, 1989, p. 50.

Monday, March 4, 2013

DEFINIÇÕES 1


"Um sujeito vê um dia um cão e bate-lhe. O cão foge, desmoralizado pelo inesperado do ataque. Decorridos dias, o nosso homem passa outra vez pelo cão, sem dar por ele. Ao cão vem-lhe o desejo naturalíssimo de sentir a carne do agressor comprimida entre os seus caninos e... zás, estão daí a ver vocês a cena. Que se passara na consciência do animal? Nada de extraordinário: uma velha lembrança gerando um novo desejo: a saudade (definição de Pascoais)."
 
António Sérgio, "Epístola aos Saudosistas" [A Águia, nº22, 2ª série, Outubro 1913], in A Águia, selec. Marieta Dá Mesquita, Lisboa: Publicações Alfa, 1989, p. 47.

Sunday, March 3, 2013

AS PESSOAS


"As pessoas têm a sua casa e a sua doença
Mas a casa das pessoas é a sua doença
Oh as pessoas estão doentes de indiferença
E morrem como mortos, da sua doença

Morrem umas na frente das outras as pessoas
Umas são assim outras como são?
As pessoas são más as pessoas são boas
As pessoas as pessoas as pessoas as pessoas

As pessoas somos nós todos ou ainda menos
Oh mário mário que horror irmão!
Oh nós não vamos ser assim daqui a uns tempos
- Nós não vamos ser assim: pois não? pois não? -

Nosso Senhor Jesus Cristo não tinha biblioteca
O pobre não tinha troco de cinco escudos
- As pessoas mário tão pálidas tão quietas! -
A rapariga da frutaria apesar de tudo"
 
Manuel António Pina, "Ainda Não É O Fim Nem O Princípio Do Mundo Calma É Apenas Um Pouco Tarde", in Todas as Palavras - Poesia Reunida (1974-2011), 3ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, p. 41.  

Saturday, March 2, 2013

A MANIFESTAÇÃO


"- Toda a ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de obscuridade, não é por outro motivo que falo como falo. Eu poderia ser claro e dizer, por exemplo, que nunca, até o instante em que decidi o contrário, eu tinha pensado em deixar a casa; eu poderia ser claro e dizer ainda que nunca, nem antes e nem depois de ter partido, eu pensei que pudesse encontrar fora o que não me davam aqui dentro."

Raduan Nassar, Lavoura Arcaica, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p. 160.

Friday, March 1, 2013

DEBRUÇAR


"Deitado na palha, nu como vim ao mundo, eu conheci a paz; o quarto estava escuro, era talvez a hora em que as mães embalam os filhos, soprando-lhes ternas fantasias; mas lá fora ainda era dia, era um fim de tarde cheio de brandura, era um céu tenro todo feito de um rosa dúbio e vagaroso; caí pensando nessa hora tranquila em que os rebanhos procuram o poço e os pássaros derradeiros buscam o seu pouso; e pensei também que eu poderia, se me debruçasse na janela, ver as nuvens esgarçadas se deslocando pacientemente como as barbas de um ancião, até que no céu uma suave concha escura apagasse o dia, cobrindo-se aos poucos de muitas mamas, para nutrir na madrugada meninos de pijama;"
Raduan Nassar, Lavoura Arcaica, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, pp. 113-114.