Monday, December 31, 2018

FINDA



"Procurar Deus demasiado cedo não é menos pecaminoso do que procurar Deus demasiado tarde; temos de amar, homem, mulher ou criança, temos de esgotar a ambição, o intelecto, o desejo, consagrando todas as coisas, à medida que passam, ou chegamos a Deus de mãos vazias."


W. B. Yeats, Ouvir o Incenso, trad. Cecília Rego Pinheiro, Lisboa: Cotovia, 1999, p. 111. 

A COR



"EMA - Não sei. Esta cor não me assenta bem. Veja que movimento tão bonito tem o meu vestido, ao andar. Parecem as ondas do mar a baterem-me nos joelhos. 

SIBILA - O mar não é assim. É como o leite quando transborda."


Agustina Bessa-Luís, Três Mulheres com Máscara de Ferro, 2.ª ed., Lisboa: Relógio d'Água, 2014, p. 23. 

PERCEBER



"FANNY - As aparências não enganam, mas provam qualquer coisa. Mostra-me a tua cara. (Ema tira a máscara) De facto, as aparências enganam. Tens cara de anjo. 

SIBILA - E porque não há-de ser um anjo? Andam por aí e a gente não percebe. É preciso ser muito fino para perceber."


Agustina Bessa-Luís, Três Mulheres com Máscara de Ferro, 2.ª ed., Lisboa: Relógio d'Água, 2014, p. 22. 

A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO (SEGUNDO ANTHONY MANN)



"Por vezes domina-nos uma enganadora presença diante de um dos nossos 
poemas
e quase nos atrevemos a pensar que eles são como bocados de estátuas
que, mesmo fragmentados, no tempo ainda perduram. 
E no entanto nada há de mais dúbio. 
Mesmo o adivinho
que remexe nas entranhas do pombo, 
à procura do segredo do destino
- e da expiação de toda a sabedoria - 
serve-se da cegueira
para mais facilmente iludir os espíritos. 
Lá fora, o vento condensa o frio e quando a neve tomba
as legiões desfilam, em silêncio, diante da pira que em breve se extingue. 
Mais tarde, junto ao templo, o Império será leiloado nas escadarias. 
Equilibrar-se-ão as ofertas dos melhores filhos de família."


Théodore Fraenckel, Iluminuras, s.l.: douda correria, 2018, s.p. 

Sunday, December 30, 2018

EN EL SEPULCRO DE LA DUQUESA DE LERMA



"Ayer deidad humana, hoy poca tierra;
aras ayer, hoy túmulo, oh mortales!
Plumas, aunque de águilas reales, 
plumas son; quien lo ignora, mucho yerra.

Los huesos que hoy este sepulcro encierra, 
a no estar entre aromas orientales,
mortales señas dieran de mortales;
la razón abra lo que el mármol cierra. 

La Fénix que ayer Lerma fue su Arabia
es hoy entre cenizas un gusano, 
y de consciencia a la persona sabia.

Si una urca se traga el oceano, 
qué espera un bajel luces en la gabia?
Tome tierra, que es tierra el ser humano."


Luis de Góngora, Sonetos Completos, Madrid: Castalia, 1969, p. 200. 

Saturday, December 29, 2018

INDULGENTE


"Deus é indulgente e, para Ele, primeiro estão os santos e as santas. Nascem predestinados, vozes anunciam-lho, as mães têm sonhos esclarecedores. Todos são belos, fortes e vitoriosos. Grandes halos os cercam, o rosto resplandece-lhes."

Emílio Zola, Um Sonho, trad. Maria do Carmo Santos, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1974, p. 21. 

UM SONHO


"Os poucos livros clássicos que tinha, tão secos e tão frios, já não existiam. Apenas a Legenda a apaixonava, a mantinha debruçada, de fronte entre as mãos, num arrebatamento, a ponto de já não viver da vida quotidiana, sem consciência do tempo, vendo subir do fundo do desconhecido o grande desabrochar do sonho."

Emílio Zola, Um Sonho, trad. Maria do Carmo Santos, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1974, p. 20.  

Tuesday, December 25, 2018

INOCÊNCIA


"Na Terra, pocilga transitória onde os enfeites e os perfumes não conseguem esconder a imundície, surgiu uma noite Jesus, nascido de uma Virgem sem mácula e armado apenas de inocência."

Giovanni Papini, História de Cristo, trad. Francisco Costa, Lisboa: Livros do Brasil, 2006, p. 26. 

Monday, December 24, 2018

ESTÁBULO


"Este é o verdadeiro Estábulo onde Jesus veio ao mundo. O lugar mais sórdido da Terra foi a primeira morada do único Puro nascido de mulher. O Filho do Homem, que havia de ser devorado pelas feras que se chamam homens, teve por berço a manjedoura onde os Brutos ruminam as flores miraculosas da Primavera."

Giovanni Papini, História de Cristo, trad. Francisco Costa, Lisboa: Livros do Brasil, 2006, p. 26. 

Sunday, December 23, 2018

ESPECTÁCULO


"Estas peças surgiram numa época de guerra constante e tornaram-se parte da educação dos soldados. Estes soldados, cujas naturezas tinham tanto de Walter Pater como de Aquiles, associados aos sacerdotes budistas e às mulheres no aperfeiçoamento da vida numa cerimónia, quer a jogar futebol, quer a beber chá, quer ainda a viver todos os grandes acontecimentos do Estado, transformaram-nas em ritual. Na pintura que decorava as suas paredes e na poesia que recitavam descobrem-se os únicos sinais de uma grande época que não podem decepcionar-nos, o mais vívido e subtil discernimento dos sentidos, e a invenção de imagens mais poderosas que os sentidos; a presença constante da realidade. É ainda verdade que Deus nos oferece, de acordo com a Sua promessa, não o Seu pensamento ou as Suas convicções mas a Sua carne e o Seu sangue, e acredito que a esmerada técnica das artes, parecendo criar, a partir de si própria, uma vida sobre-humana, ensinou mais homens a morrer do que a oratória ou o livro de orações. Só acreditamos naqueles pensamentos que foram concebidos, não no cérebro mas em todo o corpo. O soldado minóico que carregava sobre o braço o escudo ornamentado com a pomba, no Museu de Creta, ou que tinha sobre a cabeça o elmo com o cavalo alado, sabia desempenhar o seu papel na vida."

W. B. Yeats, Ouvir o Incenso, trad. Cecília Rego Pinheiro, Lisboa: Cotovia, 1999, pp. 28-29. 

Saturday, December 22, 2018

JARDINS INABITADOS



"jardins inabitados pensamentos
pretensas palavras em
pedaços
jardins ausenta-se
a lua figurada de
uma falta contemplada
jardins extremos dessa ausência
de jardins anteriores que
recuam
ausência freqüentada sem mistério
céu que recua
sem pergunta"


Ana Cristina César, Um Beijo que Tivesse um Blue - Antologia Poética, selec. e pref. Joana Matos Frias, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, p. 43. 

Friday, December 21, 2018

ANIVERSÁRIO



"Ó mundo! - e o canto claro das desgraças novas!
Ele conheceu-nos a todos e a todos nos amou. Saibamos, nesta noite de Inverno, de cabo em cabo, do pólo tumultuoso ao castelo, da multidão à praia, de olhares em olhares, forças e sentimentos lassos, acenar-lhe e vê-lo, e fazê-lo ir-se de novo, e sob as marés e no alto dos desertos de neve, seguir os seus olhares -, os seus alentos - o seu corpo -, o seu dia."


Arthur Rimbaud, "Iluminações", in Obra Completa, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio D'Água, 2018, p. 491. 

Thursday, December 20, 2018

ASSEZ VU



"Chega o que vi. A visão voltou de novo em todos os ares. 
Chega o que tive. Rumores das cidades, ao anoitecer, e ao sol, e sempre. 
Chega o que conheci. As paragens da vida. - Ó Rumores e Visões!
Partida no apego e no tumulto novos!"


Arthur Rimbaud, "Iluminações", in Obra Completa, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio D'Água, 2018, p. 415. 

Wednesday, December 19, 2018

GIGES


"Participar é uma maneira de se referir ao Outro: manter e desenvolver o seu ser, sem nunca perder contacto com ele em ponto algum. Destruir a participação é, sem dúvida, manter o contacto; mas não mais extrair o seu ser desse contacto: sem ser visto, como Giges. É preciso para tal que um ser, ainda que parte de um todo, tenha o seu ser a partir de si e não das suas fronteiras - não da sua definição -, exista independentemente, não dependa nem das relações que indicam o seu lugar no ser, nem do reconhecimento que Outrem lhe traria. O mito de Giges é o próprio mito do Eu e da interioridade que existem não-reconhecidos. Eles são por certo a eventualidade de todos os crimes impunes - mas tal é o preço da interioridade, que é o preço da separação."

Emmanuel Levinas, Totalidade e Infinito, trad. José Pinto Ribeiro, Lisboa: Edições 70, 2000, p. 48. 

Tuesday, December 18, 2018

HISTÓRIAS


"Seuls les moines respectent ce calendrier en totalité. Les populations laïques se contentent de respecter les fêtes les plus importantes et les interdits imposés par le Temps de l' Église ne sont que très rarement respectés. Par exemple, les rapports ente époux sont interits et huit jours après, huit jours après la Pentecôte, la veille des grandes fêtes, les dimanches, mercredis et vendredis, pendant la grossesse et trente jours après l'accouchement pour un garçon et quarante jours pour une fille, pendant la période menstruelle, et cinq jours avant la communion."

Jacques Attali, Histoires du Temps, Paris: Fayard, 1982, p. 74. 

Monday, December 17, 2018

ATINJA



"Nunca tão inefável seja
a beleza, que a não atinja
ao menos a dor de um desejo."


Armindo Rodrigues, Beleza Prometida, Lisboa: Centro Bibliográfico, 1950, p. 131. 

Sunday, December 16, 2018

ROLAR BRANCO



"A estrela chorou rosa tingindo-lhe as orelhas
O infinito da nuca aos teus rins rolou branco 
Fulvo perlou o mar as tuas mamas vermelhas
E o Homem sangrou negro em teu supremo flanco."


Arthur Rimbaud, Obra Completa, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio D'Água, 2018, p. 235. 

Saturday, December 15, 2018

PROMETEU


"de novo sobre o mar
caíram os rochedos
e os mergulhadores desceram 
ao fígado da terra

nada se cria sem palavras
a matéria é verbal
o verbo é ser
o espaço vegetal
substância de viver

distância sinusoide
flor de nada dizer
quimera hidra touro
pitonisa morrer

pilar da terra ao céu
perguntar - eu serei?
Prometeu pedra ponte

preso ao motor da nave
cego atento sou eu
subido perfurar
homem perfeito     ave"


E. M. de Melo e Castro, "Queda Livre", in Trans(a)parências - Poesia I (1950-1990), Sintra: Tertúlia, 1990, p. 90. 

Thursday, December 13, 2018

DELICADAMENTE



"A bondade plana perto da minha casa. 
A Dona Bondade, ela é tão simpática!
As jóias azuis e vermelhas dos seus anéis de fumo
Nas janelas, os espelhos
Enchem-se de sorrisos. 

Que há mais real do que o gemido de uma criança?
O gemido de um coelho pode ser mais selvagem
Mas não tem alma. 
O açúcar tudo cura, é o que diz a Bondade.
O açúcar é um fluido necessário, 

De cristais que são como um pequeno penso. 
Ó bondade, bondade
A apanhar delicadamente os grânulos!
As minhas sedas japonesas, borboletas desesperadas, 
Para fixar a qualquer momento, anestesiadas. 

E lá vens tu, com uma chávena de chá
Numa auréola de vapor. 
O jacto de sangue é poesia, 
Nada o pode estancar. 
Tu trazes-me dois filhos, duas rosas."


Sylvia Plath, Ariel, trad. Maria Fernanda Borges. Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 167. 

Wednesday, December 12, 2018

INFINITO


"Pensar o infinito, o transcendente, o Estrangeiro, não é pois pensar um objecto. Mas pensar o que não tem os traços do objecto é na realidade fazer mais ou melhor do que pensar."

Emmanuel Levinas, Totalidade e Infinito, trad. José Pinto Ribeiro, Lisboa: Edições 70, 2000, p. 36. 

Tuesday, December 11, 2018

OBJECTO CORPO


"O objecto virtual
está sempre no deserto
tanto quando está longe
como quando está perto

é sempre um objeto
não materializado
mãos de quem dividido
sempre se dinamiza

tem a força em si próprio
tem a própria camisa
porta que para dentro

se abre e realiza
mas fica sempre porta
objecto corpo ventre"


E. M. de Melo e Castro, "Poligonia do soneto", in Trans(a)parências - Poesia I (1950-1990), Sintra: Tertúlia, 1990, pp. 180-181. 

Monday, December 10, 2018

A CRUZ


"A pureza do coração, de que falam os monges, caracteriza o coração, que está completamente preenchido por Deus. Quando se encontra repleto por Deus, já se encontra na eternidade. Porque Deus é o Deus eterno. Em Deus, abandono o tempo. Entro então em contacto com aquilo que está para lá de todo o tempo. Isso relativiza o meu próprio tempo terreno. Não posso apanhá-lo mais. Também não posso matá-lo com muitas atividades. Pressinto o verdadeiro mistério do tempo."

Anselm Grün, Ao ritmo do tempo dos monges, trad. Ana Varela, Prior Velho: Edições Paulinas, 2006, p. 111. 

Sunday, December 9, 2018

OPOSTO


"Para Evrágio Pôntico, o escritor mais importante das antigas instituições monásticas, a contemplação é uma oração sem palavras, sem imagens e sem pensamentos. O nosso pensamento consuma-se no tempo. As palavras precisam de tempo. A contemplação é a sensação de que tudo é uno, de que eu estou unido a Deus, que é o oposto do tempo. E, ao estar unido a Deus, estou também unido a mim, ao meu verdadeiro ser. E aí sou testemunha de que existe algo em mim que ultrapassa o tempo. Existem em mim algo que não é dependente do tempo, algo que é eterno. Não sou um escravo do tempo. Existe em mim um espaço livre, sobre o qual o tempo não pode decidir, porque é retirado ao tempo. Neste espaço livre que a contemplação me abre, acabam-se as preocupações. Aí, não penso no que aconteceu antes e não me preocupo com o futuro, existo simplesmente."

Anselm Grün, Ao ritmo do tempo dos monges, trad. Ana Varela, Prior Velho: Edições Paulinas, 2006, p. 102. 

Saturday, December 8, 2018

CONCEIÇÃO



"Vejo-te só a ti no azul dos céus, 
Olhando a nuvem de oiro que flutua...
Ó minha perfeição que criou Deus
E que num dia lindo me fez sua!

Nos vultos que diviso pela rua,
Que cruzam os seus passos com os meus...
Minha boca tem fome só da tua!
Meus olhos têm sede só dos teus!

Sombra da tua sombra, doce e calma,
Sou a grande quimera da tua alma
E, sem viver, ando a viver contigo...

Deixa-me andar assim no teu caminho
Por toda a vida, Amor, devagarinho, 
Até a Morte me levar consigo..."


Florbela Espanca, Sonetos Completos, 8.ª ed., Coimbra: Livraria Gonçalves, 1950, p. 180. 

Friday, December 7, 2018

O TEMPO PREENCHIDO



"Na recitação dos Salmos, o tempo adquire, para mim, uma qualidade diferente. Ganha colorido, tom e ritmo. Rezo os Salmos juntamente com Cristo, que, há dois mil anos, reflectiu sobre o mistério da vida e do mundo com as mesmas palavras. Nesta oração suprime-se, portanto, o tempo. Eu estou no tempo atual. Mas participo na experiência de Jesus e na experiência de todas as pessoas que, desde há mais de 3000 anos até hoje, rezaram os Salmos. Mas também rezo os Salmos em conjunto com as pessoas que já morreram e que agora estão junto de Deus. Em muitos passos da recitação, penso em determinados santos que exprimiram a sua ansiedade em relação a Deus e agora compreendem essas palavras de uma nova forma, na glória de Deus. Desse modo, o passado e o presente tornam-se um só. O presente é o tempo preenchido. Não é apenas o momento, mas também o local em que o passado e o presente convergem. De momento, vivo no passado. E, ao mesmo tempo, o futuro já é conhecido."

Anselm Grün, Ao ritmo do tempo dos monges, trad. Ana Varela, Prior Velho: Edições Paulinas, 2006, p. 51. 

Wednesday, December 5, 2018

DÁDIVA


"Tu quiseste, é certo, poupar-me o tempo que eu teria gastado na tagarelice, e o inferno das palavras à volta da jóia perdida - quem se libertará desses litígios, se o que afinal está em causa não é uma jóia, mas a morte? - ou da amizade ou do amor. Porque amor ou amizade só em Ti se ligam verdadeiramente e é Tua intenção só lá me permitires o acesso através do Teu silêncio."

Antoine de Saint-Exupéry, Cidadela, trad. Ruy Belo, 3.ª ed., Lisboa: Editorial Aster, 1973, p. 409. 

Tuesday, December 4, 2018

TESTEMUNHA


"É no silêncio do caminho aberto:

Quanto maior a alma maior o deserto
maior a sede e a miragem
do mundo à nossa imagem"

Luís Veiga Leitão, Longo Caminho Breve, Lisboa: IN-CM, 1985, p. 43. 

Monday, December 3, 2018

CRESCER NO MURO



"Cresce uma pedra no muro
De uma muralha aberta
Ao cair do tempo

Serenas crescem as ervas
Sobre o corpo que alheio olha
Os seus homens
Que crê ainda
Combatem lá muito ao longe

E caem ameias pedra a pedra
Ao grito mais agudo da mulher
E diz ouvi-la há muito tempo
Chorará a morte do seu filho

E entretanto
Embala o pó e canta
Uma história de homens que virão
Um dia
Com nomes de vitória"


Daniel Faria, "Uma Cidade com Muralha", in Poesia, 2.ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 334. 

Sunday, December 2, 2018

EXTENSÃO


"E, na verdade, eu odeio o quotidiano, que não te traz nada. E respeito a oferta ao homem da extensão e do silêncio. Mais útil que a posse de um celeiro a mais, parece-me a posse das estrelas do céu - e do mar - embora não saibas dizer-me em que é que elas cultivam o coração. Mas tu deseja-las, lá do fundo do bairro de lata, onde morres abafado. Elas são apelo para uma migração maravilhosa. Pouco importa que semelhante migração seja impossível. A pena do amor é o amor. Mal tentas emigrar para o amor, estás salvo."

Antoine de Saint-Exupéry, Cidadela, trad. Ruy Belo, 3.ª ed., Lisboa: Editorial Aster, 1973, p. 358. 

Saturday, December 1, 2018

A PENUMBRA DOS ARCANOS



"Tudo se ensina a ver em tudo quanto
           Se purifica e ama,
O mesmo anseio universal e santo, 
          - A mesma eterna chama.

Homem, floresta ou cor, ou som perdido, 
          Ou astro ou pensamento, 
Em tudo se ergue o canto comovido
           Do mesmo sentimento!...

Longas géneses de milhares d'anos, 
           - Momentos imortais - 
Rasga a luz a penumbra dos arcanos
Ao nosso olhar de crentes e de humanos, 
            Entre as coisas reais...

E pela treva dissipada, embora, 
           No passar das idades, 
Ansiando o Sol e desejando a Aurora, 
A Vida veio pelo tempo fora
           Concebendo as inéditas verdades..."


Augusto Casimiro, Obra Poética, Lisboa: IN-CM, 2001, p. 103. 

Friday, November 30, 2018

EM TÃO GRANDE ESPLENDOR


"Pela palavra nasceram todas as coisas
Em amorosa torrente foram nomeadas
Foram sonhadas desejadas e criadas
O Aberto abria os mundos em sossegado fluir
Em sucessão de luz e escuro
De terra e água
E todas as coisas eram plenas e inteiras. 
O primeiro homem a primeira mulher
Na vibração total do ser de cada um
Em uníssono com a Unidade
Em diálogo de igual para igual. 
A palavra depois foi sombra e foi engano
Na primeira ferida que a todos feriu
E o Jardim se perdeu e foi desabitado. 
A dor e a morte invadiram a vida
E o trabalho foi ganho com o suor do rosto.
As origens retornam como eco e visão
Mais não pode vislumbrar o coração
Ver essa falha redimida e colmatada
E o brilho recobrir a palavra clareada
Em tão grande esplendor como se não brilhasse
Perpassando o trabalho e o suor
Com o ouro do amor. 
E ver o fogo que consome sem destruir
No labor de polir e esculpir
Este nosso rosto sempre inacabado
Longe e perto do que foi criado."

Maria Teresa Dias Furtado, Livro de Ritmos, Lisboa: Labirinto, s.d., p. 73. 

Thursday, November 29, 2018

ANDAR


"O ser não tem aptidões nem falhas que permitam à linguagem dá-lo a conhecer a todos os que dele participam. O ser revela-se a cada um segundo a sua linguagem particular. 
O ser não falha as ocasiões. Alimenta-se, constrói-se, converte. A pessoa singular, se apenas conhece a lógica do seu andar, é possível que o ignore (a mulher, o aproveitamento do tempo, não o desejo de se encontrar em casa. 
A falha, em si, não existe. Todo o acto é justificável, nobre ou mesquinho ao mesmo tempo, conforme o ponto de vista. Existe, sim, em relação ao ser ou falha do ser. 
Cada um pode ter razões nobres para não agir numa certa distracção. Nobres e lógicas. E é porque o ser não o arrastou com bastante força. Aí tens aquele que, em vez de forjar rebites esculpe pedras. Ele atraiçoa o veleiro. 
Longe de mim ouvir-te expor as razões do teu comportamento: tu não tens linguagem. 
Ou, mais exactamente, há uma linguagem do príncipe, depois uma linguagem dos seus arquitectos, depois uma dos seus chefes de grupos, depois uma dos forjadores de rebites, depois uma dos simples operários."


Antoine de Saint-Exupéry, Cidadela, trad. Ruy Belo, 3.ª ed., Lisboa: Editorial Aster, 1973, p. 304. 

Wednesday, November 28, 2018

CONDIÇÃO DIVINA


"O já-não-poder-chamar os antigos deuses, este querer acatar a renúncia, que outra coisa será - e não é outra coisa - senão a disponibilidade unicamente possível e decidida para esperar a chegada do divino; é que os deuses só podem ser abandonados, como tais, na renúncia se, e quanto mais intimamente, estiverem fixados na sua condição divina. Onde o ente mais querido se foi embora, o amor permanece, visto que, de outro modo, o mais querido não poderia sequer ter-se ido embora."

Martin Heidegger, Hinos de Hölderlin, trad. Lumir Nahodil, Lisboa: Instituto Piaget, 2004, p. 94. 

Tuesday, November 27, 2018

MISTÉRIO


"Quem afasta o mistério para o domínio do «irracional», como fazendo parte do que é chamado inexplicável, não só não o resolve, como também não o concebe nem o aceita como mistério. Embora tal afastamento crie a aparência do respeito e da reverência perante o mistério, trata-se na realidade de uma atitude de indiferença, que vulgariza o mistério e o torna acessível à especulação indisciplinada e à arbitrariedade do opinar aleatório. Contrariamente a isto, o canto - a poesia - tem por função revelar o que nasce da pureza. Se o poetizar for grande e autêntico, fracassará necessariamente ao empreender tal tentativa."

Martin Heidegger, Hinos de Hölderlin, trad. Lumir Nahodil, Lisboa: Instituto Piaget, 2004, pp. 220-221.

Monday, November 26, 2018

DA ESPERANÇA



"Como um golpe se abre funda ferida
Dor que desatina da perda sem retorno
Dos da vida pela morte desmedida
Mágoa que enche o coração e tudo em torno

Dia pesado como bátegas de chuva
Que violentas caem e são granizo
Não há sabores nem cheiros a vista é turva
Tudo chegou sem dó e sem aviso

Ó sol, ó estrelas, ó plenilúnio, ó luz
Ó águas que sem margem vão correndo
Dai-nos a cor o ar o alento que reduz

E suaviza a pena que em nós se vai movendo
Uma prece se ergue ao alto pela partida
E oferece a flor da esperança ao espírito e à vida"


Maria Teresa Dias Furtado, Livro de Ritmos, Lisboa: Labirinto, s.d., p. 27. 

Sunday, November 25, 2018

EQUILÍBRIO



"Essencialmente equilíbrio:
nem máximo nem mínimo. 

Caminho determinado
movimentos precisos sempre
medo controlado máscara
de serenidade difícil.

Atenção dirigida olhar reto
pés sobre o fio sobre a lâmina
ser uma só idéia nítida
equilíbrio. Equilíbrio.

Acaba a prova? Só quando 
o trapézio oferece o vôo
e a queda possível desafia
a precisão do corpo todo.

Acaba a prova se a aventura 
inda mais aguda se mostra
mortal intensa desumana
desequilíbrio essencialmente."


Orides Fontela, Trevo (1969-1988), São Paulo: Duas Cidades, 1988, p. 65. 

Saturday, November 24, 2018

INSTANTE



"Momento 
                 pleno:
pássaro vivo
atento a.

Tenso no
              instante
- imóvel vôo - 
plena presença 
pássaro e 
             signo

(atenção branca
aberta e
            vívida). 

Pássaro imóvel. 
Pássaro vivo
atento
a."


Orides Fontela, Trevo (1969-1988), São Paulo: Duas Cidades, 1988, p. 145. 

Friday, November 23, 2018

OPIÓMANO



"Nem além, nem aqui:
Nada, nenhum lugar que as coordenadas, 
Que os pontos cardeais possam domar, 
Prender, subjugar.
Eu quero o lugar sem direcções, 
Sem espaço, sem tempo consciente. 
Eu sou o opiómano
Dos limbos e dos nenhures."

Nuno Rocha Morais, Galeria, Porto: Edições Simplesmente, 2016, p. 32. 

Thursday, November 22, 2018

HUMANIDADE



"A humanidade é sempre a mesma, sim. 
Mas quando se muda de país, como é difícil 
interpretar os gestos e os sinais que podem ser
desejo, sedução, atracção física!
Os mesmos são, e os fins também os mesmos.
O código, porém, tem divergências
que podem estragar tudo."


Jorge de Sena, 40 Anos de Servidão, Lisboa: Edições 70, 1989, p. 108. 

Wednesday, November 21, 2018

ÉTER


"Ditosa Grécia! Morada de todos os Celestiais, 
    É então verdade o que ouvimos dizer na nossa juventude?
Sala festiva! O soalho é o mar! E as mesas os montes.
    Criados em tempos imemoriais para esse único fim!
Mas onde estão os tronos? E os templos? E os vasos
    Cheios de néctar que com os cânticos deliciavam os deuses?
E onde se encontra agora o brilho dos oráculos que o longe abarcavam?
    Delfos dormia, e onde ressoa o destino grandioso?
Onde paira, veloz? Onde se anuncia, trovejante, cheio de felicidade omnipresente
    Atravessando os ares serenos, ofuscando-os os olhos?
Pai Éter! gritavam e esse grito corria de boca em boca, 
    De mil maneiras, pois ninguém era capaz de, sozinho, suportar a vida;
Compartilhar tamanho bem causa alegria e comunicá-lo aos estranhos
    Enche de júbilo e durante o sono cresce o poder da palavra
Pai! Ó Sereno! E eis que esse sinal antiquíssimo, herdado dos antepassados, 
    Ecoa, enchendo a distância, certeiro e fecundo. 
Deste modo voltarão os Celestiais, despontando das profundezes
    Das sombras chega o seu dia até aos homens."

Friedrich Hölderlin, "O Pão e o Vinho", in Elegias, trad. Maria Teresa Dias Furtado. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 71. 

Tuesday, November 20, 2018

LAÇO DIVINO


"Mas não levantarei o exército para defender provisões. As provisões estão prontas e não tens nada a esperar delas, a não ser que se transformem em gado morno. 
E por isso, se se te extinguirem os deuses, já não aceitarás morrer. Mas também não viverás. Porque não existem os contrários. Embora a morte e a vida se oponham uma à outra, como palavras que são, o certo é que só podes viver daquilo que te pode fazer morrer. E o que recusa a morte, recusa a vida. 
Se não houver nada acima de ti, não tens nada a receber. A não ser de ti próprio. Mas que hás de tu ir buscar a um espelho vazio?"


Antoine de Saint-Exupéry, Cidadela, trad. Ruy Belo, 3.ª ed., Lisboa: Editorial Aster, 1973, p. 236. 

Monday, November 19, 2018

DIFUNDE


"Apesar de tudo, difunde em nós consolação e força, a noite magnífica! Na sua presença sublime as nossas pequenas contrariedades dissipam-se. O dia foi tão cheio de pressa e de cuidados, os nossos corações viveram tão cheios de mais pensamentos e amarguras, o mundo pareceu-nos tão duro e injusto...Mas a noite imensa, qual mãe amorável, poisa a meiga mão sobre o nosso peito febril e inclina-se sobre o nosso rosto inundado de lágrimas. Sorrimos e, ainda que tudo se cale, compreendemos a muda linguagem dos astros. A noite bafeja-nos o rosto afogueado e a nossa dor desvanece-se."

J. K. Jerome, Três homens num bote, trad. Raquel Queirós de Barros, Lisboa: Editores Associados, s.d., p. 115. 

Sunday, November 18, 2018

A CASA SILENCIOSA


"Homens e mulheres, somos todos feitos para viver ao sol. Gostamos da luz e da vida. Por isso nos amontoamos nas vilas e cidades e por isso o campo, ano a ano, está mais despovoado. De dia, há decerto a luz do Sol, a natureza freme e palpita, e até as encostas nuas das montanhas e as florestas sombrias nos encantam. Mas de noite, quando a terra nossa mãe adormeceu, ah!, então o mundo parece bem solitário e temos medo como crianças numa casa silenciosa. Suspiramos, aspiramos a ver as ruas iluminadas pelos bicos de gás, a ouvir de novo a voz dos nossos semelhantes e a animação da vida humana. Sentimo-nos tão fracos, tão pequenos no meio do grande silêncio em que a ramaria vibra ao sopro da brisa nocturna! Rodeiam-nos tantos fantasmas, cujos suspiros abafados tanto nos entristecem! Oh!, sim, juntemo-nos todos nas grandes cidades, acendamos o grande e alegre fulgor de um milhão de bicos de gás e gritemos e cantemos juntos para nos sentirmos viver!"


J. K. Jerome, Três homens num bote, trad. Raquel Queirós de Barros, Lisboa: Editores Associados, s.d., p. 67. 

BONDADE



"Se o acerbo fiel dos prantos 
corrói o coração, 
e ao desditoso tira
do choro a expansão
abençoada é a morte, 
se ao mártir Deus a envia;
abençoada é a ânsia 
da última agonia. 

Deus é bom. A esperança
renasce ao pé da cruz:
- aquém da campa, as trevas
e além, luz sobre luz, 
a luz da eternidade, 
o dia refulgente
do mártir que se dobra
chorando penitente."

Camilo Castelo Branco, Ao Anoitecer da Vida, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1999, p. 73. 

Saturday, November 17, 2018

OURO



"O homem sofre e geme. A existência
é agra, é fel servido em taça d'ouro.
O riso do feliz é a cal do túmulo:
há de vermes lá dentro um roer surdo. 
Tais júbilos não vêm ungidos d'alma. 
Do coração ao rosto o pensamento
de remorso que foi torna-se em riso. 
Não é o pobre só vítima do ouro:
primeiro, o rico geme escravo dele, 
escravo, sim, que eu perscrutei o fundo
de muitas almas vis, e contristado, 
ousei dizer a Deus - que extrema escória
devera o homem ser.
Quais os felizes?"

Camilo Castelo Branco, Ao Anoitecer da Vida, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1999, p. 109. 

Thursday, November 15, 2018

ENLEVOS



"Não sentes, não ouves um hino tão pulcro, 
sem letras, sem notas, sem voz conhecida, 
um hino, que é d'anjos, se os anjos descantam,
em salmos celestes, mistérios da vida?

Não vês, como eu vejo o céu bonançoso
por tardes estivas, no ermo a cismar, 
estranhas imagens de nuvens vestidas
Contando segredos às vagas do mar?

Não tens, como eu tenho, saudades dum tempo, 
fulgor instantâneo da infância... não tens?
Não vês que tão caros os gozos se compram?
Que penas em troca de tão raros bens!

Quiseras que um anjo te desse o destino?
Quiseras prever neste mundo um laurel?
Não queiras que os anjos eleitos da glória
Tem neste desterro o seu cálice de fel. 

A vaga tristeza, que ensombra o teu rosto, 
não sei se tormentos futuros prediz!
Tão bela, tão nobre, tão pura em desejos, 
quem pode no mundo fazer-te infeliz !?

Eu, não! que a virtude respeitos inspira
ao vício, que às vezes simula desdéns. 
Não creias que possam perversos... não podem
as rosas calcar da grinalda que tens. 

Não temas! Confia no céu que te manda
mostrar-me visível a imagem de Deus, 
na face, onde brilham esplêndidos traços
dos anjos que os homens namoram nos céus."


Camilo Castelo Branco, Ao Anoitecer da Vida, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1999, pp. 62-63. 

Wednesday, November 14, 2018

LÁBIOS PULCROS



"Tenho pensado na morte, 
tenho-a visto leda e bela, 
como pálida donzela
engrinaldada de flores;
enamora-me a amizade
desta fada dos sepulcros:
ela só diz a verdade;
nunca o perjúrio, a mentira
maculou seus lábios pulcros. 
Morte! Eu dou-te a minha lira;
vem, doce esposa, vem ver, 
como em teus braços delira, 
com frenético prazer, 
o teu amante consorte;
vem colher o beijo extremo
sobre o lábio agonizante, 
de quem dá um riso à morte, 
como a um bem do céu supremo."


Camilo Castelo Branco, Ao Anoitecer da Vida, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1999, p. 37. 

Monday, November 12, 2018

TRANSPORTE


“Mas assim eu não transporto nada que tu não saibas. E a minha linguagem não foi feita para carrear todos já realizados, como pintar cor de rosa a flor, mas para construir, com a ajuda das palavras mais simples, operações que te liguem. A sua missão não é dizer que determinada flor é bonita, mas que ela te introduziu o silêncio no coração como por vezes, à tardinha, a água do repuxo.”

Antoine de Saint-Exupéry, Cidadela, trad. Ruy Belo, 3.ª ed., Lisboa: Editorial Aster, 1973, p. 177. 

Sunday, November 11, 2018

CENTENÁRIO




"Dói a vida, 
ri a vida, 
em quanto amor a abrasa.

Uma pomba sobe
ferida
nas flores da madrugada. 

O horizonte da verdade
é nos homens que se alarga."


Armindo Rodrigues, A Paz Inteira, Lisboa: Centro Bibliográfico, 1954, p. 13. 

Saturday, November 10, 2018

QUEDA


"Quantas vezes ainda verei eu cair
as pálidas leves folhas do outono?
- Não pode o homem vê-las 
cair e conseguir viver
(E cá estou também eu
cá estou eu incorrigivelmente a cantar 
as gastas folhas do outono
as mesmas das minhas mais antigas leituras
as primeiras e as últimas que tenho visto cair
Haverá outra poesia que não
a que cai nas tristes 
folhas do outono?)
- Não pode o homem ver 
cair as folhas e viver"

Ruy Belo, Aquele Grande Rio Eufrates, 5.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1996, p. 118.