Friday, October 31, 2014

APONTAR


"Já em vindo embora, um senhor meio velho apontou pra o lado que o sol esconde, falando: "vigia aquelas nuvens, tão que é só ouro."

Adélia Prado, Solte os cachorros, Lisboa: Cotovia, 2003, p. 112. 

Wednesday, October 29, 2014

ILUMINAR



"O Pai, agarrando por sua vez o braço do filho. - Enfim, é isto! Sou a sombra de uma nuvem; um aguaceiro, e o sol iluminará o lugar onde vivi. Que me importa? Quem ganha, perde. A empresa que hoje nos esmaga fi-la eu. Não há nada a lamentar."

Jean-Paul Sartre, Os Sequestrados de Altona, trad. António Coimbra Martins, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., Ato V, cena I, p. 132.

Monday, October 27, 2014

MEDITAÇÃO


"
1
A vida tem a ver
com a porcaria
com a entropia
(enganou-se o Duque de Gandia)
é cristão
amar o chichi o cocó o chulé
a menstruação
do irmão
amar mais o DDT e a lixívia
que o irmão
não é cristão
do irmão 
os nazis
fizeram sabão

2
Só servirei senhor
que possa morrer
a morte é simples
como ir do interior
da casa
para a rua
sinto os mortos
no frio
das violetas
só a morte
é realmente real"


Adília Lopes, "Meditação Sobre Meditação", in Verbo - Deus como interrogação na poesia portuguesa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, pp. 198-199. 

SEQUESTRO



"Johanna - Era insuportável. Tive de romper o silêncio. 
Frantz - Quebrar o encanto. 
Johanna - O encanto, de toda a maneira, já estava quebrado. (Pausa.) Que é que tem? (Ri nervosamente.) Os seus olhos parecem a objectiva de uma máquina de filmar. Pare com isso. É como se estivesse morto. 
Frantz - Morto para servir. A Morte é o espelho da Morte. A minha grandeza reflecte a sua beleza."

Jean-Paul Sartre, Os Sequestrados de Altona, trad. António Coimbra Martins, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., cena VIII, Acto II, pp. 73-74. 

Sunday, October 26, 2014

FAZER O MUNDO



"Amor eu disse. Não é este o nome do que nunca desiste de soprar uma forma sobre o barro? Galharda, olímpica, passo à frente, esquecida, entre suspiros, e cantar d'amores, seu fogo infátuo, o pecado original. Pelo reino deste mundo meu coração suspira, pela saudável beleza, pela longa vida, meus filhos, rebentos de oliveira, ao redor da minha mesa. Não fiz o mundo mas tenho que carregá-lo. Que bom se eu só pudesse gozar."

Adélia Prado, Solte os cachorros, Lisboa: Cotovia, 2003, p. 68. 

Saturday, October 25, 2014

BARRO


"Levamos nossa fé em vasos de barro, diz o apóstolo que me magoa por tratar mal as mulheres. Mas naquilo ele tem razão. E não só a Fé, a Beleza também é Bem portátil que se ganha e carrega. Veio antes de nós, foi gerada de cima e concedida. Por isso, uma e outra transem. Nosso é só o espinho, o estrume, a unha cheia de terra. Sabendo que me ultrapasso eu digo a você, pra celebrar nosso caso, como disse o chefe islamita em discurso ao bispo, pra celebrar a surpreendente união de maometanos e cristãos numa comunidade indonésia, "nosso amor é como bosta de búfalo, cai mas não racha". Como vê, nem o excremento é nosso, se lhe pega a poesia. Pura graça o que nos move. Vou é chorar de tanta boa pobreza."

Adélia Prado, Solte os cachorros, Lisboa: Cotovia, 2003, p. 17. 

Thursday, October 23, 2014

ANOITECER



"A noite é, ou pelo menos era temida, escandalosa, ou até sagrada. Extraordinariamente solitária, imensa, ressoante, tornava-se pertença dos pássaros e dos astros. Daqueles pássaros que largam pios repetidos, como pingos de água caindo de alto, e de outros que gorjeiam com indizível melancolia. Pertencia-lhes e ao Perdigoto, de longe em longe."

Irene Lisboa, Voltar atrás para quê?, Lisboa: Unibolso, s.d., p. 78. 

Wednesday, October 22, 2014

CRESTADO



"Eis já o lívido Outono
Pesa o manto nas florestas;
Cessaram as brandas festas
De natureza louçã. 
Tudo aguarda o frio Inverno;
Já não há cantos suaves
Do montanhês e aves, 
Saudando a luz da manhã. 

Tudo é triste! os verdes montes
Vão perdendo os seus matizes, 
As veigas e os dons felizes, 
Tesouro dos seus casais; 
Dos crestados arvoredos
A folha seca e mirrada, 
Cai ao sopro da rajada, 
Que anuncia os vendavais."


Soares de Passos, Poesias, 11ª ed., Porto: Lello & Irmão, 1967, p. 8. 

Tuesday, October 21, 2014

MORMAÇO



"Bem-aventurado o que pressentiu
quando a manhã começou:
não vai ser diferente da noite. 
Prolongados permanecerão o corpo sem pouso, 
o pensamento dividido entre deitar-se primeiro
à esquerda ou à direita
e mesmo assim anunciou paciente ao meio-dia:
algumas horas e há anoitece, o mormaço abranda,
um vento bom entra nessa janela."


Adélia Prado, Bagagem, Lisboa: Cotovia, 2002, p. 70. 

Monday, October 20, 2014

FUNDO


"Fundos de teatro como este - porque tudo, a vida de cada um de nós, por mais insignificante que pareça, contém basta matéria teatral, ou cénica e de recomposição - fundos de teatro alimentados pela ambição do dinheiro, das terras e das casas, dos valores materiais, serão sempre correntes. O resto, invejas, domínio, preponderância, numa palavra, sentimentos e atitudes, representam a cor e a nata que tudo cobre, a granjeia e a capa do bolo."

Irene Lisboa, Voltar atrás para quê?, Lisboa: Unibolso, s.d., p. 52. 

Sunday, October 19, 2014

DOMINGO



"Na minha cidade, nos domingos de tarde, 
as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas. 
Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta, 
a campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:
'Eh bobagem!'
Daqui a muito progresso tecno-ilógico, 
quando for impossível detectar o domingo
pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas, 
em meu país da memória e sentimento, 
basta fechar os olhos:
é domingo, é domingo, é domingo."


Adélia Prado, Bagagem, Lisboa: Cotovia, 2002, p. 48. 

Saturday, October 18, 2014

DIVINÓPOLIS




"Eu quero a fotografia,
os olhos cheios d'água sob as lentes, 
caminhando de terno e gravata, 
o braço dado com a filha.
Eu quero a cada vez olhar e dizer:
estava chorando. E chorar. 
Eu quero a dor do homem na festa do casamento, 
seu passo guardado, quando pensou:
a vida é amarga e doce?
Eu quero o que ele viu e aceitou corajoso, 
os olhos cheios d'água sob as lentes."


Adélia Prado, Bagagem, Lisboa: Cotovia, 2002, p. 129. 

Thursday, October 16, 2014

O INTENTADO


"E toda a arte consiste em deixar a palavra puramente ao olho que vê e em desligar o visar (Meinen) que, entrelaçado com o ser, transcende; em desligar o suposto ter juntamente dado, o concomitantemente pensado e, eventualmente, o que é uma interpretação introduzida por uma reflexão que se acrescenta. A constante pergunta soa assim: o que é intentado está / dado no sentido autêntico, vê-se e apreende-se no sentido mais estrito, ou o intentado (das Vermeinte) vai mais além?"

Edmund Husserl, A Ideia da Fenomenologia, trad. Artur Morão, Lisboa: Edições 70, 2014, p. 90. 

Wednesday, October 15, 2014

LIMITE



"- Anda aqui o Diabo! - exclamou Escolástica. - Que queres dizer? - perguntou Gérande -, este facto parece-me natural; tudo se limita à terra, e o infinito não pode sair da mão dos homens."

Júlio Verne, Histórias Inesperadas, trad. Ana Rabaça, Lisboa: Edições Ramos, 1979, p. 14.

Monday, October 13, 2014

ESPACIAL



"- Acho que o pai tem razão - declarou Clover. - A ficção científica deu às pessoas mais falsas esperanças do que dois mil anos de Bíblia. Tudo mentiras. O programa espacial... é nisso que estão a pensar? Era um poço sem fundo, um desperdício do dinheiro dos contribuintes. Não há nenhum futuro no espaço! Adoro esta palavra... espaço! É isso mesmo o que eles estão a descobrir... espaço vazio!- Também acho que o pai tem razão - acrescentou April. - Isto é o futuro. Um pequeno motor num pequeno barco, num rio enlameado. Quando o motor rebentar ou se acabar a gasolina... remamos! Nada de homens do espaço! Nada de combustíveis, foguetões ou cúpulas de vidro. Apenas trabalho! O homem do futuro vai ser um cavalo de carga! não há nada na Lua a não ser pedras e borbulhas, e aqueles de nós que herdaram esta Terra senil e exaurida não terão nada a não ser rodas de madeira, carroças, alavancas e roldanas... A mais simples física do liceu, que deixaram de ensinar quando toda a gente a largou para começar a ler ficção científica, Não... nada disso! Ou cultivamos o que comemos, ou morremos. Nada de pílulas verdes e montes de comida da boa! Trabalho violento... simples, mas não fácil. Percebem? Nada de raios laser ou electricidade, apenas a potência dos músculos. O que estamos agora a fazer! Somos as pessoas do futuro, utilizando a tecnologia do futuro! Descobrimo-las!" 

Paul Theroux, A Costa de Mosquito, trad. Manuel Cordeiro, Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, pp. 367-368. 

Sunday, October 12, 2014

ODOR


"A floresta era mais escura, estávamos no fundo do oceano de árvores que havíamos visto e continuávamos a descer. Os meus sentidos diziam-me mais do que eu podia explicar logicamente. O cheiro da água estagnada, fumo de madeira, carne queimada, e um outro cheiro mais violento, sujo e rançoso, a latrinas e cães, tudo aquilo misturado. Era o cheiro que eu agora associava com as habitações humanas, não as nossas, mas as de outras pessoas. A limpeza de Jerónimo educara o meu nariz para aqueles intensos odores."

Paul Theroux, A Costa de Mosquito, trad. Manuel Cordeiro, Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, pp. 246-247. 

Friday, October 10, 2014

RACHA


"- Eu baptizo-os - declarou Drainy. - Sei como é. - Só há uma coisa - disse Alice -, o Drainy não sabe nadar. Não pode baptizar-nos sem saber nadar. Pode ser apanhado por monstros que estão dentro de água - concluiu, afastando-se.- Se tens medo, podemos esquecer o assunto - afirmei, virando-me para Drainy.- Não tenho medo - retorquiu, sentando-se na margem e agitando os pés dentro de água. - E vocês vão para o Inferno se não forem baptizados. - Não acreditamos no Inferno - declarou Clover. - Só as pessoas ignorantes acreditam no Inferno. - Se a Alice puxar as calças para baixo e mostrar a racha então vai mesmo para o Inferno! - disse Drainy."

Paul Theroux, A Costa de Mosquito, trad. Manuel Cordeiro, Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, p. 194. 

Thursday, October 9, 2014

OU DA PERA



"Repara, Filis: a maçã dourada, 
Que ainda há pouco na macieira ria, 
Tão alegre e tão clara como o dia, 
- Ei-la no chão caída, encarquilhada.

Onde está sua graça perfumada,
Que a dos lírios e rosas abatia?
A devorá-la, correm à porfia
As formigas, em turba alvoroçada.

Filis! vem reclinar-te no meu leito, 
E deixa-me oscular teu níveo peito, 
Teus braços, tua boca de romã!

Carícias te darei de ideal moleza...
Não me resistas mais! Tua beleza
Passará, como o viço da maçã."


Eugénio de Castro, "Figurinhas de Tanagra", in Obra Poética, Tomo III, ed. Vera Vouga, Porto: Campo das Letras, 2007, p. 131. 

Wednesday, October 8, 2014

SÍMBOLOS



"Porque não se pode ser senão linguagem, diminuindo ou alargando a consciência: retórica ou retórica contra si mesma. Perante tal evidência, é chegado o momento de se sufocar a voz poética o romanesca que por algum tempo carregamos. Pois, por mais que se queira teimar na linguagem enquanto retórica conta si mesma, nessa hora já nada resta senão retórica. Um poeta ou romancista são impérios que se desmoronam na impiedade dos seus próprios vícios."

Paulo José Miranda, Vício, Lisboa: Cotovia, 2001, p. 85. 

Monday, October 6, 2014

CONHECER


"Consegui ser, de algum modo, como os outros ou aquilo que julgo que são os outros. Porque o que todos procuramos na distracção é esse eterno, perdido para sempre, mas que recusamos aceitar. Nem sequer se trata de uma recusa, porque não há consciência disso. Um homem que se tenta conhecer a si próprio é ingénuo, mas um homem preso em pensamentos a tentar conhecer-se é digno de piedade. Digno de piedade  porque se trata de um doente, de um doente aflitivo. Há quanto tempo não sei o que é um dia!"

Paulo José Miranda, Vício, Lisboa: Cotovia, 2001, p. 68. 

Sunday, October 5, 2014

REPÚBLICA


"A igualdade, para a qual o mundo caminha, a seu termo redundará na perda daquilo que mais importa a uma vida humana. E, a ser assim, a ter de ser assim, em nome da justiça ou de outro alto valor moral, as actividades que hoje olhamos como aquelas que verdadeiramente importam, mostrar-se-ão naturalmente inúteis. Porque, escrever um livro, é desejar que um morto nos leia, não um vivo. Queremos que seja o passado a ler-nos, não o futuro. Se os mortos nos lerem, escrever não adianta nada. Escrever, pensar não contempla qualquer respeito pelos vivos, porque não se sabe o que eles irão um dia ser no passado."

Paulo José Miranda, Vício, Lisboa: Cotovia, 2001, pp. 21-22. 

Saturday, October 4, 2014

CRENÇA



"- O meu pai é um génio - respondi. - Pois, mas que é que ele faz?- É capaz de fazer gelo do fogo. Eu vi. - E para que serve isso?- É melhor do que rezar. - Isso é pecado - retorquiu Emily. - Deus castigar-te-á por isso. Irás para o Inferno. - Não acreditamos em Deus.Aquela resposta deixou-a chocada. - Deus acabou de te ouvir! - gritou. - Então, quem é que fez o mundo?- O meu pai diz que quem quer que fosse fez um mau trabalho e pergunta por que é que há-de adorar alguém que fez esta confusão?- Jesus disse-nos para o fazermos!- O meu pai diz que Jesus era um profeta judeu e maluco. - Não era judeu - disse Emily. - Isso de certeza. Deves andar numa escola muito estúpida, se pensas assim."


Paul Theroux, A Costa de Mosquito, trad. Manuel Cordeiro, Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, pp. 94-95. 

Friday, October 3, 2014

DURAÇÕES


"A distinção entre a consciência do tempo e o próprio tempo pode assim exprimir-se como uma distinção entre o estado de consciência - intra-temporal - (respectivamente a sua forma temporal) e os seus modos temporais de aparição, enquanto « multiplicidades» correspondentes. Sendo dado que estes modos de apresentação da consciência temporal interna são elas próprios «estados intencionais», devem necessariamente - na reflexão - apresentar-se por sua vez como durações. Reencontramos aqui uma particularidade fundamental e paradoxal da vida da consciência, que parece assim afectada por uma regressão até ao infinito."

Edmund Husserl, Meditações Cartesianas, trad. Maria Gorete Lopes e Sousa, Porto: Rés-Editora, s.d., p. 61. 

Thursday, October 2, 2014

SELVAGEM



"Que fará a esta hora a minha andina e meiga Rita
de junco e capulim;
agora que me asfixia Bizâncio e que dormita
o sangue, como débil conhaque, dentro em mim. 

Onde estarão as suas mãos que em posição contrita
engomavam nas tardes uma brancura inda por ver;
agora, nesta chuva que me evita
o gosto de viver. 

Que será de sua saia de flanela; de seus 
trabalhos, seu andar; 
do seu sabor a canas de maio do lugar. 

Há-de passar à sua porta, olhando o céu nublado, 
e a tremer dirá: «Oh que frio... meu Deus!»
E um pássaro selvagem chorará no telhado."


César Vallejo, Antologia Poética, trad. José Bento, 2ª ed. aument., Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 31. 

Wednesday, October 1, 2014

A SERENIDADE




"Que fizeste do talento que eu te dei?
Dos ritmos da frase que procuramos e nos foge?
Porque não há nenhum dia
até ao último dia único dia acredita. 

Agindo sobre a parte? Se esta praia
é pertença de ninguém. Sobre o todo?
Por excesso? Por carência? Por paixão?

Se a serenidade é como um fim de tarde
improvisado barco dado. 
Cessa. Uma metáfora não leva a lado nenhum. 

Relativo és e as aves. Como sabes de ti
se não sabes ainda o que fazer do outro
nesta praia as areias a manhã
sem que isso sequer seja virtude."


João Miguel Fernandes Jorge, "Vinte e Nove Poemas", in Obra Poética, vol. III, 2ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 40.