Monday, August 31, 2020

OS RISCOS

 



"Uma aranha, depois de ter explorado toda a casa por dentro e por fora, decidiu meter-se no buraco da fechadura. Que belo esconderijo! Quem a iria descobrir ali dentro? Ela, pelo contrário, assomando à borda da fechadura podia ver tudo sem correr nenhum risco. 
- Ali - dizia ela para consigo, olhando para o umbral da porta, estenderei uma teia para as moscas; mais além - acrescentava, observando a escada - tecerei outra para os vermes e aqui mesmo, no marco da porta, armarei uma cilada pequenina para apanhar mosquitos. 
A aranha estava toda feliz. O buraco da fechadura dava-lhe uma nova e extraordinária segurança. Tão escuro e apertado como um estojo de ferro, o buraco da fechadura parecia-lhe mais acessível que uma fortaleza, mais seguro que qualquer armadura. 
Enquanto se deleitava com estes pensamentos, chegou-lhe aos ouvidos um ruído de passos; prudentemente, recuou para o fundo do seu refúgio. 
Alguém ia entrar em casa. Tiniu uma chave que penetrou no buraco da fechadura e esmagou a aranha."


Leonardo Da Vinci, Fábulas, trad. Orlando Neves, Lisboa: Editora Prefácio, 2006, p. 15. 

Sunday, August 30, 2020

A EXTENSÃO DOS TERMOS (para a memória de E. M. de Melo e Castro)

 



"Só há depois, quando o quisermos 
para continuar a nossa vida
no que de pouco arguida
ela tiver em si, nos ermos

de que não somos medida, 
e da inadaptação que tivermos
para entender e ser sentida
a extensão dos termos

de que aceitamos viver.
Esse depois será total
porque não o poderemos ver. 

E outros iguais homens aflitos
se gastarão em busca do sinal
dos mesmos mitos."



E. M. de Melo e Castro, "Para um Dia", in Trans(a)parências - Poesia I (1950-1990), Sintra: Tertúlia, 1990, p. 17. 

ASSOMBRO

 



"A paixão pelo que é grande e sublime na natureza, quando estas causas operam da forma mais poderosa, é o Assombro; e o assombro é aquele estado na alma no qual tdos os seus movimentos estão suspensos, com algum grau de horror."


Edmund Burke, Uma Investigação Filosófica Acerca da Origem das Nossas Ideias do Sublime e do Belo, trad. Alexandra Abranches, Jaime Costa e Pedro Martins, Lisboa: Edições 70, 2015, p. 77. 

Friday, August 28, 2020

DEA



"Com efeito, ao chegar ao alto da escada, avistou-a do andar inferior; e, ou por acaso, ou porque ela lhe ouvisse o ruído dos passos, Margarida levantou a cabeça, e ele pôde vê-la segunda vez. - Oh! - disse ele, seguindo o pajem - não é uma mortal, é uma deusa! E, como diz Virgílio Marão... 

Et verá incessu patuit dea."


Alexandre Dumas, A Rainha Margot, s. trad., Lisboa: Planeta DeAgostini, 2004 p. 38. 

Wednesday, August 26, 2020

INFINITUDE


 

"Uma outra fonte de sublime é a infinitude, se não fizer ainda parte da anterior. A infinitude tem a tendência para encher a mente com aquela espécie de horror delicioso que é o efeito mais genuíno e o teste mais verdadeiro do sublime."


Edmund Burke, Uma Investigação Filosófica Acerca da Origem das Nossas Ideias do Sublime e do Belo, trad. Alexandra Abranches, Jaime Costa e Pedro Martins, Lisboa: Edições 70, 2015, p. 95. 

Tuesday, August 25, 2020

TRANQUILIDADE SUAVE

 


"O prazer de qualquer espécie rapidamente satisfaz; e, quando acaba, regressamos a um estado de indiferença, ou antes, caímos num estado de tranquilidade suave, tingida da cor agradável da sensação anterior."

Edmund Burke, Uma Investigação Filosófica Acerca da Origem das Nossas Ideias do Sublime e do Belo, trad. Alexandra Abranches, Jaime Costa e Pedro Martins, Lisboa: Edições 70, 2015, p. 52. 

Monday, August 24, 2020

BARTOLOMEU

 



"Por me verdes andar curvo para esse chão, 
          Pálido e esfarrapado, 
Não julgueis que não tenho em casa lar e pão
         Que sou filho enjeitado.

Os abutres têm ninho... As charnecas flores cem...
        Têm as prisões saudade...
E as ondas desse mar, órfãs como parecem, 
        Têm mãe na imensidade...

E eu também tenho um lar, família que me acoite, 
       Em que confio e espero:
Sabei que minha mãe tem por seu nome Noite
       E meu pai, Desespero!"


Carlos Fradique Mendes [Antero de Quental], "Guitarra de Satã II", in Joel Serrão, O Primeiro Fradique Mendes, Lisboa: Livros Horizontes, 1985, p. 286. 

Sunday, August 23, 2020

ABSORTO

 



"Por ti, Apolo é um deus anoitecido, 
Luz, de joelhos; sol rezando, absorto. 
E o grande Pã se coroou de espinhos
E suou sangue e lágrimas, num Horto!
E Vénus Dolorosa, Mãe das Dores, 
Dum negro véu cobriu a branca face!
Ó Vénus da Aflição e dos Amores, 
Ó Vénus da Tristeza e da Alegria!
E seus olhos azuis, vede-os que choram!
E tem os alvos seios trespassados
Por sete espadas, que primeiro foram
Sete raios da estrela da manhã!"


Teixeira de Pascoaes, As Sombras, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 112. 

Saturday, August 22, 2020

CASA DE NOBIS

 




"O ladrão bem via que este não era o modo indicado de se falar com um fantasma, e também lhe ocorreu que, com a pressa e dado o seu estado de confusão, tinha pronunciado uma bênção errada. Pois o sangue e as chagas de Cristo invocavam-se contra a hidropisia, a varíola ou a gangrena, mas não para esconjurar fantasmas. Todavia, ainda antes de conseguir recitar a bênção indicada, o homem com o chapéu de cocheiro em cima da cabeça dirigiu-lhe a palavra:
- Olhas-me, ó rapaz, com cara de quem sabe quem eu sou.
- Sei muito bem quem é o senhor - disse o ladrão com voz angustiada - e também sei de que reino veio. O senhor veio da Casa de Nobis, onde as labaredas saem das janelas e onde as maçãs se assam no parapeito."


Leo Peruz, O Cavaleiro Sueco, trad. Lumir Nabodil, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2015, p. 27. 

Friday, August 21, 2020

O SOL

 



" O cavaleiro sueco estava ali como que enfeitiçado e via e escutava. Era bela como o querido Sol, até o próprio diabo tinha de benzer tanta beleza."

Leo Peruz, O Cavaleiro Sueco, trad. Lumir Nabodil, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2015, p. 133. 

Thursday, August 20, 2020

AS FORMAS

 



"A própria figura humana em nada difere dos outros animais irracionais, senão por ser ereta e poder abrir os braços e trazer no rosto a proeminência do nariz, órgão da respiração do ser vivo, e que manifesta precisamente a forma da cruz."


Justino, Em Defesa dos Cristãos, I, LV, 4, trad. Isidro Pereira Lamelas, Lisboa: Paulus Editora, p. 130. 

Wednesday, August 19, 2020

PENSAR E DIZER

 


"O que precisamente nós consideramos não só irracional, mas também um insulto a Deus, que sendo dotado de uma glória e beleza indizíveis, é equiparado a coisas corruptíveis e necessitadas de restauro. 
Também sabeis que aqueles que fabricam estes objectos são disslutos e cobertos de todo o tipo de vícios que evitamos enumerar, ao ponto de corromperem as servas que trabalham com eles. 
Mas que insensatez! Considerar que homens dissolutos modelam e remodelam deuses para serem adorados, estabelecer que pessoas do género sejam guardas dos templos onde os deuses são consagrados, sem sequer se darem conta de que é blasfemo pensar e dizer que os homens sejam guardas dos deuses."


Justino, Em Defesa dos Cristãos, I, IX, 3-5, trad. Isidro Pereira Lamelas, Lisboa: Paulus Editora, p. 63. 

Monday, August 17, 2020

DO SINISTRO

 


"Deteve-se, demorou-se principalmente num dos seus perfis, que tinha num espelho, ao seu lado, entre duas metades de porco. Ao longo dos mármores e dos espelhos, pendurados nos ganchos dos varões, pendiam porcos e mantas de toucinho para picar; e o perfil de Lisa, com o seu forte pescoço, as suas linhas redondas, o seu cabelo que avançava, punha uma efígie de rainha empastada, no meio daquele toucinho e daquelas carnes cruas. Depois a formosa salsicheira debruçou-se, sorriu de um modo amigável aos dois peixes encarnados que nadavam no aquário da montra, continuamente."

Emílio Zola, O Ventre de Paris, trad. Henrique Marques, Lisboa: Guimarães e C.ª, s.d., p. 79. 

Sunday, August 16, 2020

DO AZUL



"Brancas nuvens do azul, ó peitos criadores, 
Aonde vão mamar os ramos sequiosos
O leite que alimenta os ribeiros e as flores,
E que as pedras envolvem em musgos piedosos."


Teixeira de Pascoaes, Jesus e Pã, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p.161. 

Saturday, August 15, 2020

PERFEITÍSSIMOS

 



"Oh, lágrimas preciosas,
copiosamente vertidas
do coração da Virgem Maria,
que brotavam das Vossas dores
e eram derramadas
por vossos olhos perfeitíssimos!
Quem fosse capaz de ver uma só lágrima
notaria com toda a clareza
em carne humana
neste vale temeroso
e lacrimoso
Tua glória nos mostraste
soberana"


Gil Vicente, Auto da Alma, ed. A. Neto Gonçalves, Porto: Livraria Avis, s.d., pp. 48-49. 

Friday, August 14, 2020

OS OLHOS DOS ANIMAIS



"Que triste o olhar do cão! Até parece
Mais um queixume, um íntimo lamento
Da noite interior que lhe escurece
O coração, que é todo sentimento.

E os mansos bois soturnos! Que tormento,
Em seus olhos, tão calmos, transparece...
E os olhos da ovelhinha os do jumento!
Que tristes! Só o vê-los entristece...

Chora, em todo o crepúsculo, a tristeza.
E, além o ser humano, a Natureza
É lívida penumbra feita de ais...

Por isso, o vosso olhar de escuridão
É mais lágrima ainda que visão,
Ó pobres e saudosos animais!"


Teixeira de Pascoaes, As Sombras, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 77. 

Thursday, August 13, 2020

ARQUITETURA

 



"Jesus está morto. O Seu crânio é o altar; os braços estendidos são as duas áleas do transepto; as mãos furadas são as portas; as pernas são esta nave onde estamos, e os pés trespassados são o pórtico por onde acabamos de entrar."

J.-K. Huysmans, A Catedral, trad. B. da Costa Pereira, Porto: Livraria Civilização Editora, 2007, p. 104. 

Wednesday, August 12, 2020

PERSCRUTAR

 



"Começo a crer que, à força de perscrutar estas trevas, torno-me semelhante à criança que fixa de noite a escuridão com os olhos abertos, acabo por criar fantasmas, por forjar pânicos" 

J.-K. Huysmans, A Catedral, trad. B. da Costa Pereira, Porto: Livraria Civilização Editora, 2007, p. 283. 

Tuesday, August 11, 2020

DESEJO MÍSTICO

 



"Por ti, desejo místico, deixaram
Lagoas, rios, vales, sacros bosques,
As Ninfas tão formosas, que habitaram, 
Neste mundo durante a Idade de Oiro!"


Teixeira de Pascoaes, As Sombras, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 112. 

Monday, August 10, 2020

A IMENSIDADE

 



"Quando de todo se extinguir a Vida;
Quando as águas gelarem, e este mundo
Rolar, na Imensidade escurecida, 
Como um deserto fúnebre e infecundo;

Quando a luz, avezinha mal ferida, 
Exânime, cair no Azul profundo...
E os corpos se fundirem na dorida, 
Eterna Essência, que animara o mundo; 

Quando tudo o que existe regressar 
À confusão primeira, negro mar, 
Sem praias, nem alvores da manhã;

Sonhando um novo Génesis glorioso, 
Há-de surgir, no espaço tenebroso, 
A sombra enorme e trágica de Pã!"


Teixeira de Pascoaes, As Sombras, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 91. 

Saturday, August 8, 2020

Ó SEMPRE ABERTA

 



“Ó bendita janela, entre as janelas,
Onde fala comigo a luz do luar,
E a claridade viva das estrelas
Que traz, em sangue, os pés de tanto andar!


Bendita sejas tu, ó sempre aberta
Sobre o meu coração e estes outeiros,
E esta noite fantástica e coberta
De espectros, de visões e nevoeiros!”


Teixeira de Pascoaes, As Sombras, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 43.

Friday, August 7, 2020

SALTO NO ESCURO

 

" - Como as pessoas se casam, na Inglaterra, chegam a conhecer-se antes do casamento? Não têm oportunidade.

- Francamente, não sei. Nunca me casei - confessou Lady Barberina. 

- Em meu país é diferente. Lá, o rapaz pode avistar-se com a moça; pode visitá-la pode estar constantemente a sós com ela. Desejaria que isso fosse permitido aqui. 

Lady Barberina pôs-se, subitamente, a examinar o lado menos ornamentado do leque, como se fosse a primeira vez que o fazia. 

-Os Estados Unidos devem ser um país bastante singular - murmurou finalmente. 

- Bem, penso que nisso estamos certos; aqui, é um salto no escuro. 

- Francamente, não sei - disse a jovem, fechando o leque. Estendeu o braço automaticamente e apanhou um raminho de azáleas."


Henry James, Lady Barberina, trad. Leônidas Gontijo de Carvalho e Brenno Silveira, São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp. 41-42. 

Thursday, August 6, 2020

GRAÇA E VIDA


“- Já leu o Udolpho, Sr. Thorpe? 
- O Udolpho? Por amor de Deus! Eu não, nunca leio romances, tenho mais que fazer. 
Catherine, vencida e envergonhada, ia pedir desculpa pela pergunta, mas ele impediu-a, dizendo: 
- Os romances são, todos eles, compêndios de disparates e asneiras; desde o Tom Jones que não apareceu nenhum decente, exceto o Monk; todos os outros são a coisa mais estúpida do mundo. 
- Penso que havia de gostar do Udolpho, se o lesse; é muito interessante. 
- Não eu, acredite! Se ler algum, há de ser da Srª Radcliffe; os seus romances são bastante divertidos. Vale a pena lê-los, têm graça e vida. 
- Mas o Udolpho foi escrito pela Srª Radcliffe – disse Catherine, hesitando, com receio de o humilhar.” 


Jane Austen, A Abadia de Northanger, trad. Madalena Donas-Botto, Lisboa: Relógio D’Água, 2016, p. 42.

Tuesday, August 4, 2020

A REALIDADE




"O ser humano tem raízes numa camada obscura pela qual comunica com o Universo, - e à medida que caminha, aprofunda e se desenvolve, a ciência entranha no pensamento, com mais imponência e com mais força, a grandiosa impressão do misterioso. Percebemos que o que a nossa mão toca é nada, ou quase nada, em relação à estonteadora riqueza da existência. Em nós mesmos palpita um mundo muito maior do que imaginamos, pulsações para nós inconscientes, mas conscientes, porventura, em si. Nas praias, cada pedra é a imagem perfeita da imobilidade, da morte: se levantarmos uma, veremos fugir para cada lado a multidão de vidas que ela ocultava. É tudo assim na natureza. A realidade não tem somente uma face impenetrável, mas ainda uma face enorme insuspeitada e noctívaga"


António Sérgio, "Notas sobre os Sonetos e as Tendências Gerais da Filosofia, de Antero de Quental", in Notas sobre Antero, Cartas de Problemática e outros textos filosóficos, Lisboa: IN-CM, 2001, pp. 142-143. 

Monday, August 3, 2020

I DISCOVER MYSELF ON THE VERGE




"Basta! Basta! Basta!
De algum modo me atordoaram. Para trás!
Dêem-me um pouco de tempo, deixem que a minha cabeça recupere das
                 pancadas, torpor, sonhos, bocejos, 
Estou à beira de um erro habitual."


Walt Whitman, Canto de Mim Mesmo, trad. José Agostinho Baptista, Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, p. 105. 

Sunday, August 2, 2020

QUASE LUA CHEIA




"Quase lua cheia e baixa sobre o mar
Magnética e brilhante nos panos pretos da noite
Foi então que abordámos em margens de silêncio
E uma pequena cidade surgiu antiga e cor de bronze"


Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, Lisboa: Caminho, 2004, p. 72. 

Saturday, August 1, 2020

GALOPE



"Este diabo trazia um livro na mão e uma foice na outra. Ameaçava matar o cavaleiro se ele não se convertesse à religião de Maomé. Então, pressentindo o perigo em que se encontrava o cavaleiro, fiz um esforço titânico e suponho que comuniquei algo por gestos. Mas simultaneamente, os dois enforcados saltaram sobre mim e arrastaram-me para fora da caverna onde encontrei outra vez o bode preto. Um dos enforcados montou o bode e o outro montou sobre os meus ombros e a seguir forçaram-nos a galopar por montes de vales."

Jan Potocky, Manuscrito de Saragoça, trad. Dórdio Guimarães, Torres Vedras: Tertúlia do Livro, s.d., p. 107.