Monday, March 31, 2014

A QUEDA



"A irradiação provinha da Lua cheia que se punha, vermelha de sangue, e agora brilhava vivamente através daquela fenda outrora mal visível que, como já disse, percorria em ziguezague o edifício desde o telhado até à base. Enquanto olhava, esta fenda alargou-se rapidamente; sobreveio uma nova rabanada de vento, um turbilhão furioso; todo o disco do planeta rebentou de súbito à minha vista. A cabeça andou-me à roda quando vi as muralhas poderosas desfazerem-se em duas". 


Edgar Allan Poe, "A Queda da Casa de Usher", trad. João Costa, Lisboa: Editores Associados, s.d., p. 75.

Sunday, March 30, 2014

EPÍLOGO



"Fugi deste quarto e deste solar, cheio de terror. A tempestade ainda estava na sua raiva máxima quando atravessei a velha avenida. De súbito, uma luz estranha projectou-se na estrada e voltei-me para ver donde poderia brotar uma luminosidade tão singular, porque apenas tinha atrás de mim o imenso castelo com todas as suas sombras."

Edgar Allan Poe, "A Queda da Casa de Usher", trad. João Costa, Lisboa: Editores Associados, s.d., p. 75. 

Saturday, March 29, 2014

HANTISE



"Aqui fiz bruscamente uma nova pausa e desta vez com um sentimento de espanto violento, porque não havia lugar para duvidar de que não tivesse realmente ouvido (em que direcção, era-me impossível adivinhá-lo) um som enfraquecido e como que longínquo, mas duro, prolongado, singularmente penetrante e rangente, a contrapartida exacta do grito sobrenatural do dragão descrito pelo romancista, e tal como a minha imaginação já o figurava."

Edgar Allan Poe, "A Queda da Casa de Usher", trad. João Costa, Lisboa: Editores Associados, s.d., p. 73. 

Thursday, March 27, 2014

BURDEN



"Depositámos, pois, o nosso fardo fúnebre sobre cavaletes nesta região de horror; afastámos um pouco para o lado a tampa do caixão que ainda não estava aparafusada e contemplámos o rosto do cadáver."


Edgar Allan Poe, "A Queda da Casa de Usher", trad. João Costa, Lisboa: Editores Associados, s.d., p. 69

Wednesday, March 26, 2014

GLOOM


"Sentia que respirava uma atmosfera de mágoa. Um ar de melancolia acerba, profunda, incurável, pairava sobre tudo e penetrava tudo."

Edgar Allan Poe, "A Queda da Casa de Usher", trad. João Costa, Lisboa: Editores Associados, s.d., pp. 60-61. 

MYSTIC VAPOR


"A minha imaginação trabalhara tão bem que julgava realmente em torno da habitação e do domínio pairava uma atmosfera que lhe era peculiar, assim como aos arredores mais próximos - uma atmosfera que não tinha afinidades com o ar do céu, mas que se exalava das árvores definhadas, das muralhas pardacentas e do lago silencioso - um vapor misterioso e pestilento, mal visível, pesado, preguiçoso e duma cor plúmbea".

Edgar Allan Poe, "A Queda da Casa de Usher", trad. João Costa, Lisboa: Editores Associados, s.d., p. 59. 

Tuesday, March 25, 2014

MORBO



"Fui forçado a refugiar-me nesta conclusão pouco satisfatória: que existem combinações de objectos naturais muito simples que têm a força de nos afectar deste modo e que a análise desta força reside em considerações onde perderíamos o pé. Era possível, pensava, que uma simples diferença na disposição dos materiais da decoração, dos pormenores do quadro, bastasse para modificar, para aniquilar talvez essa força de impressão dolorosa".


Edgar Allan Poe, "A Queda da Casa de Usher", trad. João Costa, Lisboa: Editores Associados, s.d., p. 58. 

Monday, March 24, 2014

ONDAS



"«Olá, flor!» Tinha sido um grito de pureza, um grito de naufrágio no meio daquele mar, diante daquela onda de cio e de animalidade primitiva."


Branquinho da Fonseca, Rio Turvo, Lisboa: Editorial Verbo, s.d., p. 29. 

Sunday, March 23, 2014

TURVO



"O lodo preto onde enterrei os pés, em contraste com as fitas de areia branca, os maciços de juncos, as rãs que saltavam para as poças de água, estou a ver tudo como se essas coisas ainda estivessem aqui diante de mim. Tudo aquilo era um mundo novo. E as impressões simples e isoladas gravam-se profundamente. Era um mundo novo, onde se podia respirar um pouco de liberdade e tomar um lugar entre as coisas da natureza, reconquistando um pouco da dignidade e consciência do homem. A cidade é artificial. Só o Sol e as árvores é que nos dão a nossa posição entre as coisas do mundo. Mas, seja como for, ou temos uma missão e uma inconsciente impassibilidade para as contingências adversas, ou não valemos nada."

Branquinho da Fonseca, Rio Turvo, Lisboa: Editorial Verbo, s.d., pp. 10-11. 

Saturday, March 22, 2014

SER



"Os séculos rolam na embriaguez
em mim tudo é primavera
deitada no alto da montanha do oeste uma nuvem
indignar-me?
do verdadeiro, do falso, do bem, do mal? Limpar a poeira do
rosto
poli-lo até desaparecer
hoje como ontem, sem fim, os homens"



Zhang Kejiu, Cinquenta "Xiaoling", selec. e trad. Albano Martins, Porto: Campo das Letras, 1998, p. 111. 

Friday, March 21, 2014

DIA DA ÁRVORE



"Eu escondo-me de toda a gente, quando me sinto poeta, que o mesmo é dizer sensível. Em coisas materiais é que me exponho francamente, para que toda a gente me tenha em conta do comum barro. Furto-me quanto posso a distinções odiosas, e às ridículas ainda mais. Ser tolo é má coisa; ser mau é coisa pior; mas quem puder livrar-se de ser ao mesmo tempo mau e tolo, seja antes mau. Os tiros do ódio podem ferir; mas assanham os brios, e dão azo à vitória; porém, os tiros de escárnio matam sempre.
Mal soantes são estas divagações aqui!
As minhas árvores desconhecem-me nesta linguagem."


Camilo Castelo Branco, No Bom Jesus do Monte, 4ª ed., Porto: Livraria Chardron/Lello, s.d., p. 2. 

Thursday, March 20, 2014

PRIMAVERA


"Vê o que se suspende. O lugar em que brincavas. 
Já então ao abandono. Também tu o abandonaste. 

Cerca-o com a tua infelicidade."


Luís Quintais, Verso Antigo, Lisboa: Cotovia, 2001, p. 28. 

Wednesday, March 19, 2014

ARMADILHA



"Apenas o real. 

Diferendo. Árduo impacto.
Drenagem vidente. 
Atípico e controverso
zarcão. 

Superfície e miragem, 
passaporte."


Joaquim Manuel Magalhães, Um Toldo Vermelho, Lisboa: Relógio D'Água, 2010, p. 67. 

VEDUTISMO



"A herança do sublime é a "negatividade", a desconstrução, hybris do sublime, spleen crepuscular, "ideal do negro", "methexis nas trevas" (Adorno)...


Carlos Couto Sequeira Costa, Vedutismo, Coimbra: Pé de Página, 2005, p. 94. 

Monday, March 17, 2014

DITOS



" - Estava eu a dizer ao Marcelo que valia a pena destruir o mundo para fazer uma estátua com os escombros. Não achas, menina?"

Ester de Lemos, Companheiros, 2ª ed., Lisboa: Edições Ática, 1962, p. 250. 

Sunday, March 16, 2014

ALVO



"Deus entregou-me aos ímpios, deixou-me à disposição dos malvados. Eu era feliz e Ele arruinou-me, agarrou-me pela nuca e fez-me em pedaços, tomou-me como Seu alvo. As Suas setas cercam-me, atravessa os meus rins sem piedade e espalha o meu fel sobre a terra. Despedaça-me com feridas sobre feridas, atira-Se sobre mim como um guerreiro. Cosi um saco sobre a minha pele, mergulhei a minha fronte no pó."


Job 16, 11-15. 

Saturday, March 15, 2014

ALBA



"A imagem para a luz pára no escuro. Depois na
Esfera é vertical. Alcança os mares da quase
Cordilheira das águas e faz a luz descer. Descem
Inscritos no guache triângulos, triângulos de pureza
Quietíssima sobre a vítrea esfera celeste, o magma da Terra, 
Esses dois Reinos, unindo em Deus."


José Emílio-Nelson, A Alegria do Mal - Obra Poética I, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2004, p. 183. 

Wednesday, March 12, 2014

LÁGRIMAS




"Diz um homem, na sua melhor fé, à mulher que ama:
- Choro! Vê nestas lágrimas a minha alma, e condói-te.
Se a mulher leu, por infausto acerto, o Nysten, ou que tal expositor de verdades cruas, responde-lhe:
- O que tu choras, homem, não é alma: é humor excrementício, é cloreto de sódio, é muco, é fosfato de soda, é fosfato de cal.
Isto é de matar a paixão, e secar as glândulas nobres e as ínfimas."


Camilo Castelo Branco, No Bom Jesus do Monte, 4ª ed., Porto: Livraria Chardron/Lello, s.d., p. 140. 

Tuesday, March 11, 2014

JUÍZO



"Era Primavera. As árvores floriam, as vinhas enchiam-se de rebentos e abriam-se as primeiras folhas das figueiras. 
- Assim será o Juízo Final - observou Francisco.  - Os mortos brotarão para a luz como germes."



Nikos Kazantzaki, S. Francisco de Assis, trad. Silas Cerqueira, Lisboa: Editora Arcádia, s.d., p. 178. 

Monday, March 10, 2014

MÃE E CÉU TOTAL




"Digo-te, ao chegar, mãe, 
que tu és como o mar; que, embora as ondas
de teus anos variem e te mudem, 
sempre é igual teu sítio, 
ao passar minha alma. 

Não é preciso medida
nem cálculo para assinalar
esse teu céu total; 
a cor, hora única, 
a luz de teu poente, 
situam-te, oh mãe!, entre as ondas, 
conhecida e eterna em seu mudar."


Juan Ramón Jimenez, Antologia Poética, trad. José Bento, Lisboa: Relógio D'Água, 1992, pp. 86-87. 

Sunday, March 9, 2014

MISERICÓRDIA



" - Ensinemos primeiro essa palavra aos homens - disse eu. - Parece-me que as aves e outros animais não têm necessidade dela. Eles não pecam. 
Francisco encarou-me, de olhos arregalados. 
- O que dizes é muito justo, irmão Leão. De todas as criaturas vivas, o homem é o único que comete pecados. 
- E é o único a poder ultrapassar a sua própria natureza e entrar no Paraíso, irmão Francisco. As ave e os outros animais não podem fazê-lo. 
- Não o sabemos - protestou Francisco. - Ninguém sabe até onde pode ir a misericórdia divina."


Nikos Kazantzaki, S. Francisco de Assis, trad. Silas Cerqueira, Lisboa: Editora Arcádia, s.d., p. 121. 

Saturday, March 8, 2014

IRMÃO SOL



"Saúdo todos os que me lerem, 
Tirando-lhes o chapeu largo
Quando me vêem á minha porta
Mal a dilligencia levanta no cimo do outeiro. 
Saúdo-os e desejo-lhes o sol, 
E chuva, quando a chuva é precisa, 
E que as suas casas tenham 
Ao pé d'uma janella aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer coisa natural - 
Por exemplo, a arvore antiga
A' sombra da qual quando creanças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar, 
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado."

(8-3-1914)


Fernando Pessoa, Poemas Completos de Alberto Caeiro, ed. Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Editorial Presença, 1994, p. 43. 

Friday, March 7, 2014

FIO



"Subiu por uma escada de pedra até à porte, levantando os olhos. Entre a sua cabeça e o céu cinzento, um antigo relógio de sol não marcava qualquer hora nos seus números romanos. Encimava-o uma legenda: Omnes vulnerant, postuma necat
Todas ferem, leu. A última mata."


Arturo Pérez-Reverte, O Clube Dumas, trad. Maria do Carmo Abreu, Alfragide: Edições Asa II, 2011, p. 156. 

Thursday, March 6, 2014

MOIRISAR-SE



" - A matéria que me cá mandou - responderia o eu com ambições de graça - desde que o amor das cristãs lhe desmiolou a cavidade craniana, anda em cata de moiras encantadas, no ímpio propósito de moirisar-se, se alguma envolver as madeixas negras, destrançadas com pente de oiro e pérolas. Neste ruim fadário, aquela pobre matéria, onde me acho transmigrado por efeito de não sei que malfeitorias da minha vida anterior, vagamundeia por castelos velhos, pardieiros ensilveirados, e toda a espécie de ruinarias. Eu vou, naquele corpo onde me ele leva; porém assim que sinto latejar-lhe no coração alguma saudade de amigo, aperto com ele, estampo-lhe painéis de bem tristes memórias em tudo que possa lisonjear-lhe os sentidos grosseiros, e avoejar ao amigo, que lhe deu no coração o rebate da saudade. Por isso aqui estou."


Camilo Castelo Branco, No Bom Jesus do Monte, 4ª ed., Porto: Livraria Chardron, s.d., p. VIII. 

Wednesday, March 5, 2014

CINZAS (para a memória do Padre Fernando Cardoso Lemos)



"Alguns anos mais tarde, esgotado, Pai Francisco, que não era mais que um feixe de ossos e pêlos, disse-me, em voz baixa, para não ser ouvido pelos outros irmãos:
- Deus é um incêndio, irmão. Ele arde e nós ardemos com ele."


Nikos Kazantzaki, S. Francisco de Assis, trad. Silas Cerqueira, Lisboa: Editora Arcádia, 1963, p. 22.