Tuesday, April 30, 2013

BEMQUERENÇA


" - Que é o querer, mulher? É querer de olhos, querer de boca, querer de mãos, querer deste corpo capaz de fios e atavios?"

Maria Velho da Costa, Maina Mendes, 5ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 84.

Friday, April 26, 2013

NO SER



 
"Os corredores cobertos reforçam o silêncio, a acalmia e pose fixa que a casa consentiu depois que Maina Mendes falou e foi dizendo por vezes coisas prováveis e possíveis. Depois da mudez é dita por apagada e severa no trato. Os seios despontam-lhe sem pasmo, bem chegados aos braços, sem juntura, e sempre pareceu saber ao que vem e como bem se oculta o sangue todos os meses. Maina Mendes persevera na sua mudez de corpo, tal como a besta fera sobrevive cordata entre os humanos, no mandamento que a tem escolhido - crescerás entre os seus teres e cuidarás em desprazer da riqueza dos túmulos que lhes enviei."


Maria Velho da Costa, Maina Mendes, 5ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 67.

Thursday, April 25, 2013

ABRIR


"As águas riem como raparigas
À sombra verde-azul das samambaias!"
  Mário Quintana, A cor do invisível, Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 23.

Tuesday, April 23, 2013

CONTEMPORÂNEO


"Só pode dizer-se contemporâneo quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue apreender nelas a parte da sombra, a sua obscuridade ínfima. Mas com isto não respondemos ainda à nossa pergunta. Porque deveria interessar-nos conseguirmos perceber as trevas que provêm da época? Não será porventura o escuro uma experiência anónima e por definição impenetrável, qualquer coisa que não se dirige a nós e não pode, portanto, dizer-nos respeito? Pelo contrário, o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como qualquer coisa que, mais do que toda a luz, se endereça directa e singularmente a ele. É contemporâneo quem recebe em pleno rosto o feixe de treva que provém do seu tempo."
  Giorgio Agamben, Nudez, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio D'Água, 2010, p. 23.

Monday, April 22, 2013

SUPER-HOMENS


"Serons-nous plus tard semblables à ces cratères où les volcans ne viennent plus et où l'herbe jaunit sur sa tige?"
  René Char, Fureur et mystère, Paris: Gallimard, 2006, p. 120.

Sunday, April 21, 2013

LITERATURA INCLUSA


" - Nesta casa toda a gente escreve - disse Irene. - Até eu, notas, fragmentos. Antigamente... novelas... Não tenho fôlego. Deve ter sido há muito tempo. Não me reconheço nessa que fui, nem sei quando é que assim fui.
- Mas toda a gente escreve, Irene: no pano da loiça, no rego do tractor, no cabo da vassoura, na tecla da caixa e na Imitação dos Pássaros.
- Na limpeza da pele, no traço de Kohl e na pinta da testa; toda a gente escreve que se farta e não é só nas paredes e nas lenga-lengas - entrei eu.
- Tudo é literatura? Vocês acham?
- Não, Iria, isso é o que acompanha as embalagens dos medicamentos: literatura inclusa.
Rimos. Éramos assim."
Maria Velho da Costa, Irene ou o contrato social, 2ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, pp. 199-200.

Saturday, April 20, 2013

SUSPIROS


"Somos matéria de sonhos e estou farta de ar."
Maria Velho da Costa, Irene ou o contrato social, 2ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 95.

Thursday, April 18, 2013

CITAR ANTERO


"Os problemas que atormentam os homens são os mesmos problemas que atormentam os deuses. O que está em baixo é como o que está em cima, disse Hermes Três Vezes Máximo, que, como todos os fundadores de religiões, se lembrou de tudo menos de existir. Quantas vezes Deus me disse, citando Antero de Quental: "Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?"
Tudo é símbolo e atraso, e nós, os que somos deuses, não temos mais que um grau mais alto numa Ordem cujos Superiores Incógnitos não sabemos quem sejam. Deus é o segundo na Ordem manifesta, e não me diz quem é o Chefe da Ordem, o único que conhece - se conhece - os Chefes Secretos. Quantas vezes Deus me disse: "Meu irmão, não sei quem sou"."
 
Fernando Pessoa, A Hora do Diabo, ed. Teresa Rita Lopes, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 58.

Wednesday, April 17, 2013

NESGAS DE OUTROS ESPAÇOS


"Não eram casas, eram nesgas de outros espaços que logo se desapercebiam. Era a morte assim, prolífica de lugares imediatamente desapercebidos na vigília súbita? A vigília súbita, indício do pavor de estar a regressar a uma diversidade do ter sido, do vir a ser? A paisagística de um ter sido, de um devir? Esses estuários, ravinas, moradas, à vez reconhecidos e ignotos como os de um anjo? Sonham os cegos, como que vêem noutras partes?
Se o sonho é só a realização de um desejo, como os seus lugares são tenazes, são fugazes! Já estive aqui.
Esse aqui, ao esfumar-se, despedia cada objecto da vigília, do regresso ao mesmo mesmo."
 
Maria Velho da Costa, Irene ou o contrato social, 2ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 56.

Tuesday, April 16, 2013

ESPECTADOR


"É neste poder de associar e dissociar que reside a emancipação do espectador, ou seja, a emancipação de cada um de nós enquanto espectador. Ser espectador não é a condição passiva que devêssemos transformar em actividade. É a nossa situação normal. Aprendemos e ensinamos, agimos e conhecemos também enquanto espectadores que ligam constantemente o que vêem com aquilo que já viram e disseram, fizeram e sonharam. Não existe forma privilegiada, tanto quanto não existe ponto de partida privilegiado."
 
Jacques Rancière, O Espectador Emancipado, trad. José Miranda Justo, Lisboa: Orfeu Negro, 2010, p. 28.

Sunday, April 14, 2013

OPORTUNIDADE


"As civilizações desabam
por implosão...
Depois,
como um filme passado às avessas
elas se erguem em câmera lenta do chão.
Não há de ser nada...
Os arqueólogos esperam, pacientemente,
As sua ocasião!"
  Mário Quintana, A cor do invisível, Rio de Janeiro: Objetiva/Alfaguara, 2012, p. 87.

Saturday, April 13, 2013

A PERMANÊNCIA DO SUBLIME


"Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.

E a vista sonda, reconstrói, compara.
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
Ó fúlgida visão, linda mentira!

Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..."

Camilo Pessanha, Clepsydra, ed. crítica de Paulo Franchetti, Lisboa: Relógio d'Água, 1995, p. 111 [at. ort.]

Thursday, April 11, 2013

O MONUMENTO PERDE AS VESTES


"Visto de longe, do alto da colina, o parque parecia vazio
deixando apodrecer as sombras das árvores que a dor
clareava com as cores do crepúsculo. O mosteiro da Natureza
fora violado e dele só restava a planície frígida e muda.
O tempo deixara de existir: sugado pela voragem
do presente, abandonada a Natureza, prescindindo
na sua visita dos parcos vestígios com que a memória
da História entediada se enluta. Destruída, a esfinge
assiste à dança entusiástica das musas. Sobre as ruínas,
que sentido descobririam ainda para as formas que ali
encontraram devastadas e nuas? Teriam as pedras
sequer um destino? Para lá da corrosão da glória
que por dentro as fractura? A História, então,
aos olhos de quem a questiona, não passa
de um fóssil que a cicatriz da memória
pacientemente tatua. Escórias numa parede,
apagadas pela viscosidade dos moluscos.
A céu aberto, o monumento perde as vestes
e deixa-se estender-se a calote fúnebre. Porque
o sentimento, dizem-nos as estrelas, é o que resta
da alma depois de terem sido evacuados os túmulos."
  Fernando Guerreiro, Teoria da Revolução, Braga: Amgelus Novus, 2000, p. 19.

Wednesday, April 10, 2013

PEPLUM


"La pudeur est une autre anachorèse. L'anachorèse sexuelle, par laquelle on se retire dans une chambre obscure pour aimer, revêt le corps d'une fine aura (cette extremitas qu'inventa Parrhasios au dire de Pline). Elle enveloppe le corps humain d'une invulnérabilité fictive et d'une barrière impalpable: c'est un templum invisible. C'est le thème du «vêtement» qui ne se voit pas, du «costume» d'Adam, du tissu libidinal magique, du nimbe. C'est autant une inhibition de la répugnance qu'une soustraction à la proximité violente.
C'est l'aura de respect telle qu'elle entoure les astres (qui sont les corps des dieux). Posidonius disait que les éléments de la beauté d'une oeuvre étaient ceux du cosmos. Il distinguait la forme, la couleur, la majesté et le chatoiement des astres sous forme de halo."
Pascal Quignard, Le sexe et l'effroi, Paris: Gallimard, 2011, p. 73.

Tuesday, April 9, 2013

TRÁGICO / POLÍTICO


"Assim, camarada das bestas, como se não tornariam difíceis as suas relações com os humanos? Haveria, sequer, o que se diz relações? Muito raras; muito incompletas; e só por inesperados e fugidios encontros, por surpresa de parte a parte. Aos homens, simultaneamente os assombrava, os apavorava, os humilhava, ou inspirava turvos sentimentos de curiosidade e ódio. Seria fácil perdoarem-lhe aquela aparência humana? a um monstro assim?"
  José Régio, "Conto do Natal", in Há mais mundos, Lisboa: Círculo de Leitores, 1973, p. 60.

Monday, April 8, 2013

VISÃO DA JUSTIÇA


"Point de cantiques: tenir le pas gagné. Dure nuit! le sang séché fume sur ma face, et je n'ai rien derrière moi, que cet horrible arbrisseau!... Le combat spirituel est aussi brutal que la bataille d'hommes; mais la vision de la justice est le plaisir de Dieu seul."
Arthur Rimbaud, Une Saison En Enfer, Paris: GF Flammarion, 1989, p. 142.

Sunday, April 7, 2013

ALMADA


"Acho mais sinceros os dias de chuva. Nos dias em que chove ponho-me a pensar que não sou eu só que vivo arreliado. Depois, o cheiro da terra molhada é que me faz de novo reanimar."
  Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro, Lisboa: Guimarães/Babel, 2010, p. 59.

Saturday, April 6, 2013

ANTERIORIDADE


"Ce lien est antérieur au christianisme. Goodenough a montré la place qu'il tenait dans l'art juif où l'eau est répresentée comme poissonneuse et où le poisson signifie la résurrection. Ceci nous ramène à l'eau vive. L'eau vive est celle dans laquelle il y a des êtres vivants. Ainsi la présence de poissons dans l'eau signifie qu'il s'agit de l'eau vive."
  Jean Daniélou, Les symboles chrétiens primitifs, Paris: Seuil, 1996, p. 57.

Friday, April 5, 2013

RAYONS


"J'envoyais au diable les palmes des martyrs, les rayons de l'art, l'orgueil des inventeurs, l'ardeur des pillards; je retournais à l'Orient et à la sagese première et éternelle. - Il parait que c'est un rêve de paresse grossière!"
Arthur Rimbaud, Une Saison En Enfer, Paris: GF Flammarion, 1989, p. 134.

Thursday, April 4, 2013

LEIS DO PESO


"Diz-se que os anjos voam
doutro modo; leves;
que não levam peso
quando partem:
a nossa miséria já filtrada,
a sua misericórdia imponderável;
flutuam; pairam; vogam:
verbos de pouca densidade;
cânones vigiaram
o crescimento das asas
nas pinturas heréticas;
concílios redigiram normas
a impor asas mais breves:
para que voem; ut volent;
basta a sua essência aérea;
e assim, nenhum anjo sofreu
as leis reais do nosso peso; nem pôde,
por isso, conhecer-nos."
  Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 318.

Wednesday, April 3, 2013

FILHOS DE DEUS


"Já antes tinham havido formas de existência que contemplavam o Criador com admiração e assombro: filhos de Deus - anjos do firmamento estrelado, dos quais José sabia algumas histórias extravagantes e até engraçadas, assim como demónios rebeldes. Todos esses seres deviam ter nascido em qualquer longínquo evo do mundo que envelhecera e se afundara, para se tornar matéria bruta. Mas teria, mesmo esse, sido realmente o primeiro começo?"
  Thomas Mann, José e Seus Irmãos, trad. Elisa Lopes Ribeiro, s.l.: Bibliotex Editor, 2003, p. 13.

Tuesday, April 2, 2013

CONTRA A JUSTIÇA


"Un soir, j'ai assis la Beauté sur mes genoux. - Et je l'ai trouvée amère. - Et je l'ai injuriée.
Je me suis armé contre la justice.
Je me suis enfui. Ô sorcières, ô misère, ô haine, c'est à vous que mon trésor a été confié!
Je parvins à faire s'évanouir dans mon esprit toute l'espérance humaine. Sur toute joie pour l'étrangler j'ai fait le bond sourd de la bête force."
 
Arthur Rimbaud, Une Saison En Enfer, Paris: GF Flammarion, 1989, p. 105.