Monday, June 30, 2014

VASTA



"Onde - ondas - mais belos cavalos
Do que estes ondas que vós sois?
Onde a mais bela curva do pescoço
Onde a mais bela crina sacudida
Ou impetuoso arfar no mar imenso
Onde tão ébrio amor em vasta praia?"


Sophia de Mello Breyner Andresen, Musa, Lisboa: Caminho, 2004, p. 9.

Sunday, June 29, 2014

FRUTO



"Se nas linguagens metafísica e moral as sombras servem como possibilidade de acesso à luz e à distinção entre a origem do que ilumina e a recusa da própria iluminação, que é o modo como estas linguagens em última instância olham as sombras, na linguagem artística as sombras são a própria evidência da luz e os seus frutos sombrios distinguem-se das próprias sombras físicas enquanto frutos directos do sol sem interferência de nenhum objecto."

Paulo José Miranda, Um prego no coração, Lisboa: Cotovia, 1997, p. 73. 

Saturday, June 28, 2014

CABO




"O sonho é atravessar a vida com palavras de fumo."

Paulo José Miranda, Um prego no coração, Lisboa: Cotovia, 1997, p. 55. 

VERDADE


"A verdade é a nossa alma sedenta de mundo e de Deus, e o amor apenas uma estratégia de esquecimento de tudo isto."

Paulo José Miranda, Um prego no coração, Lisboa: Cotovia, 1997, p. 19. 

Friday, June 27, 2014

ACENO



"Já não era exactamente um anjo aquilo
que se via acenando na falésia e também
não se parecia com um monstro de um só olho. 
Os pássaros haviam regressado antes da maré
e depararam com um velho sacerdote, 
uma figura do tamanho de um dólmen
com uma asa entre as omoplatas e duas
hienas sobre os pés. Para o homem, aquilo 
era o outro lado do anjo preto, porque à sua
volta ouvia-se o mesmo choro, seguido do
mesmo grito, a mesma assombração"


Jaime Rocha, Os Que Vão Morrer, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 20. 

Thursday, June 26, 2014

PARADO



"Vê uma onda de lama a encher a rua com a violência e a rapidez de uma manada. As águas uivam como um animal. Levam tudo à frente. Depois, escoam-se. O que Mateus presencia é um deserto, uma coisa parada após um grande fulgor. Parece-lhe que a natureza falara com ele, dando-lhe a entender que a casa onde ele habita está protegida por uma felicidade incompreensível."

Jaime Rocha, A Rapariga sem Carne, Lisboa: Relógio D'Água, 2012, p. 50. 

Wednesday, June 25, 2014

VELO



"Que fazia ele no decurso desta jornada? Em que pensava? Via passar, como pela manhã, as árvores, os tectos de colmo, os campos cultivados, e o desaparecer rápido da paisagem, que se desloca em cada cotovelo do caminho. É uma contemplação esta que satisfaz a alma, e quase a dispensa de pensar. Ver mil objectos pela primeira e última vez! Há aí coisa mais profundamente melancólica? Viajar, é nascer e morrer a todo o instante. Talvez ele, na região mais vaga do seu espírito, fizesse paralelos entre aqueles horizontes cambiantes e a existência humana. Todas as coisas desta viagem fogem de contínuo diante de nós. Entremeiam-se as sombras com os clarões. Após um deslumbramento de luz, um eclipse, as trevas; olha-se, corre-se a toda a pressa, estendem-se as mãos para agarrar o ângulo da estrada, e de repente somos velhos. Sente-se um como abalo, afigura-se-nos tudo negro, distingue-se uma porta escura, e esse sombrio cavalo da vida, que vos arrastava, pára de súbito. E vê-se um ente desconhecido, coberto com um véu, a desatrelá-lo nas trevas."


Victor Hugo, Os Miseráveis, s.trad., Estarreja: Mel Editores, 2009, p. 194. 

Tuesday, June 24, 2014

JORRO



"Oh tu: sombra perdida numa reminiscência
de céus selados na minha memória: tu, que
um passado desejo despertas na maturação
dos bosques - de onde se elevam os fluidos
húmidos do crepúsculo - e que ao ameno
Sul emprestas o amargo traço de um rosto noc-
turno: dar-me-ás esse véu de palavras
mortas sob as argilas negras do inverno?
Esse cansado impulso de ser num vestígio
de voz - sudário sopro de que vago murmúrio?"


Nuno Júdice, "Lira de Líquen", in Obra Poética (1972-1985), Lisboa: Quetzal, 1991, p. 274. 

Monday, June 23, 2014

FEEL



"How do I love thee? Let me count the ways. 
I love thee to the depth and breadth and height 
My soul can reach, when feeling out of sight
For the ends of being and ideal grace. 
I love thee to the level of every day’s 
Most quiet need, by sun and candle-light. 
I love thee freely, as men strive for right. 
I love thee purely, as they turn from praise. 
I love thee with the passion put to use
 In my old griefs, and with my childhood’s faith. 
I love thee with a love I seemed to lose 
With my lost saints. I love thee with the breath, 
Smiles, tears, of all my life; and, if God choose,
 I shall but love thee better after death."


Elizabeth Barrett Browning, "Sonnets from The Portuguese", XLIII, in English Verse, vol. IV, Oxford: Oxford University Press, 1977, p. 506.

Sunday, June 22, 2014

A DESORDEM


"Fitou a plateia atulhada de gente e disse numa voz forte:

- Meus senhores!
Ouviu-se uma voz no meio da multidão:
- Apoiado!
E o conferente começou, recordando o espírito que presidiu à fundação da nacionalidade e se manteve como um facho aceso durante os séculos. Fez o elogio da unidade do povo nos momentos difíceis da História, condenou as divisões em partidos políticos, que o ideal único tem de ser a Ordem, o bem da Pátria:
- Eu tenho só um partido!...
Mas uma voz serena e prudente aproveitou a pausa do final da frase e disse:
- Tem cuidado, não te partam o outro..."

Branquinho da Fonseca, Porta de Minerva, 2ª ed. Lisboa: Portugália Editora, s.d., p. 218. 

Saturday, June 21, 2014

CONVICÇÃO


"É nossa convicção que, se as almas fossem visíveis aos olhos, ver-se-ia distintamente uma estranha coisa, isto é, que cada um dos indivíduos da espécie humana corresponde a alguma das espécies da criação animal; e poder-se-ia reconhecer facilmente a verdade, entrevista apenas pelo filósofo, que desde a ostra até à águia, desde o porco até ao tigre, todos os animais estão no homem, e cada um num homem só, se é que às vezes não se dá o caso de estarem uns poucos. Os animais não são mais do que imagens das nossas virtudes e vícios, que nos vagueiam diante da vista; não são mais do que os fantasmas visíveis de nossas almas, figuras e fantasmas que Deus nos mostra, para nos fazer reflectir e pensar. Somente, como os animais são simples sombras, não os fez Deus educáveis em toda a extensão da palavra. Com que fim? Pelo contrário, sendo as nossas almas realidades e tendo um fim que lhes é próprio, deu-lhes Deus inteligência, isto é, a educação possível. A educação social, sendo bem ministrada, pode extrair de uma alma, qualquer que ela seja, toda a utilidade que em si contenha."

Victor Hugo, Os Miseráveis, s.trad., Estarreja: Mel Editores, 2009, p. 136. 

Friday, June 20, 2014

TRANSITÓRIO




"Como é tão frágil tudo quanto existe!
Como se extingue a mais formosa cor, 
Ai, como tudo é transitório e triste, 
Como hoje é ódio o que ontem foi amor!...

Nem um momento à luz do sol resiste
Gota d' água nos lábios duma flor...
Se a luz que tu, minh'alma, descobriste
É luz eterna, é porque é a luz da Dor. 

Eu sou da Vida um doloroso grito;
Sou a injúria do pó que o vento leva, 
Contra tudo o que Deus fez infinito...

De luto a noite veste a imensidade...
É outra maldição que vem da treva, 
Contra ti, sempiterna claridade!..."


Teixeira de Pascoaes, Sempre, Lisboa: Assírio & Alvim, 1997, p. 130. 

Wednesday, June 18, 2014

MEDITAÇÃO


"A meditação humana não tem limite. Dê por onde der, analisa e esquadrinha o seu próprio deslumbramento. Quase poderíamos dizer que, numa espécie de fulgurante reacção, ela deslumbra também a Natureza; o misterioso mundo que nos cerca, restitui o que recebe; é provável que os contempladores sejam contemplados. Como quer que seja, há na Terra homens - serão homens? - que no fundo dos horizontes da meditação descobrem distintamente as alturas do Absoluto e avistam a terrível montanha infinita."

Victor Hugo, Os Miseráveis, s.tr., Estarreja: Mel Editores, 2009, pp. 52-53. 

Tuesday, June 17, 2014

DRACO



"Mas um artista tem sempre qualquer coisa de monstruoso. Era a vida à parte desse monstro, crescendo dentro dele, que tanto o angustiava desde a tenra idade."

Graça Pina de Morais, A Origem, 3ª ed., Lisboa: Antígona, 2002, p. 176. 

Sunday, June 15, 2014

COLHER



"Um arrepio correu a espinha do rapaz. Era frio? Era medo?- Que ideia andar a apanhar flores à noite, tia!- Estão a dormir, meu menino: passam do sono para a morte."

Graça Pina de Morais, A Origem, 3ª ed., Lisboa: Antígona, 2002, p. 236. 

Saturday, June 14, 2014

VER


"Chega-se à janela de um dos quartos e olha para a rua de um outro modo, gozando de uma demorada liberdade. Vê os longos ciprestes por cima do muro do cemitério que surge no horizonte. Então vai pela casa, levantando as persianas que haviam estado fechadas meses sem fim. Ele dedicara-se a construir o seu próprio túmulo, o lugar onde ficaria para sempre esquecido dos vizinhos, dos lojistas, das pessoas da cidade, até que os bichos o começassem a comer e o cheiro atraísse alguém com os sentidos mais apurados. Mas agora quer voltar de novo à luz."

Jaime Rocha, A Rapariga sem Carne, Lisboa: Relógio D'Água, 2012, p. 60. 

Friday, June 13, 2014

NATUREZA IGNORADA


"O seu amor à terra não era o do camponês esperto, ganancioso, vigilante das culturas na mira do lucro. Era o amor que se tem pelas obras de arte, aquele em que, para além do que se vê, há uma vibração de alma de natureza ignorada, um halo de encantamento."

Graça Pina de Morais, A Origem, 3ª ed., Lisboa: Antígona, 2002, p. 10. 

Thursday, June 12, 2014

OCUPAÇÃO



"um pássaro pergunta-me se
existe o céu, para saber se
lhe responderei ou se
deve cair"


valter hugo mãe, estou escondido na cor amarga do fim da tarde, Porto: Campo das Letras, 2000, p. 41. 

Wednesday, June 11, 2014

INVISO



"- Sentimo-nos felizes por te termos encontrado - disse Jesus, erguendo a mão para abençoar o anfitrião invisível. 
Os discípulos riram-se. 
- Quem saúdas tu, mestre?
- O Invisível - respondeu Jesus, olhando-os com severidade."


Nikos Kazantzakis, A Última Tentação de Cristo, trad. Jorge Feio, Lisboa: Círculo de Leitores, 1988, p. 427. 

Tuesday, June 10, 2014

RECORDAR A MONTANHA



"não faço qualquer ruído ao ler estas
palavras. busco o silêncio agora, enquanto
o espectro da morte ilumina o meu caminho
e não tenho para fazer algo que lhe
seja mais parecido. colaboro. já o sol
se esgota na minha cabeça e os
dias não são mais que a intermitência
com que abro e fecho os olhos"


valter hugo mãe, estou escondido na cor amarga do fim da tarde, Porto: Campo das Letras, 2000, p. 43. 

Monday, June 9, 2014

CHAMA



"Este é o dia novo. Sei-o pelo desejo
De o transformar. Este é o dia transformado. 
Pelo modo como apoio este dia no chão, 
Coloco-o na posição humilde dos meus joelhos na terra
Abro-o com os olhos que retiro de todas as coisas quando os fixo
Na atenção. 

E fico atento, fico deitado porque não sei crescer
Num terreno que se levante. 
Cresço na clareira de um homem que é uma palavra
Na sua túnica inteira
Porque este é o sítio do dia sem horário

Sem divisões

E ponho-me de frente no seu lado, 
Nos seus braços abertos para me unir
E entro pelo lado aberto e ardo - como Elias
Em chamas subindo para o céu."


Daniel Faria, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 192. 

Thursday, June 5, 2014

PEQUENO DEUS



"Calou-se por alguns minutos, hesitante entre a religião e o amor; o amor venceu e ela acabou por dizer:- Explicar-me-ás o teu Deus e eu tentarei compreendê-lo."

Théophile Gautier, O Romance da Múmia, trad. Liz Silva, Lisboa: Círculo de Leitores, 1981, p. 137. 

Wednesday, June 4, 2014

O ETERNO


" - Senhora - respondeu a harpista -, os poetas e os músicos sabem tudo, porque os deuses lhes revelam as coisas escondidas. Nos seus ritmos, eles exprimem o que o pensamento apenas concebe e o que a língua confusamente balbucia".

Théophile Gautier, O Romance da Múmia, trad. Liz Silva, Lisboa: Círculo de Leitores, 1981, p. 51. 

Monday, June 2, 2014

DEGRAUS


"Sou incapaz de explicar o que aconteceu a seguir, senão por dizer que o próprio silêncio - que, de certa maneira, funcionava como uma forma de medir a minha força - se tornou o elemento em que vi aquela figura desaparecer; em que a vi dar meia volta (tal como teria feito em vida depois de receber uma ordem) e, sempre com os meus olhos cravados naquelas costas que corcunda alguma poderia ter desfigurado mais, o vi descer os degraus e desaparecer na escuridão."

Henry James, O Calafrio [The Turn of the Screw], trad. Lucília Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, 2007, capt. IX, p. 52. 

Sunday, June 1, 2014

COVA


"O destino gosta de inventar desenhos e figuras. A dificuldade nele reside no complicado. A vida mesma, porém, é difícil pela simplicidade. Tem apenas algumas coisas de um tamanho que não nos é adequado."

Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, 3ª ed, trad. Paulo Quintela, Porto: o oiro do dia, 1983, p. 181.