Sunday, February 28, 2021

GALÁXIAS BRANCAS

 




"Em papel de embrulho queimado, 
a terra toda em volta gira
pelas galáxias brancas do pescador. 

Espaço de cinzas. Entra pela janela. 
Lua sobre o campo de restolho brilha. 
Na fonte de água funda corre. A água. 

Cai dos dentes a escuridão da última palavra.
Não chega, mudez, o som do eco investindo 
pelas aberturas de entrada no papel. 

Partir, presa por um fio a luz do mundo. 
Não mais estremecer em vida
nesta solidão rasgada em palavras."



Paulo Teixeira, "A Região Brilhante", in O Último Poeta Romano, Lisboa: Imprensa Nacional, 2020, p. 117. 

Saturday, February 27, 2021

INTUMESCIDO


"Perífanes (intrigado) - Como pode ser isso? Vestida com implúvio?

(O escravo assume a donosa atitude de um Catão Censor.)

Epídico - Porquê?... Será assim uma coisa tão de embasbacar?... Como se muitas, nas ruas, se não pavoneassem enfeitadas de quintas inteiras!... Mas na hora do tributo... quando recebem a intimação, dizem que se não pode pagar. E a elas - a quem se paga o tributo maior - é que se tem de poder pagar. 

(Os dois senadores aprovam com acenos mesurados de cabeça. Epídico, intumescido, arrança para uma sátira de aparato.)

E que dizer dessas fulanas que inventam todos os anos nomes novos para os vestidos?... Túnica rala, túnica encorpada, aventalinho de recorte, a camiseta, a doureta, o girassolinho ou o açafrãozinho, a sobrepouca ou a sobremuita, o xailote, a realina ou a peregrina, a azul-mar ou a pluma-no-ar, a nogueirosa ou a malucosa... Maluqueiras de arrelampar!... Até a um cão foram tirar o nome."


Plauto, Epídico, II, 1: 225-233, trad. Walter de Medeiros, Lisboa: Edições 70, 1999, pp. 76-77. 

 

Friday, February 26, 2021

ASCENDER

 



"Pobre língua que se multiplica, 
numa sedição de fantasmas, 
sobre a paralisada luz da morte.
Pela desordem dos seus canais
ascende-se a uma região brilhante, 

banhada no número frágil dos mortos, 
não-mundo do sonho e da regra, 
dos corpos-memória, sucedendo-se
nos usos e hábitos da perversão. 
na metamorfose mais violenta. 

Mundo delegado, vida procurada. 
Infinito de pessoas em que sucumbe
e com quem partilha a retórica 
de espelhos, na qual se perde e agita em vão
a harmonia do ser e a verdade do mundo."


Paulo Teixeira, "A Região Brilhante", in O Último Poeta Romano, Lisboa: Imprensa Nacional, 2020, p. 99. 

Thursday, February 25, 2021

DURAÇÃO

 


"Coro - Encantadora é para mim a dança quando, num festim, há a beleza do som claro da flauta de lódão. Igualmente encantadora é a graciosa Afrodite. Mas é também uma alegria assistir à prosperidade dos amigos outrora insignificantes. Várias mutações nascem do Destino, que tudo leva a termo, e da Duração, filha do Tempo."

Eurípides, Os Heraclidas, 893-901, trad. Cláudia Raquel Cravo da Silva, Lisboa: Edições 70, 2000, p. 139. 

Wednesday, February 24, 2021

RADICAL

 



"As raízes são as formas mais enigmáticas do mundo vegetal. O seu corpo é, muitas vezes, infinitamente grande, infinitamente mais complexo do que o seu gémeo aéreo, aquele que as plantas deixam aparecer à luz do dia: a superfície total do sistema de raízes de uma planta de centeio pode atingir quatrocentos metros quadrados, ou seja, uma superfície cento e trinta vezes superior à do corpo aéreo."


Emanuele Coccia, A Vida das Plantas - Uma Metafísica da Mistura, trad. Jorge Leandro Rosa, Lisboa: Fundação Carmona e Costa / Documenta, 2019, p. 111. 

Tuesday, February 23, 2021

OS SIMPLES

 



"Há pessoas que nasceram
para comprar uma boa mobília de sala, 
uma mobília completa, 
gostava de ser uma dessas pessoas, 
parece que levam vidas sossegadas, 
depois, não sei se princípio de velhice, 
mas cada vez mais anseio por sossego, 
coisas símples como ter um cão, 
correcção, como ter tempo para ter um cão, 
que um cão é uma grande responsabilidade, 
e eu não gostava, um eufemismo, 
de ser abandonado mais uma vez."


Raquel Serejo Martins, Subúrbios de Veneza, Braga: Poética Editora, 2017, p. 71. 

Monday, February 22, 2021

CONSELHOS

 



"Não te gastes
a procurar o sentido das coisas,
dá melhor uso ao tempo, 
cultiva feijões e ervilhas, 
pinta as paredes da casa, 
lava tapetes e cortinas, 
muda as lâmpadas dos candeeiros às escuras, 
se souberes tricota cachecóis, meias de lã, 
vem sempre o Inverno, 
de resto, amamos o que amamos
e por sorte ou não mais do que acaso, 
até ao ocaso disto, somos correspondidos."


Raquel Serejo Martins, Subúrbios de Veneza, Braga: Poética Editora, 2017, p. 10. 

Saturday, February 20, 2021

DESÍGNIOS

 



"Coro - Sem os deuses,sou eu que o digo, nenhum homem é ditoso nem deixa de sofrer a desgraça. E a mesma casa não permanece numa felicidade duradoura; a um lote do destino um outro lote se segue. Um, que vem das alturas, torna-se insignificante; outro, vive ao acaso e passa a ser venturoso. Não é lícita a fuga aos desígnios do fado. Nem pelo seu saber alguém os repelirá; e quem estiver sempre ansioso, em vão despenderá o seu esforço."


Eurípides, Os Heraclidas, 609-617, trad. Cláudia Raquel Cravo da Silva, Lisboa: Edições 70, 2000, p. 123.

Friday, February 19, 2021

CIDADE

 




"Coro - Tu segues, ó cidade, um caminho justo, e não deves abandoná-lo nunca - honrar os deuses. Aquele que o nega, após estas provas manifestas, avança ao lado da demência. É que são notáveis os sinais que um deus transmite, ao destruir sempre a presunção dos homens injustos."


Eurípides, Os Heraclidas, 904-908, trad. Cláudia Raquel Cravo da Silva, Lisboa: Edições 70, 2000, p. 139. 

Thursday, February 18, 2021

A VIDA ANTIGA

 



"A sua antiga vida romana, tinha mais poesia, sem dúvida, mas agora que olhava para o passado essa vida parecia flutuar em meros horizontes iridiscentes, parecia ter sido incerta, vaga e esbatida, com grandes espaços em branco langorosos e inexplicáveis. A ordem presente, assim espalhada, à volta dele, tinha de algum modo terra firme sob os pés, e uma trombeta acústica nos ouvidos e, na mão - o mais importante - um saco sem fundo de sólidas e brilhantes libras de ouro britânicas."


Henry James, Infidelidades (The Golden Bowl), trad. Carlota Pracana, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 264. 

Wednesday, February 17, 2021

CINZAS

 



"Este é o tempo de tensão entre agonia e nascimento
O lugar de solitude em que três sonhos se cruzam
Por entre rochas azuladas
Mas quando as vozes sacudidas do teixo para longe se afastarem
Irmã bendita, mãe sagrada, espírito da fonte, espírito
             do jardim, 
Não consintas que nos iludamos com embustres
Ensina-nos a curar e a descurar
Ensina-nos a permanecer tranquilos"


T.S. Eliot, Quarta-Feira de Cinzas, trad. Rui Knopfli, Lisboa: Relógio D'Água, 1998, p. 25. 

Tuesday, February 16, 2021

DO INCÊNDIO (para a memória da Divina Carmen Dolores)

 




"Queimará o monte, o filho, a lenha
A morte, as areias, a viagem
O deserto, a túnica, as estrelas

Nunca será bastante o incêndio"



Daniel Faria, Poesia, 2.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 229. 

Monday, February 15, 2021

FILOSOFIA

 



"Não é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: «Não há mais que ver», sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já."


José Saramago, Viagem a Portugal, 8.ª ed., Lisboa: Caminho, 1992, p. 257. 

Sunday, February 14, 2021

TU CAVE

 



"Guarda-te de menosprezar com o teu orgulho os meus versos:
       Um amor que vem tarde vem frequentemente com grande custo."

(Tu cave nostra tuo contemnas carmina fastu:
       saepe venit magno faenore tardus Amor."



Propércio, Elegias, Livro I, 8, 25-26, trad. Francisco Moya y Antonio Ruiz de Elvira, Madrid: Cátedra, 2001, p. 179. 

Saturday, February 13, 2021

VOLTEJAR

 



"Se chamuscas muitas vezes uma alma que volteja à tua volta, 
ela fugirá, ó Eros. Porque também ela, ó pérfida, tem asas."


Meléagro, in do mundo grego outro sol. Antologia Palatina e Antologia de Planudes, selecç. trad. Albano Martins. Porto: Edições Asa, 2002, p. 24. 

Friday, February 12, 2021

A UM CERTO PONTO

 



"A mulher olhou para ele, aquele bom homem seco, como se finalmente ele fosse apenas vulgar. 
- Fazer a única coisa capaz de abrir um novo trajecto. A única coisa que melhor lhe dará a oportunidade de ser magnífica. 
Ele expirou lentamente o fumo:
- E melhor te dará a ti, por essa ordem de ideias, a oportunidade de seres magnífica juntamente com ela?
- Serei tão magnífica, pelo menos, quanto puder. 
Bob Assingham ergueu-se. 
- E chamas imoral a mim?
Ela hesitou. 
- Chamo-te estúpido se preferires. Mas a estupidez levada a um certo ponto é imoralidade, sabes. E já agora, o que é a moralidade senão a alta inteligência? - A isto ele não pôde responder; coisa que a deixou concluir mais decididamente: - Além disso, tudo isto é, pelo menos, muito divertido."


Henry James, Infidelidades (The Golden Bowl), trad. Carlota Pracana, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, pp. 90-91. 

Thursday, February 11, 2021

VAGAROSO

 



"As colinas penetram na brancura. 
Homens ou estrelas
olham-se com tristeza, desiludo-os. 

O comboio deixa um rastro do seu alento
Oh vagaroso
cavalo da cor da ferrugem, 

Cascos, dolorosos sinos...
Toda a manhã obscureceu

uma flor abandonada.
Os meus ossos absorvem a quietude, longínquos
campos estremecem o meu coração. 

Ameaçam 
levar-me para um céu
sem estrelas e sem pai: uma água negra."


Sylvia Plath, Pela Água, trad. Maria de Lourdes Guimarães. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 19. 

Wednesday, February 10, 2021

PERSPECTIVA

 



" - A condição...? 
- Sim, a de ter amado com tanta intensidade ao ponto de estar, como tu dizes, «para além de tudo»?
Maggie quase não teve de reflectir, tão rápida foi a resposta. 
- Oh não. Ela não está para além de nada. Pois ela não tem nada.
- Compreendo. Uma pessoa tem de ter coisas para estar além dela. É uma espécie de lei de perspectiva. 
Maggie não conhecia a lei, mas continuou categórica."


Henry James, Infidelidades (The Golden Bowl), trad. Carlota Pracana, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 162. 

Tuesday, February 9, 2021

CURIOSIDADE


"Inquieto, volúvel, insaciável, o curioso prende-se à singularidade, ao objecto raro, ao supérfluo. A sua paixão impele-o para a dissipação e para a intemperança; desencadeia a ociosidade, a acédia, e conduz ao cepticismo: o racionalista que para tudo procura explicações racionais é um ímpio, porque Deus não desvenda os seus mistérios. Mesmo controlada e serenada, a curiosidade continua a ser inútil, pois quem sabe quer dar a conhecer que sabe. Finalmente, o olhar curioso é sempre um olhar indiscreto, e muitas vezes impudico. Numa palavra, resume Houdry, o homem curioso esvazia-se de si próprio tal como «um espírito que se derrama através dos olhos»."


Sabine Melchior-Bonnet, História do Espelho, trad. José Álfaro, Lisboa: Orfeu Negro, 2016, p. 294. 

Monday, February 8, 2021

REFLEXOS

 


"Conhecer-se, como convida o preceito délfico, é remontar das aparências sensíveis do espelho comum - reflexos, aparências, sombras ou fantasmas - até à alma. O homem, diz Platão, deve cuidar da sua alma, que constitui a sua essência. No entanto, esta necessita de um reflexo para se conhecer, porque, tal como o olho, ela não se pode ver a si mesma."


Sabine Melchior-Bonnet, História do Espelho, trad. José Álfaro, Lisboa: Orfeu Negro, 2016, p. 159. 

Sunday, February 7, 2021

A LONGA DURAÇÃO

 



"O quarto núcleo de imagens gerado pela analogia entre a árvore e o homem refere-se ao tempo e, mais precisamente, à diferença entre a longa duração da vida das árvores e a brevidade da vida humana, tema muitas vezes retomado, com tons que podem ir da serenidade à violência."


Robert Dumas, Tratado da Árvore, trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 72. 

Saturday, February 6, 2021

SUPÉRSTITE

 





"O amor é mortal como os homens
e a sua paciência na carne e na terra.
Emerge imprevisível em cada nova 
estação do nosso esquecimento. 
E como as árvores, cujas folhas
nascem para iluminar os estios
do coração, caindo com o murchar
do verão, sonhamos com as vagas
eternidades da alma (a imortalidade
no sangue de um abraço), nada herdando
além deste supérstite desejo."



Paulo Teixeira, As Imaginações da Verdade, Lisboa: Editorial Caminho, 1985, p. 116. 

Friday, February 5, 2021

A ARQUEOLOGIA IMPOSSÍVEL

 



"Destes rostos, destes lugares, pouco
haverá a lembrar, as gotas de chuva
numa testa alta, o silêncio superficial
de uns lábios onde as palavras gostariam
de falar, os olhos superficiais
do silêncio onde o azul suave
de outros olhos só desejaria morar."


Paulo Teixeira, As Imaginações da Verdade, Lisboa: Editorial Caminho, 1985, p. 19. 

Thursday, February 4, 2021

EPICÉDIO DE AQUILES A PÁTROCLO

 



"Amigo, envolve nas tuas vestes 
o meu corpo e faz-me eterno e imutável 
como a lança que trespassou em duas
a tua vida. Quero ser estranho e inteiro
como os deuses que vivem sempre e não
conhecem nunca a morte que foi tua. 
Escuda-me no azar destas aventuras 
entre galeras e combates que são
o vinho e o pão destes dias
entre o mar e a terra distante, 
de onde me chega só o som dos pinheiros
quando acaso excede o acometer das ondas
contra o barco. Onde estás o dia não mais
separas da noite que o desmentia, nem
assinalas no céu o rasto azul das gaivotas, 
imóveis no seu voo que consagra num abraço
feliz a eternidade e a luz. Conheci-te
e à boca que não mais responde 
com voz confusa às minhas palavras. 
O coração que os teus braços demanda
desejou possuir o que para sempre
não existe. Sou um homem, esse foi o meu
engano: amar o que a morte também cobiça."


Paulo Teixeira, As Imaginações da Verdade, Lisboa: Editorial Caminho, 1985, pp. 23-24. 

Wednesday, February 3, 2021

IMAGEM

 


"A imagem desapareceu, mas ele preservou-a na memória. Estava acessível ali, na escuridão. Podia evocá-la e segurá-la com as mãos desastradas. Podia segurá-la com os olhos completamente abertos para a escuridão, tirá-la da obscuridade. Podia, com ela, afastar a escuridão, levar para longe aquela obscuridade que ainda restava junto de si, que permanecia à sua volta enquanto aguardava. Ele agarrou a imagem, segurou-a, e ela lá ficou, no seu espírito, como um odor, uma fragrância de uma certa planta que crescia num ar elevado e puro e que perdia o orvalho nocturno sob o sol matinal de Friuli."

Eyvind Johnson, O Tempo de Sua Graça, trad. João Reis, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2015, p. 417. 

Tuesday, February 2, 2021

DORMIR


 

" - Penso que servir de modelo a um pintor não é mais do que uma as muitas formas de ociosidade - disse Mr. Wentworth. - A ociosidade tem um sem-número de disfarces.
- Meu querido tio! - exclamou Felix - Olhe que não é ocioso quem dá tanto trabalho ao pintor!
- Podia-se pintar as pessoas quando estivessem dormindo - sugeriu Mr. Brand, contribuindo para a discussão."


Henry James, Os Europeus, trad. José Vieira de Lima, Lisboa: Contexto, 1990, p. 84. 

Monday, February 1, 2021

TEMPO

 



"Estava-se no Inverno quando a humidade lhe entrava pelas roupas, nos trapos que, recentemente ou há muito tempo, tinham sido roupas, entranhando-se nos seus restos. A humidade pousava como uma película sobre a pele e talvez lhe aliviasse o comichão. Era Verão quando o ar se tornava mais seco. Quando a humidade escorria pela parede, estava-se possivelmente na época das chuvas outonais ou invernais, numa estação do ano que se desenrolava na verdadeira vida que, lá fora, continuava. E estava-se no pico do Inverno quando aparecia gelo na parede. Ele tacteava em busca da Primavera, de um início de Verão."

Eyvind Johnson, O Tempo de Sua Graça, trad. João Reis, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2015, p. 415.