Friday, February 28, 2014

AO ENCONTRO



"Os caminhos apenas respiram
quando conduzem a outros lugares.

Foram feitos para o encontro
em corpos transfigurados
ou para nadas
que preferem à sua própria beleza. 

Sabem que por vezes o mundo se ausenta. 
Mas como culpá-los
da rarefacção imperfeita?

Sempre que os atravesso
parecem-me plenos de vida, deslumbrantes. 
E quando ao fundo espera o vazio
não se detêm sobre si um único momento."


Joel Henriques, A Claridade, s.l.: Editora Casa do Sul, 2008, p. 45. 

Thursday, February 27, 2014

MARULHEMOS



"Cabelos torrenciais daquela que me enleva, 
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva, 
Que tem cintilações e meigos céus de luz. 

Deixai-me navegar, morosamente, a remos, 
Quando ele estiver brando e livre dos tufões, 
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões."


Cesário Verde, Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 66. 

Wednesday, February 26, 2014

ARCÁRDIA



"Colombe nem podia acreditar no que ouvia. 
- Vai mandar-me para junto dos índios! - exclamou ela. 
Villegagnon equivocou-se quanto a esta exaltação, que confundiu com receio. 
- Nada tens a temer; eles não comem franceses. São uns simples. Meigos e belos como os deuses antigos. Toda a humanidade dos nossos pais está contida neles: são pastores de Homero, exagerando um pouco."


Jean-Christophe Rufin, Pau-Brasil, trad. Isabel St. Aubyn, 2ª ed., Porto: Asa, 2002, pp. 154-155. 

Tuesday, February 25, 2014

HABITÁVEL



"Onde habita o espírito? Dentro ou fora
das coisas lembradas, coisas feitas, coisas não feitas?
O que é que vem primeiro, o grito da ave marinha ou a alma

imaginada na fria aurora quando ela o soltava?
Onde se aloja enfim? Em galhos sujos de
um ninho de gralhas na velha torre de pedra

ou num busto de mármore dominando o terraço?
Quão habitável é uma forma perfeita?
E quão inabitada é a luz exposta ao vento?

Qual o uso de uma nota sustentada ou de uma linha
que não podem ser assaltadas para maior segurança?
(Questões para o fantasma de W.B.)"


Seamus Heaney, Antologia Poética, trad. Vasco Graça Moura, Porto: Campo das Letras, 1998, p. 137. 

Sunday, February 23, 2014

CONTEMPLO



"Há seres destinados a passarem como sombras pela vida, sem ocuparem nunca lugar definido nem adquirirem vulto ou fisionomia que os distinga. Creio bem, sem amargura nem despeito, que este é o meu caso, e que o meu destino será diluir-me no tempo, deslizar silencioso ao longo das outras vidas, sem ao menos deixar vestígio da passagem. 
Sei que o período de vida decorrido até agora não permite por enquanto, breve como é, julgar do que virá a ser a forma final da minha existência terrena. Mas nem isso destrói a obscura certeza, a profunda intuição (um pouco dolorosa, devo confessá-lo) da minha insanável insignificância, do meu peso nulo na balança do mundo."


Esther de Lemos, Companheiros, 2ª ed., Lisboa: Ática, 1962, p. 5. 

Saturday, February 22, 2014

VERA CRUZ



"O intruso acenou levemente com a cabeça, a fim de mostrar que estavam entendidos quanto a cumprimentos. 
- Todos sabem, Excelência, que as crianças têm o dom das línguas. Leve um adulto cativo para uma terra estranha e ele necessitará de dez anos até ser capaz de utilizar algumas palavras familiares. Uma criança, no mesmo número de semanas, aprenderá a falar correctamente e sem sotaque."


Jean-Cristhophe Rufin, Pau-Brasil, trad. Isabel St. Aubin, 2ª ed., Porto: Asa, 2002, p. 16. 

Friday, February 21, 2014

O TEMPO



"A chuva recomeçou a cair, faz sobre os telhados um rumor como de areia peneirada, entorpecente, hipnótico, porventura no seu grande dilúvio terá Deus misericordioso desta maneira adormecido os homens para que lhe fosse suave a morte, a água entrando maciamente pelas narinas e pela boca, inundando sem sufocação os pulmões, regatinhos que vão enchendo os alvéolos, um após outro, todo o oco do corpo, quarenta dias e quarenta noites de sono e de chuva, os corpos descendo para o fundo, devagar, repletos de água, finalmente mais pesados do que ela, foi assim que estas coisas se passaram, também Ofélia se deixa ir na corrente, cantanto, mas essa terá de morrer antes que se acabe o quarto acto da tragédia, tem cada um o seu modo pessoal de dormir e morrer, julgamos nós, mas é o dilúvio que continua, chove sobre nós o tempo, o tempo nos afoga."


José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 10ª ed., Lisboa: Caminho, 1993, pp. 46-47. 

Thursday, February 20, 2014

DESINTERESSADO


" - Não me compreenda tão depressa, por favor. Por desinteressado, entendo gratuito. E entendo que o mal, aquilo que se chama o mal, pode ser tão gratuito como o bem. 
- Mas, nesse caso, porque praticá-lo?
- Precisamente: por luxo, por necessidade de despesa de energia, por jogo, pois pretendo que as almas mais desinteressadas não são necessariamente as melhores - no sentido católico do termo; pelo contrário, segundo esse ponto de vista, a alma melhor domada é aquela que faz melhor os seus cálculos."


André Gide, Os Subterrâneos do Vaticano, trad. Carlos C. Monteiro de Oliveira, Porto: Ambar, 2007, p. 158. 

Wednesday, February 19, 2014

DIGESTO



"E este tubo digestivo é cada vez maior, representa o espaço, enquanto que o nosso não passa de uma estrela cadente, vista por este espaço num instante fugaz."

Francis Picabia, Jesus-Cristo Rastacuero, Lisboa: & etc, 1994, p. 44. 

Monday, February 17, 2014

RETOQUE



" - (...) Sabe o que, para mim, estraga a escrita? São as correcções, as rasuras, as maquilhagens que lhe fazem. 
- Julga que não nos corrigimos na vida? - perguntou Julius, excitado. 
- Não me está a ouvir: é costume dizer que nos corrigimos na vida, que melhoramos, mas não podemos corrigir o que já se fez. É esse direito de proceder a retoques que faz da escrita uma coisa tão cinzenta e tão... (não concluiu). Sim, é precisamente isso que me parece tão belo na vida: nela, é preciso pintar de fresco. Nela, é proibido fazer rasuras."


André Gide, Os Subterrâneos do Vaticano, trad. Carlos C. Monteiro de Oliveira, Porto: Ambar, 2007, p. 72. 

Sunday, February 16, 2014

LINHAS ASTRONÓMICAS




"A Natureza não cria normalmente os desertos. Combate-os, repulsa-os. Desdobram-se, lacunas inexplicáveis, às vezes sob as linhas astronómicas definidoras da exuberância máxima da vida."


Euclydes da Cunha, Os Sertões, Lisboa: Livros do Brasil, 2000, p. 44. 

Saturday, February 15, 2014

SERTÕES




"Dilatam-se os horizontes. O firmamento, sem o azul carregado dos desertos, alteia-se, mais profundo, ante o expandir revivescente da terra.
E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono. 
Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora; o empedramento do solo. A nudez da flora; e nas ocasiões em que os estios se ligam sem a intermitência das chuvas - o espasmo assombrador da seca. 
A natureza compraz-se em um jogo de antíteses."


Euclydes da Cunha, Os Sertões, Lisboa: Livros do Brasil, 2000, p. 44. 

Friday, February 14, 2014

TENTAR




"És uma tentadora: o teu olhar amável
Contém perfeitamente um poço de maldade, 
E o colo que te ondula, o colo inexorável
Não sabe o que é a paixão, e ignora o que é vaidade. 

Quando me julgas preso a eróticas cadeias
Radia-te na fronte o céu das alvoradas, 
E quando choro então é quando garganteias
As óperas de Verdi e as árias estimadas.

Mas eu hei-de afinal seguir-te a toda a parte, 
E um dia quando eu for a sombra dos teus passos, 
Tantos crimes terás, que eu hei-de processar-te, 
E enfim hás-de morrer na forca dos meus braços."


Cesário Verde, Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 112. 

Wednesday, February 12, 2014

ENGRAVITAÇÃO



"Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroam
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos."


Mário Cesariny, Pena Capital, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 59. 

Tuesday, February 11, 2014

PONTO




"O resto jaz naquele ponto de luz a que chamamos Sombra, o grande Ponto anterior aos deuses, para onde, na mortalidade absoluta das nossas almas, a nossa efémera vida inutilmente tende, inutilmente atinge, inutilmente para sempre permanece."


Fernando Pessoa, Poemas Completos de Alberto Caeiro, ed. Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Presença, 1994, p. 196. 

Monday, February 10, 2014

FALÉSIA



"O céu mal se equilibra, do mar, dele
no corpo os corações sendo embaixadas, 
irrompem as falésias e nós, como
se as víssemos
melhor quando sobre elas o mar poisa uma das asas, 
entramos por nós dentro até de nós
nem mesmo a mais pequena marca subsistir na água."


Luís Miguel Nava, Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 92. 

Sunday, February 9, 2014

VENTOS



"O céu desembaraça-se do sangue, espalha-nos
agora a solidão ervas nos rostos. 

O mar vai pelos ares.
Não há, a bem dizer, forma
nenhuma de o coser com a esperança."

Luís Miguel Nava, Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 92. 

Saturday, February 8, 2014

HERODÍADE



"Esta mulher orgulhosa não foi habitar o inferno. Faz parte das hordas de espíritos que povoam os ares e que, quando são bons, me apraz deveras chamar deuses. Bem entendido, entendo por deus tudo aquilo sobre o que o homem não tem poder algum, e não essa alma do mundo que Speusipe de Atenas julgou, primeiro que todos, governar sem entendimento o universo. Nas noites de trovoada, Herodíade, anunciada pelas ululações dos mochos e pelo pavor dos animais, conduz uma caçada fantástica que passa acima das copas das nossas florestas."


Guillaume Apollinaire, O Heresiarca e Cª., trad. José Carlos Rodrigues, Lisboa: Vega, s.d., p. 47. 

Thursday, February 6, 2014

A PERDA



"O pastor amoroso perdeu o cajado, 
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar. 
/Nem lhe apareceu ou desapareceu/... Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas. 
Ninguém o tinha amado, afinal. 
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos vários verdes de sempre, 
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento, 
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que estão presentes, 
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco nos pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito.

Mas isto são maneiras de dizer, 
Que ainda trazem engano nas frases.
Eu era só, eu fiquei só, eis tudo."


Fernando Pessoa, Poemas Completos de Alberto Caeiro, ed. Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Editorial Presença, 1994, p. 110. 

Wednesday, February 5, 2014

A AÇÃO



"Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bella, nem sequer mais feia.
Assim é a acção humana pelo mundo fóra. 
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;
E o sol é sempre pontual todos os dias."


Fernando Pessoa, Poemas Completos de Alberto Caeiro, ed. Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Editorial Presença, 1994, p. 92. 

Tuesday, February 4, 2014

OS NOSSOS PROBLEMAS



"É o pulgão, a lagarta, os caracóis, 
E há inda, além do mais com que se ateima, 
As intempéries, o granizo, a queima,
E a concorrência com os espanhóis."


Cesário Verde, Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 156. 

Monday, February 3, 2014

FRIALDADE




"Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros, 
Vibra uma imensa claridade crua. 
De cócaras, em linha, os calceteiros, 
Com lentidão, terrosos e grosseiros, 
Calçam de lado a lado a longa rua. 

Como as elevações secaram do relento, 
E o descoberto sol abafa e cria!
A frialdade exige movimento:
E as poças de água, como um chão vidrento, 
Reflectem a molhada casaria."
(...)


Cesário Verde, Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 102. 

Sunday, February 2, 2014

UDOLFO - II



"Fechou a janela e foi sentar-se na poltrona para reflectir melhor no estranho incidente que tão bem se relacionava com as aparições anteriores. Procurou tirar conclusões mais racionais, mas a sua imaginação estava ainda muito exaltada e o raciocínio muito obliterado pelos terrores supersticiosos para conseguir formular ideias claras."



Ann Radcliffe, Os Mistérios de Castelo de Udolfo, trad. Leyguarda Ferreira, Lisboa: Livraria Romano Torres, 1960, p. 192. 

Saturday, February 1, 2014

UDOLFO - I



"- Chegámos a Udolfo - declarou Montoni, quebrando o silêncio em que se confinara havia muitas horas. 
Emília examinou o castelo quase com pavor. O estilo pesado da arquitectura, as escuras e altíssimas muralhas davam-lhe aspecto imponente e terrível. A claridade do crepúsculo desaparecia pouco a pouco, tingindo as muralhas de púrpura. Em breve, porém, se apagou e castelo, montanhas e floresta, tudo ficou envolto em sombras."


Ann Radcliffe, Os Mistérios do Castelo de Udolfo, trad, Leyguarda Ferreira, Lisboa: Livraria Romano Torres, 1960, p. 91.