Sunday, January 31, 2021

CHAVE

 



"- Tens aqui a chave do armário da casa de jantar. É melhor ficares com ela, para o caso de alguém querer alguma coisa.
- Quem e que vai querer alguma coisa? - perguntou Gertrude. - Vou ficar sozinha em casa...
- Pode sempre vir alguém. - replicou a sua companheira. 
- Mr. Brand, por exemplo?
- Sim, Gertrude. E Mr. Brand pode querer uma fatia de bolo. 
- Não gosto dos homens que andam sempre a comer bolo! - asseverou Gertrude, arrancando outro raminho de lilás."


Henry James, Os Europeus, trad. José Vieira de Lima, Lisboa: Contexto, 1990, p. 27. 

Saturday, January 30, 2021

SEMPITERNO

 


"Portanto, fica sabendo que tu és um deus, uma vez que é deus aquilo que tem vida, que sente, que recorda, que prevê, que rege e modera e faz mover o corpo que comanda, tal como o deus primeiro em relação a este mundo. E tal como esse mesmo deus eterno faz mover o mundo em parte mortal, assim a alma sempiterna move um corpo frágil."


Cícero, Tratado da República, VI. 26, trad. Francisco de Oliveira, Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2008, p. 240. 

Friday, January 29, 2021

ENNUI



"Pela raiz dos meus cabelos algum deus me agarrou. 
Crepitei nos meus vóltios azuis como um profeta do deserto. 

As noites fecharam-se de repente como a pálpebra de um lagarto:
Um mundo de dias brancos e monótonos, numa cova sem sombra. 

Um aborrecimento de abutre pregou-me aqui a esta árvore.
Se ele fosse eu, faria o que eu fiz."


Sylvia Plath, Ariel, trad. Maria Fernanda Borges. Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 141. 

Thursday, January 28, 2021

OCORRE

 



"Onde o desconhecido habita em qualquer um e em ninguém:
assim o que é duro na beleza, o que acede como inflamação da febre
no dominar de um cavalo ou na ciência das rosas:

O impossível ocorre em terrenos já fertilizados e
torna-os muito inférteis 
assim o que no silêncio ocorre."


Maria Andresen, O que Move o Silêncio do Cavalo e Anteriores Lugares, Lisboa: Relógio D'Água, 2020, p. 114. 

Wednesday, January 27, 2021

O SABER

 



"Por tal motivo, caros jovens, se quiserdes dar-me ouvidos, não tenhais medo de um segundo Sol. De facto, quer não exista nenhum, quer exista, tal como foi avistado mas sem ser prejudicial, nada se pode saber destes fenómenos, ou, por mais que se saiba, não podemos ser melhores nem mais felizes com tal conhecimento."


Cícero, Tratado da República, I. 32, trad. Francisco de Oliveira, Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2008, pp. 93-94. 

Tuesday, January 26, 2021

RECONQUISTA

 



"Frutos de uma selecção severa, as árvores demonstraram ser as mais aptas para captar a energia luminosa e extrair do solo os elementos nutritivos e a água. Na luta pela vida, as árvores são as mais poderosas, as mais invasoras, por isso reconquistam o território perdido quando os homens abandonam os campos: a pouco e pouco, os alqueives vão-se transformando em matas de corte que, posteriormente, se transformam em florestas. No entanto, como as suas silhuetas confirmam, as árvores também lutam umas com as outras: uma árvore isolada não tem o porte das que se desenvolvem em grupo, como observada Réaumur: «As árvores só crescem até onde as outras árvores que as rodeiam as obrigam a crescer.» Os combates entre espécies vão até à extinção da espécie rival, e assim as faias vencem os carvalhos heliófilos."


Robert Dumas, Tratado da Árvore, trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, pp. 145; 147. 

Monday, January 25, 2021

PAULO

 



"Como Paulo, todo o homem é um ser desorbitado. As resistências que ele encontra, desviam-no da direcção inicial ou natural; e o desgraçado caminha sempre aos encontrões da sorte, não sendo ele, na realidade, mas esse espectro que o impele, através da noite. O homem não é ele próprio: é apenas a sombra vã do seu destino. Ser, só Deus."


Teixeira de Pascoaes, S. Paulo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1984, p. 134. 

Sunday, January 24, 2021

INTERROGAÇÕES

 



"Depois de ter sugerido, graças ao seu crescimento e à sua fecundidade, muitas analogias com o processo criativo criador, a árvore gera, por identificação afectiva, um terceiro núcleo de imagens, ainda mais vasto. Numa espécie de empatia, o escritor atribui à árvore sentimentos, pensamentos e uma vontade humana. Assim, a árvore é como que um espelho turvo das mais diversas interrogações, dos humores mais variáveis. Na sua mudez eterna, reflecte docilmente as inconstâncias e as ambivalências humanas."


Robert Dumas, Tratado da Árvore, trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 69. 

Saturday, January 23, 2021

DÚVIDA

 



"E eu que não tenho outra arma no mundo de César, salvante o verbo, que não tenho outra moeda, no mundo de César, salvante palavras, falarei?"

René Daumal, A Guerra Santa, trad. António Barahona, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 39. 

Friday, January 22, 2021

FIRMAMENTO

 



"Nesse momento de reflexão, Johannisperto pensou que a Terra era inabitável. Os seus olhos voltaram a procurar as estrelas. Elas estavam pálidas e distantes. No entanto, nessa fria noite na montanha no início do Verão de 776, as estrelas pareceram-lhe mais meigas, e semeadas no firmamento com mão calma e experiente em padrões mais belos do que qualquer outra coisa. Elas pareceram-lhe ser os únicos locais de repouso possível, elas possuíam a paz."


Eyvind Johnson, O Tempo de Sua Graça, trad. João Reis, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2015, p. 218. 

Wednesday, January 20, 2021

COMO DEUS

 




"No inverno o vento está como deus 
em toda a parte: na cabeleira
verde dos cometas, no extenso
e turbulento sono dos rapazes, 
nos cegos fundamentos da alegria. 
Peço-lhe que tenha piedade, 
que seja amável com os que não dormem
debaixo de telha, que sorria a quem
regressa a casa a desoras - a boca
amarga do fermento da tristeza.
À semelhança de deus, o vento
dança indiferente nas areias."


Eugénio de Andrade, "Os Lugares do Lume", in Poesia, 2.ª edição revista, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 576.

Tuesday, January 19, 2021

ILUMINANDO

 



"De rosto em rosto a ti mesmo procuras
e só encontras a noite por onde entraste
finalmente nu - a loucura acesa e fria
iluminando o nada que tanto procuraste."



Eugénio de Andrade, "Homenagens e Outros Epitáfios", in Poesia, 2ª edição revista, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 238. 

Monday, January 18, 2021

AZUL VIRTUAL

 




"As cidades doem, estão dentro de nós
mantidas por laços de futuro e desejo
têm muros úteis e portas escondidas
que dão para a noite, como certos livros, 
e há amores que vivem a horas tardias

e outros que se cortam no fio da trama, 
queimam paus de incenso para abrir 
caminhos, remover obstáculos, há curvas
e arcos, ecos desolados, quartos de ninguém.
As cidades cansam, estão nos nossos

dias, têm mil janelas de azul virtual
que nunca sossegam e nunca terminam
e há corpos que ensinam a temer a morte, 
sombras que circulam nas redes do escuro
e homens que ferem para não chorar."


Rui Pires Cabral, Morada, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 283. 

Sunday, January 17, 2021

ESCUTA

 

 

"Eles escutaram, o silêncio surgiu. Escutaram o silêncio que as pessoas muitas vezes produzem quando procuram o que está oculto. Zumbiam no ouvido como abelhas, um enxame de ideias, o silêncio de zumbidos do enxame de abelhas; eram perguntas e respostas secretas que se podiam fazer de si próprios se o desejassem."

Eyvind Johnson, O Tempo de Sua Graça, trad. João Reis, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2015, p. 87.

Saturday, January 16, 2021

SEPARAR

 


"Estamos separados de Deus por dois lados: o pecado original separa-nos d'Ele, a árvore da vida separa-O de nós."


Franz Kafka, Parábolas e Fragmentos, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 115. 

Friday, January 15, 2021

ESTAR À ALTURA

 



"No calor protector da cama, eu sonhava, lia, viajava em imaginação, divagava numa preguiça igual à dos deuses no Olimpo, perdidos nas alturas, por cima do azul, recostados em almofadas de nuvens, preenchendo a sua eternidade com banquetes onde a música das esferas criava ambiente aos platónicos diálogos, às disputas eventuais e às menos platónicas bacanais. Aquilo que distinguia os deuses dos mortais - para além, claro, da imortalidade - era o ócio total e o seu corolário de orgias generalizadas e sem nenhuma ideia de pecado. Mesmo se certas deusas escapavam à regra, persistindo numa birrenta e embirrante virgindade, dedicando-se à caça e a outras banalidades; e apesar de nem todos os deuses estarem à altura da extraterrena libertinagem, no conjunto eles constituíam o modelo impossível do que eu queria, embora injustamente condenado a nunca, nem por sombras, lá chegar."

Almeida Faria, O Conquistador, Lisboa: Editorial Caminho, 1990, p. 69. 

Wednesday, January 13, 2021

PAISAGEM

 



"Sento-me diante desta paisagem, contemplo esta teimosa natureza idêntica a si mesma e indiferente aos homens tão mutáveis. Uma espécie de paz me faz aceitar quem quer que eu seja, como sou, sem mais. Se reflicto, logo as questões voltam a galope, mais assustadas pela sua nenhuma utilidade."


Almeida Faria, O Conquistador, Lisboa: Editorial Caminho, 1990, p. 20. 

Tuesday, January 12, 2021

LUGAR DENTRO

 



"De certa maneira, toda a coisa é um mundo, aí onde o mundo não é já o horizonte último, inatingível, que apenas se dá no fim dos tempos e no limite exterior do espaço, mas é a identidade intensiva com não importa qual dos seus objectos. Ser-no-mundo já não significa encontrar-se num espaço infinito que contém todas as outras coisas, mas significa antes a impossibilidade de experimentar num só lugar sem encontrar esse lugar dentro de nós mesmos, tornando-se, portanto, o lugar do nosso lugar. O mundo é esta força que reverte toda a inerência no seu contrário, que transforma todo o ingrediente em lugar e todo o lugar num elemento do mesmo composto."


Emanuele Coccia, A Vida das Plantas - Uma Metafísica da Mistura, trad. Jorge Leandro Rosa, Lisboa: Fundação Carmona e Costa / Documenta, 2019, p. 104. 

Monday, January 11, 2021

HABITAT

 



"Ao fazermos da terra um corpo celeste, tornamos novamente contingente o facto de ela representar o nosso habitat. Ela não é, por definição, habitável, à semelhança da maior parte dos astros. O cosmos não é por si o habitável - ele não é um oikos -, é antes um ouranos: a ecologia é simplesmente a recusa da uranologia."

Emanuele Coccia, A Vida das Plantas - Uma Metafísica da Mistura, trad. Jorge Leandro Rosa, Lisboa: Fundação Carmona e Costa / Documenta, 2019, p. 134. 

Sunday, January 10, 2021

ATMOSFERA

 


"As plantas são essa sopa primordial da terra que permite à matéria transformar-se vida e à vida voltar a transformar-se em «matéria bruta». Chamamos atmosfera a essa mistura radical que faz tudo coexistir num mesmo lugar sem sacrificar formas nem substâncias.
Mais do que uma parte do mundo, a atmosfera é um lugar metafísico no qual tudo depende de tudo o mais, a quintessência do mundo compreendida como espaço onde a vida de cada um está misturada com a vida dos outros.O espaço em que vivemos não é um simples contentor ao qual devêssemos adaptar-nos. A sua forma e a sua existência são inseparáveis das formas de vida que ele alberga, tornando-as possíveis."

Emanuele Coccia, A Vida das Plantas - Uma Metafísica da Mistura, trad. Jorge Leandro Rosa, Lisboa: Fundação Carmona e Costa / Documenta, 2019, p. 76. 

Saturday, January 9, 2021

VATICÍNIOS

 


"Desta forma, acabar-se-á por apagar a memória com passagens de esponja sucessivas, até à total amnésia. Assim a deusa Mnemósine, mãe de todas as artes e de todos os saberes na mitologia greco-romana, será forçada a deixar a Terra para sempre. E com ela, infelizmente, extinguir-se-á entre os seres humanos qualquer desejo de interrogar o passado, para compreender o presente e imaginar o futuro. Teremos uma humanidade desmemoriada, que perderá por completo o sentido da sua identidade e da sua história."


Nuccio Ordine, A Utilidade do Inútil, trad. Margarida Periquito, Matosinhos: Kalandraka Editora, 2019, p. 108. 

Thursday, January 7, 2021

COMPREENSÃO

 


"Debaixo do sol ou das nuvens, misturando-se com a água e com o vento, a sua vida é uma interminável contemplação cósmica, sem dissociar os objectos e as substâncias, ou, dizendo-o de outro modo, aceitando todas as nuances, até se fundir com o mundo, até coincidir com a sua substância. Nunca compreenderemos o que é uma planta sem termos compreendido o que é o mundo."


Emanuele Coccia, A Vida das Plantas - Uma Metafísica da Mistura, trad. Jorge Leandro Rosa, Lisboa: Fundação Carmona e Costa / Documenta, 2019, p. 23. 

Tuesday, January 5, 2021

CLARIDADES

 



"Consegui desculpá-la. Uma tristeza infinita subia-me à garganta como uma maré de lágrimas reprimida há muito tempo. 
Não, eu não amava mais esta menina de Brest do que tinha amado as outras, de Malta. O que eu amava... era o Amor!
Ai destes que amam o Amor!
Porque hão-de ser sempre traídos: pode alguém amá-los intensamente, que nunca são amados o bastante! Acham muito simples coisas complicadas como a felicidade, por exemplo, a ternura, a paixão que se consome na espera de uma promessa ou de uma leviana, paixão que aumenta com o seu próprio, desgaste, tudo quer e muitas vezes mais nada quer, receosa de pedir em excesso, que já se não atreve às claridades da alegria, de tal forma se atreveu à sombra e ao silêncio do tormento."


Rachilde, O Farol de Amor, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Editorial Estampa, 1987, pp. 117-118. 

Monday, January 4, 2021

O COMBATE

 


"Para combater estes exércitos, só disponho de uma pequenina espada, que mal se distingue à vista desarmada, cortante como uma navalha de barba, sim, lá isso é verdade, e muito mortífera."

René Daumal, A Guerra Santa, trad. António Barahona, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 31. 

Sunday, January 3, 2021

PREVISÕES

 




"O mar subia, trepava e parava sempre nos primeiros degraus, para recair estafado e cinco segundos depois retufar mais furioso do que nunca. Fazia à nossa frente este trabalho de inimigo, mas não tínhamos defesa: nem parapeito à entrada, nem grade férrea que lhe partisse os dentes. Trepava e vinha morder ali como se estivesse em sua casa. Acontece, no entanto, que um paredão invisível, a estiagem calculada pelos Srs. Engenheiros lhe domina a cólera. Nunca chega mais longe e quando lhe facilitam o caminho é para troçarem dele. 
Mas o que o farol parecia era um mastro de navio a afundar-se, e a gente sentia-se levada a grande velocidade para tudo quanto era sítio."


Rachilde, O Farol de Amor, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Editorial Estampa, 1987, pp. 31-32. 

Saturday, January 2, 2021

DA INTERPRETAÇÃO

 


"Esta imagem exerce sobre nós uma curiosa atracção e é evidentemente simbólica. Pergunto ao alemão: «Que significado tem?» »Ah! Nenhum! O homem no cavalo vai dar-lhe água a beber: nada mais do que isso». «E quanto ao homem da espada?». «Oh, se calhar é um inimigo.». «E os leões com o focinho preto?». «Ah, nada de especial. São meras decorações da fonte». Sob estas imagens há árvores  de onde pendem uma grinalda e a estola da fertilidade. Todo o padrão pintado à volta tem, em vez do ovo e da flecha, bolas com cruzes ligadas na parte de baixo e encimadas por dois círculos pequenos, o chamado sinal de Vénus. «E isto, não será um símbolo?», perguntei ao alemão. «Nem pensar!», replicou ele, abruptamente. «Não passa de uma decoração!» - o que talvez seja verdade. Mas que os artistas etruscos tivessem por ele, enquanto símbolo, o mesmo tipo de sentimento que têm os nossos actuais decoradores de interiores, nisso não é possível acreditar."


D. H. Lawrence, Lugares Etruscos, trad. Helder Moura Pereira, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 136-137. 

Friday, January 1, 2021

LIMIAR

 



"A força bruta esmaga muitas plantas. Contudo, as plantas acabam sempre por renascer. As Pirâmides, se as compararmos com os malmequeres, não correspondem senão a um fugaz momento. Muito antes de se ouvir a palavra de Buda, já o rouxinol cantava e muito depois de deixar de ouvir-se a palavra de Buda e de Jesus Cristo, o rouxinol continuará a cantar. Porque não prega nem ensina, não manda nem exorta. No princípio não era o Verbo mas o canto do pássaro."


D. H. Lawrence, Lugares Etruscos, trad. Helder Moura Pereira, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 61.