Tuesday, January 31, 2012

MATERIALISMO DIALÉTICO


"Foi-me forçoso correr a própria Fortuna que me
ocasionara o nascimento Castelhano, mudando [de] Reino,
e assim, com as jóias que a pressa me consentiu, parti
para aquele laberinto de edifícios, aquele epílogo de
grandeza, a maior Cidade do Mundo, Lisboa, digo, donde
vive um Tio meu, em cuja casa passo há pouco [menos] de dous
anos. Mas que em vão se cansa a indústria humana contra
os decretos do poder Divino, pois cuidando eu que com
a mudança do Reino ou fugia da Morte ou da Prisão,
quando mais seguro caí em ambas, porque passeando
com outros Cavaleiros às Belezas mais galanteadas, vi
entre elas duas, das quais hua soube cativar-me de
tal sorte os sentidos, que os não tive mais que para
adorá-la. Era a menor na idade mas a mais extremada na
fermosura, contra a opinião de muitos (que também nas
Belezas há opiniões) que querem dar as ventagens à mais
velha, quiçá porque tem melhor dote, que sempre as
Fermosuras com esta circunstância realçam mais."

António Barbosa Bacelar, Desafio Venturoso, ed. Ana Hatherly, Lisboa: Assírio & Alvim, 1991, vrs. 330-347, pp. 33-34.

Monday, January 30, 2012

ÁUGUAS SANTAS


"Mandala, ó beleza ritual
restituidora do lugar sacral
quando, ó meu Senhor, à tua beira
me ajoelhava na igreja fria
incandescente da tua ternura
e por Nossa Senhora iluminada"

António Barahona, rizoma, Lisboa: Guimarães Editores, 1983, p. 50.

Sunday, January 29, 2012

O ARTISTA MARGINAL


"- Então não lhe permite as paixões e afeições comuns entre os homens? - perguntou Paul.
- Não tem ele uma paixão, uma afeição, que inclui tudo o resto? Além do mais, ele que tenha todas as paixões que queira... desde que mantenha a sua independência. Deve ter a liberdade de ser pobre.
Paul soergueu-se com vagar.
- Então porque me encorajou a aproximar-me dela?
St. George pousou a mão no seu ombro.
- Porque ela seria uma esposa magnífica! E eu ainda não o lera nessa altura.
O jovem esboçou um sorriso tenso.
- Era melhor que me tivesse deixado em paz!
- Eu não sabia que isso seria pouco para você - retrucou o anfitrião.
- Que posição desonrosa, que condenação do artista, que ele seja um mero monge desenraizado e só possa produzir o seu efeito se abdicar da felicidade pessoal. Que afronta à arte! - prosseguiu Paul com voz trémula.
- Ah, não está a pensar que defendo a arte? "Afronta"... nem mais! Felizes são as sociedades em que ela não apareceu, pois desde o momento em que a acolhem possuem uma dor que as consome, uma corrupção incurável, no seu peito. É garantido que o artista toma uma posição desonrosa! Mas eu julgava que estávamos a partir desse princípio."
Henry James, "A Lição do Mestre", in Daisy Miller e outros contos, trad. Manuel Abrantes, Lisboa: Nova Vega, 2008, p. 115.

Saturday, January 28, 2012

IDOLA FORI


"Permita-me ter pelo menos um arrepio incómodo e que isto possa ajudá-lo a manter-se firme no futuro. Ao envelhecer não se torne no que eu me tornei: uma ilustração deprimente e deplorável da adoração a deuses falsos!
- O que quer dizer com envelhecer? - perguntou o jovem.
- Tudo isto fez-me velho. Mas gosto da sua juventude.
Paul não respondeu - permaneceram em silêncio por um minuto. Ouviram os outros a conversar sobre a moralidade do governo. Depois indagou:
- O que quer dizer com deuses falsos?
O seu acompanhante não teve qualquer dificuldade em dizer:
- Os ídolos do mercado; dinheiro e luxúria e 'o mundo'; dar uma boa vida aos filhos e vestir a sua esposa; tudo o que nos leva ao caminho curto e fácil. Ah, as coisas infames que somos levados a fazer!"

Henry James, "A Lição do Mestre", in Daisy Miller e outros contos, trad. Manuel Abrantes, Lisboa: Nova Vega, 2008, p. 90.

Friday, January 27, 2012

LOS QUE NO TENEMOS NADA


"CRIADA - Ya quisiera tener yo lo que ellas!

PONCIA - Nosotras tenemos nuestras manos y un hoyo en la tierra de la verdad.

CRIADA - Ésa es la única tierra que nos dejan a los que no tenemos nada."
Federico García Lorca, La Casa de Bernarda Alba, Madrid: Espasa Libros, 2010, Act. I, p. 85.

Thursday, January 26, 2012

A BONDADE DOS DEMÓNIOS



" - Teresa, estás enganada! Não há astúcia de que o lobo não se sirva para atrair o cordeiro; tais manhas encontram-se na natureza, na qual a bondade prima pela ausência; esta é a característica da grandeza preconizada pelo escravo, para comover o amo e o convencer a ser brando; a bondade surge no homem em dois casos: quando ele é o mais fraco ou quando receia vir a sê-lo; a prova de que essa pretensa virtude não existe na natureza está no facto de ela ser desconhecida do homem que mais próximo está da mesma natureza. O selvagem, desprezando-a, mata o semelhante sem piedade, quer para se vingar quer por avidez... Se essa virtude estivesse inscrita no seu coração, será que ele a respeitaria? A verdade é que ela não surgiu lá como nunca surgirá onde quer que os homens sejam iguais: a civilização, depurando os indivíduos, dividindo-os em classes, colocando o pobre na frente do rico, inspirando a este o receio duma mudança de estado que poderia precipitá-lo no nada do pobre, inscreve no seu espírito o desejo de consolar o infeliz, para ser por sua vez consolado, no caso de vir a perder as riquezas. Daí nasce a beneficência, fruto da civilização e do temor: é, portanto, uma virtude de circunstância, não é um sentimento da natureza: esta nunca pôs em nós desejo algum que não fosse o de nos satisfazermos, seja por que preço for. É confundindo assim todos os sentimentos, nunca analisando coisa alguma, que se cai na cegueira total e se renuncia a todo o prazer."
Marquês de Sade, Justine ou os Infortúnios da Virtude, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Antígona, 2001, p. 243.

Wednesday, January 25, 2012

EM WELLS


"Tudo, tudo desapareceu! Nem um vestígio do mundo passado! Nem uma pulsação do meu sentir desse tempo! Sou como um fantasma que voltasse ao seu magnífico castelo, construído quando príncipe poderoso e por ele legado a hora extrema a um filho querido, e das riquezas amontoadas nesse soberbo edifício apenas viesse encontrar cinzas, escombros, ruínas..."
J. W. Goethe, Werther, trad. João Teodoro Monteiro, 15ª ed. rev., Lisboa: Guimarães Editores, 1993, p. 116.

Tuesday, January 24, 2012

A URGÊNCIA DO REGRESSO AO QUOTIDIANO



"noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras.

hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se

onde se pode - num vocabulário reduzido e
obsessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir

apesar de tudo
continuamos a repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial."

Al Berto, Horto de Incêndio, 3ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, pp. 11-12.

Sunday, January 22, 2012

REMINISCÊNCIA


" - Estou a ver - disse ele. - Pensa que estou louco! - E deu uma leve palmada na sua própria testa.
- Não, louco não. Infeliz. E quando a infelicidade tem demasiada liberdade para escolher o seu caminho, claro, pode exercer uma grande pressão sobre a razão.
Ele permaneceu em silêncio por algum tempo, e depois abruptamente:
- Eu não sou infeliz! Sou imensamente feliz. Não acreditaria se lhe contasse a satisfação que me dá sentar-se aqui e contemplar aquele velho Hermes desgastado pelo tempo. Antes costumava ter medo dele; o seu cenho costumava lembrar-me um velho padre de pestanas hirsutas que me deu aulas de Latim e olhava para mim com um ar ameaçador quando eu gaguejava a ler Virgílio. Mas agora parece-me a coisa mais amigável e prazenteira do mundo, e sugere os cenários mais encantadores. Consigo imaginá-lo com seus lábios franzidos a embelezar um velho jardim romano há dois mil anos. Viu os pés em sandálias palmilhando as alamedas, e as cabeças coroadas de rosas inclinar-se sobre o vinho; conheceu as velhas festividades e os velhos rituais, os velhos crentes e os velhos deuses. Quando me sento aqui e ele fala comigo, no seu modo indolente, e descreve-me tudo! Não, não, meu amigo, eu sou um homem extremamente feliz!"
Henry James, "O Último dos Valerii", in Daisy Miller e outros contos, trad. Manuel Abrantes, Lisboa: Nova Vega, 2008, pp. 28-29.

Saturday, January 21, 2012

ANALGÉSICO


"Na longa alameda a luz aos pedaços cai
mole do alto dos postes. Ele olha.

Para que não doa, apenas olha.
E não dói."
Eucanãa Ferraz, Cinemateca, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2009, p. 94.

Friday, January 20, 2012

TREMOR

(Sé de Viseu, Portugal)

"Vamos aceitar os mitos,
supor da verdade do sangue
que enche as veias
dos primeiros deuses:
esses, os que descobriram a luz humana
e a imperfeição
que se lhe seguiu.

Vamos recusar a secularização
do tempo, a fingida agressão ritual
que, por certo, nos escapa.
Começar de novo a fúria
que há, tem de haver,
na pobreza do olhar liberto.

Falo-te de mitos. A seguir da voz
que habita os sonhos."

Luís Quintais, A Imprecisa Melancolia, Lisboa: Teorema, 1995, p. 51.

POR QUE FOSTE (em memória de Rui Costa)


"por que foste, diz-me, assim comandada pra matar
com clareza, mortal como uma vida ou uma certeza?
de ti não parto, creio. abro-te a porta e ponho-me à janela
como um rio. sou teimoso nos dedos da mão dela.
finjo-me clássico, tu hás-de compreender. desço
devagar, sei que só te vencerei quando nada
tiver. subo devagar acendo as imagens todas.
não te pergunto: a tua cara muda. sou
mais inteiro repartido. lavo-me, comemos pão"

Rui Costa, A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, p. 21.

Wednesday, January 18, 2012

O DESCONHECIDO



"Nenhum de vós ao certo me conhece,
Astros do espaço, ramos do arvoredo,
Nenhum adivinhou o meu segredo,
Nenhum interpretou a minha prece...

Ninguém sabe quem sou... e mais, parece
Que há dez mil anos já, neste degredo,
Me vê passar o mar, vê-me o rochedo
E me contempla a aurora que alvorece...

Sou um parto da Terra monstruoso;
Do húmus primitivo e tenebroso
Geração casual, sem pai nem mãe...

Misto infeliz de trevas e de brilho,
Sou talvez Satanás; - talvez um filho
Bastardo de Jeová; - talvez ninguém!"

Antero de Quental, Sonetos Completos, Porto: Lello & Irmão, 1983, p. 139.

Tuesday, January 17, 2012

O DEUS DAS ANGÚSTIAS


"A angústia parece constituir a humanidade. Não apenas a angústia, mas a angústia superada, o ultrapassar da angústia. A vida é na sua essência um excesso, é a prodigalidade da vida. Interminavelmente se esgota as suas forças e recursos, e interminavelmente destrói o que cria. Neste movimento, a multidão dos seres é passiva. Numa posição extrema, contudo, desejamos resolutamente o que faz perigar a nossa vida."
Georges Bataille, O Erotismo, trad. João Bénard da Costa, 3ªed., Lisboa: Edições Antígona, 1988, p. 75.

Monday, January 16, 2012

MORTE SECRETA


"Poesia, marulho e náusea,
poesia, canção suicida,
poesia, que recomeças
de outro mundo, noutra vida.

Deixaste-nos mais famintos,
poesia, comida estranha,
se nenhum pão te equivale:
a mosca deglute a aranha.

Poesia, sobre os princípios
e os vagos dons do universo:
em teu regaço incestuoso,
o belo câncer do verso.

Azul, em chama, o telúrio
reintegra a essência do poeta,
e o que é perdido se salva...
Poesia, morte secreta."

Carlos Drummond de Andrade, "Poesia Contemplada", in Antologia Poética, 2ª edição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, pp. 237-238.

Sunday, January 15, 2012

E OUTRAS AVES




"Juliet - Wilt thou be done? It is not yet near day:
It was the nigthingale, and not the lark,
That pierc'd the fearful hollow of thine ear, 
Nigthly she sings on yond pomegranate tree,
Believe me love, it was the nightingale.

Romeo - It was the lark, the herald of the morn:
Do lace the severing clouds in yonder East:
Night's candles are burnt out, and jocund day
Stands tiptoe on the misty mountain tops,
I must be gone and live, or stay and die."

William Shakespeare, Romeo and Juliet, London: Penguin Books, 1994, Act. III, c. 3, p. 99.

Saturday, January 14, 2012

SUITE


"Não eram as mulheres antigas, as prendadas, quem mais apreço granjeava então, mas sim as mais fogosas, atrevidas, que torravam sementes e esmagavam a folha de toda a planta brava, dando-as a petiscar aos gatos que mantinham seguros por um laço durante todo o tempo preciso à digestão. Confirmava-se a ideia de que eles pertenciam a uma outra ordem de uma outra Natureza, pois que, enquanto morriam os animais domésticos, assolados por tantas e tão letais doenças, vinham aqueles felinos prosperando, na sua muito obscura pulsão de procriar."
Hélia Correia, Insânia, Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 69.

Friday, January 13, 2012

RAZÕES DO SUSTO (SEXTA-FEIRA 13)


"Les amoureux fervents et les savants austères
Aiment égalemente, dans leur mûre saison,
Les chats puissants et doux, orgueil de la maison,
Qui comme eux sont frileux et comme eux sédentaires.

Amis de la science et de la volupté,
Ils cherchent le silence et l'horreur des ténèbres;
L' Erébe les eût pour ses courriers funèbres,
S'ils pouvaient au servage incliner leur fierté.

Ils prennent en songeant les nobles attitudes
Des grands sphinx allongés au fond des solitudes,
Qui semblent s'endormir dans un rêve sans fin;

Leur reins féconds sont plein d'étincelles magiques,
Et des parcelles d'or, ainsi qu'une sable fin,
Étoilent vaguement leurs prunelles mystiques."


Charles Baudelaire, Les Fleurs du Mal, Paris: Bookking Internacional, 1993, pp. 76-77.

Thursday, January 12, 2012

FLUIDOS


"Ao meio do canal submarino
a luz cegante é um anjo.

A suspensão do voo ampara...

Que fluido pelos círculos luminosos, parados, correrá?
O sorriso escancarado da esfinge mergulhadora
vai mostrando, distante, a galeria óssea
que deita
para as ameias dum castelo
com um deserto sem fim na retaguarda.
Sentinelas de sangue que esperam sempre a
sombra e a morte cobertas de ervas secas.

Na atracção do fundo,
aos pés da escadaria do escuro,
jaz a princesa, de verde, adormecida..."

Edmundo de Bettencourt, Poemas Surdos, Lisboa: Assírio & Alvim, 1981, pp. 14-15.

Wednesday, January 11, 2012

TO AVOID

(Sé de Braga, Portugal)

"1. Não deverá haver mais romances em que um grupo de pessoas, isoladas pelas circunstâncias, voltem à «condição natural» do homem, se tornem criaturas essenciais, pobres, nuas. Tudo isso pode ser escrito num conto, o último do género, a rolha da garrafa. Vou escrevê-lo eu por vocês. Um grupo de viajantes vítima de um naufrágio ou de um desastre de avião está algures numa ilha. Um deles, um homem grande, poderoso, desagradável, tem uma arma. Obriga todos os outros a viver num buraco que eles próprios tiveram de cavar. De vez em quando tira um dos prisioneiros, mata-o com um tiro e come o cadáver. A comida sabe bem e ele engorda. Depois de matar e de comer o último prisioneiro, começa a preocupar-se com o que fará para arranjar comida; mas felizmente chega um hidroavião e salva-o. Ele conta ao mundo que foi o único a escapar do desastre e que sobreviveu alimentando-se de bagas, folhas e raízes. O mundo maravilha-se com a sua óptima condição física, e um cartaz com a sua fotografia é exposto nas montras das lojas de comida vegetariana. Nunca é descoberto.
Vê como é fácil escrever, como é divertido? É por isso que eu proibia o género."

Julian Barnes, O Papagaio de Flaubert, trad. Ana Maria Amador, Lisboa: Quetzal, 2010, p. 121.

Tuesday, January 10, 2012

CONTRADIÇÕES AZUIS


"Se as coisas falam comigo como não lhes responder? Há dias uma pedra perguntava-me se a lógica era ou não um absurdo. Era uma pergunta difícil, mas disse-lhe que julgo não haver uma verdade mas sim mil verdades, e que as contradições são como flores num extenso prado, que sem elas seria constante. Mas nada é fácil; uma dessas bonitas flores pode esconder um veneno...
Infelizmente nem todos sabem fazer bom uso da liberdade. A liberdade não é fazer todos os disparates que nos vem à cabeça. As tuas liberdades podem prejudicar os outros, e as liberdades dos outros por certo te podem prejudicar a ti. Um dos grandes perigos que o mundo actual atravessa é esse, dos que não sabem usar a liberdade.
A realidade faz tudo o que pode para se confundir com a imaginação. Tu já viste nascer o sol? Todas aquelas cores que se movimentam na linha de horizonte, todos os dias diferentes, parece terem mais a ver com a imaginação de um genial pintor do que com a realidade. E o pôr-do-sol? E o luar que imita ou sugere o mistério e a loucura? O lugar é de certa forma um poeta."

Artur do Cruzeiro Seixas, O Espírito das Coisas Invisíveis - catálogo da exposição inaugural da loja das Quasi, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, p. 6.

Monday, January 9, 2012

CLARÕES E RUÍNAS



"Do clarão que é das ruínas,
pelo escuro,
uns pedaços se unem em fio estendido, serpente
um dia já sangue erguendo e triturando o edifício.

Eis um mar que se abisma
que a si próprio se engole
e a si próprio se vomita
com uns destroços de galera.

Ruínas...
no clarão que as ilumina,
aos poucos se dilui um fio com princípio e fim.
Mas, a acabar, ainda resplandece
na chave que abre a porta aos pesadelos!"

Edmundo de Bettencourt, Poemas Surdos, Lisboa: Assírio & Alvim, 1981, p. 38.

Sunday, January 8, 2012

MANIFESTO


"Sim ao prazer sem custo.
Acatar, beber, dividir o bom
que venha feito o sol, gratuito.

Quem sabe se o dom, o sem-razão
e o sem-motivos possam mais
do que exigimos. Nem se duvide

do que é capaz a coincidência
entre coisas. Nesse mundo
em que os gênios são servos de si mesmos,

pratique-se o descanso, para
que o fogo nunca esteja frio
e o coração passeie seus cavalos."

Eucanãa Ferraz, Cinemateca, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2009, p. 44.

Saturday, January 7, 2012

O SENTIDO DO ABISMO REENCONTRADO


"Perdido o sentido do abismo, os monstros passeiam-se
pelos reservatórios de plástico que nos seus antigos pátios
ainda pululam. Qualquer conhecimento dos fenómenos,
no entanto, é nulo e pelos terrenos cavernosos que nos
encaminham para o centro, reconhecemos os pormenores
que nos revelam que todo o pensamento ético termina
numa súplica. Poder-se-ia ter ido mais longe? Lançado
o olhar à terra, com a convicção de que o destino se cumpre
sempre muito a custo ?! Se se pensa, é sempre do mal
que se lança a semente, acreditando que o vento
por fim nos liberta do calor tórrido que nos assusta.
Assim, é sempre debaixo de palavras de que os corvos se erguem,
manchando de Sol as trevas em que agora se fina um agoniado crepúsculo."
Fernando Guerreiro, Grotesco, Lisboa: Black Son Editores, 2000, p. 13.

Friday, January 6, 2012

MAGI


"Como se explica que estes homens, ao partirem da sua pátria, sem nunca dantes terem visto Jesus, nem terem posto n'Ele a vista para observarem a ordem dos atributos que com tanta justeza haviam de honrar, como é que estes homens fizeram tão boa selecção dos presentes que haviam de levar?, senão porque, além daquela formosura da estrela que lhes feriu os olhos do corpo, lhes ilustraram os corações os raios mais brilhantes da verdade, para que antes de se meterem ao trabalho da viagem entendessem que, àquele que lhes era significado, se deviam no ouro as honras da realeza, no incenso a adoração da divindade, na mirra o reconhecimento da mortalidade?"
S. Leão Magno, "Quarto Sermão da Epifania do Senhor", in Sermões para o Natal, trad. pe. António Fazenda, Lisboa/São Paulo: Verbo, 1974, p. 196.

Thursday, January 5, 2012

PRECEITOS


"Qu'est-ce que la vérité? En matière de religion, c'est l'opinion qui a survécu. En matière de science, c'est l'opinion la plus récente. En matière d'art, c'est le dernier état d'âme qu'on a ressenti.

Si la contemplation d'une oeuvre d'art est suivie d'une activité quelconque, c'est que l'oeuvre est de second ordre, ou que le spectateur n'a pas su ressentir pleinement l'impression artistique."

Oscar Wilde, Les Ailes du paradoxe - anthologie, trad. Arnaud Hofmarcher, Paris: Le Livre de Poche, 1996, pp. 88-89.

Wednesday, January 4, 2012

A NATUREZA INSURGINDO-SE CONTRA A ARTE


"«Senhor, não é admirável observar como, desde a origem dos tempos, a Natureza e a Arte rivalizam, esforçando-se cada uma por, alternadamente, estabelecer a sua primazia? Oh, vejo que não acreditas! Tu obedeces levianamente ao preconceito, segundo o qual a Natureza ocupa sempre o primeiro lugar, devendo a Arte contentar-se a ser um plágio servil. A Arte imita a Natureza, e os pintores não são mais do que humildes servidores do que ela expõe perante os seus olhos. Esta é a opinião da maioria. Não é honroso para ti partilhá-la! Porque se utilizasses a tua própria cabeça em vez de pensar com a dos outros, tu notarias que inúmeras vezes esta ordem considerada imutável, se encontra alterada.
Lembras-te daquela lei de meu pai contra os açougueiros? Ordem para cortar as reses no interior das lojas, proibição de pendurar na rua os pedaços sangrentos de carne. A carne era julgada feia e repugnante. Era necessário um pintor para a obrigar a tornar-se bela e atractiva. O Stathouder da Holanda acaba de enviar a meu pai, em troca de uma remessa de tecidos de algodão e esparguete, ela por ela, um quadro que representa um quarto de boi suspenso na montra dum talho. A partir de agora, não veremos mais a carne qualquer coisa ignóbil, ela vai começar a imitar as cores magníficas desse Rinnbrat (que nome!), a bistecca vai tornar-se num obecto de admiração estética, a Natureza será forçada a admitir que foi ultrapassada pela Arte.»"

Dominique Fernandez, O Último dos Médicis, trad. Maria Delfina Chorão de Aguiar, Bertrand Editora: Venda Nova, 1996, pp. 114-115.

Tuesday, January 3, 2012

A ÁRVORE DE PLUTÃO


"Tudo opera no sentido de tentar compensar um défice, de culminar e acabar um ciclo (e trata-se na verdade de fechar um ciclo "do humano"). É por esta razão que a escrita mantém relações de parentesco com o universo ctónico, fúnebre, ao qual verdadeiramente pertence. Ela cobre o próprio facto de a vida ser aquilo que foi desalojado da linguagem, uma vida que só aparece nela própria sob uma espécie de condição "vitrificada". Ou, como escreve Steiner: "a verdade da palavra é a ausência do mundo." Então sim, podemos pensar em Dante como o poeta máximo, mas seguindo Nietzsche, também como "a hiena que faz poesia no mundo" (O Crepúsculo dos Deuses)."
Fernando R. de la Flor, Biblioclasmo, trad. Pedro Serra, Lisboa: Livros Cotovia, 2004, p. 193.

Monday, January 2, 2012

AOS GRANDES RETRATISTAS DE FILIPE II



"15. De não acreditar que a Arte tinha um fim social.

Não, não acreditava. Isto é cansativo. «Tu dás desolação», escreveu George Sand, «e eu consolo.» Ao que Flaubert respondeu: «Não posso mudar de olhos.» A obra de arte é uma pirâmide inutilmente erguida no deserto: os chacais mijam-lhe na base e os burgueses sobem-lhe ao topo; continue esta comparação. Quer que a arte seja um remédio? Mande vir a AMBULANCE GEORGE SAND. Quer que a arte diga a verdade? Mande vir a AMBULANCE FLAUBERT: mas não se surpreenda se, quando chegar, lhe passar por cima de uma perna. Ouça Auden: «A poesia não faz acontecer nada.» Não pense que a Arte é algo que deve proporcionar uma agradável exaltação emocional e autoconfiança. A Arte não é uma brassière. Pelo menos não o é no sentido que os Ingleses dão à palavra. Mas não se esqueça de que em francês brassière significa «colete de salvação».
Julian Barnes, O Papagaio de Flaubert, trad. Ana Maria Amador, Lisboa: Quetzal, 2010, p. 170.

Sunday, January 1, 2012

RECADOS PARA O NOVO ANO


"Se não rirmos da vida que nos foge
e da Sorte, prostituta ao sabor da corrente,
viveremos sempre atormentados pela dor
por vermos os indignos mais felizes."
Páladas, in do mundo grego outro sol - Antologia Palatina e Antologia de Planudes, selec. e trad. Albano Martins, Porto: Ed. Asa, 2002, p. 78.