Tuesday, February 28, 2023

ESCAPATÓRIA

 



"Expulso de ti próprio, não tens escapatória de ti,
este é o jogo
em que os pinheiros, iluminados pelo sol,
dão a sombra,
na qual penetram as barbas."


Paul Celan, "Poemas do Espólio", in Os Poemas, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 1036. 

Sunday, February 26, 2023

VIVER COMO OS OUTROS

 



"Durante longos períodos quase nem sequer me lembrava de Deus, e vivia como os outros; ou só de longe e longe me lembrava de Deus, fugidiamente. O exercício da arte, o amor da cultura, o sentimento da natureza e a sensibilidade aos seus belos espectáculos - bastariam então a tornar-me pelo menos feliz como qualquer outro, dado que ninguém é totalmente feliz. Quero dizer: como qualquer outro a quem não atormente qualquer drama religioso."

José Régio, Confissões dum Homem Religioso, Porto: Brasília Editora, 1971, p. 129.

Saturday, February 25, 2023

OS DIREITOS DO DESEJO


 

" - Isso não é verdade. Ainda que sejas aquilo que afirmas, um dinossauro moralista, há sempre curiosidade em ouvir um dinossauro a falar. Eu, pelo menos, tenho curiosidade. O que tens tu a dizer em tua defesa? Ora vamos lá ouvir.
Ele hesita. Será que Lucy quer mesmo que ele exiba mais das suas intimidades?
- A minha defesa apoia-se nos direitos do desejo - explica. - No desejo que faz estremecer até os pequenos pássaros."


J. M. Coetzee, Desgraça, trad. José Remelhe, (sic) idea y creación editorial, 2008, p. 82.

Friday, February 24, 2023

EQUILÍBRIO

 



"Tu equilibras, assim escreveu
a sem-peso, que
ajudou quando 
me despiram, me 
roubaram
o que vivi, - tu equilibras, escreveu
a que
vivenciou, que recebeu na mão
a armadilha, 
que a adorna, tu
equilibras
a balança.

Eu não a equilibro. Quando de futuro
sob as ruínas
chegar à balança, isso
já será muito.

Não fales de balanças, fala
de ti própria: depois sobe 
o fumo os seus caminhos para cima. Nunca
foi
o teu fumo, estás a ouvir. Nunca
foi 
o teu fumo, estás a ouvir. Cala-te, 
enche os pulmões de ar, deixa-me 
os mortos."


Paul Celan, "Poemas do Espólio", in Os Poemas, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 863. 

Thursday, February 23, 2023

IMMERSIO

 



"Junto de vós, ó eternos
cânticos do nunca, bem lá
no fundo, para onde
a palavra amada
me
precedeu, nadando adentro
da palavra ceifada,



estou deitado, com as
algas
de alma cheias de nomes
à minha volta -: alguém
por baptizar, alguém
mergulhado."


Paul Celan, "Poemas do Espólio", in Os Poemas, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 837.

Wednesday, February 22, 2023

CINZAS

 



"Visão acromática, atrás das cinzas,
na sacra palavra sem sentido,
avança o que perdeu a rima,
de leve manto cerebral sobre os ombros,

o canal auditivo, ecoando
reticulares vogais,
desmonta a púrpura da visão,
monta-a."


Paul Celan, "Feixes de Luz Solar", in Os Poemas, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 463.

Tuesday, February 21, 2023

FRONTEIRAS/ENTRUDO

 


"Como poderia ser de outro modo, no dionisismo? No panteão grego, Dioniso não representa o divino, pois constitui um domínio de realidade separado do mundo, oposto à incoerência e à inconstância da vida humana. Ocupa aí uma posição ambígua, como é próprio do seu estatuto: mais semi-deus do que deus, mesmo que ele queira ser deus plenamente e por inteiro. Até no Olimpo Dioniso encarna a figura do Outro. Se a sua função fosse «mística», ele arrancaria o homem ao universo do devir, do sensível, da multiplicidade para o levar a transpor esse limiar para além do qual se penetra na esfera do imutável, do permanente, de uno, do que é sempre o mesmo. Não é esse o seu papel. Ele não nos arranca à vida terrestre, por uma técnica de ascese e de renúncia. Ele elimina as fronteiras entre o divino e o humano, o humano e o bestial, o aquém e o além. Faz com que o que estava isolado, separado, comunique. A sua irrupção, sob forma de transe e de possessão regulamentadas, é, na natureza, no grupo social, em cada indivíduo humano, uma subversão da ordem que, através de todo um jogo de prodígios, de fantasmagorias, de ilusões, por um esvaziamento desconcertante do quotidiano, atira para o alto, numa confraternidade idílica de todas as criaturas, a comunhão feliz de uma idade do ouro subitamente reencontrada, ou, inversamente, para quem o recusa e o nega, para o fundo, para a confusão caótica de um horror terrífico."

Jean-Pierre Vernant, Figuras, Ídolos, Máscaras, trad. Telma Costa, Lisboa: Teorema, 1993, pp. 177-178. 

Monday, February 20, 2023

TEMPERAMENTO

 




"É assim o seu temperamento. E o seu temperamento não irá mudar, está velho de mais para tal. O seu temperamento está fixo, estabelecido. O crânio, e depois o temperamento: as duas partes mais duras do corpo.
Obedece ao teu temperamento. Não se trata de uma filosofia, não diria tanto. É uma regra, como a Regra de São Benedito.
Encontra-se em boa forma, tem a mente sã. É, ou tem sido, um erudito e a erudição continua a ser, intermitentemente, o seu ponto fulcral. Vive de acordo com os seus rendimentos, o seu temperamento, os seus meios emocionais. Será feliz? Sim, acredita que sim. Contudo, não esqueceu a última frase de Édipo: Nenhum homem é feliz enquanto não está morto."


J. M. Coetzee, Desgraça, trad. José Remelhe, (sic) idea y creación editorial, 2008, p. 6.

Sunday, February 19, 2023

MEMÓRIA




"Ele apontava para os olhos e para a testa e dizia-me também:
- Está tudo registado aqui, Céleste. Se não existe memória, não temos como comparar, e é apenas por meio da comparação que podemos completar os nossos pensamentos. Mas é um processo que nunca está terminado. É por isso que preciso sempre de ir ver ou rever alguém ou alguma coisa."


Céleste Albaret, Monsieur Proust, trad. Francisco Silva Pereira, Lisboa: Imprensa da Universidade de Lisboa, 2018, p. 250.

PRESENÇA

 



"Há mestres do silêncio? Que nos ensinam eles? Que o saber que conta, e o silêncio traz, é indiviso, talvez a grande nuvem do «não-saber», que nos ensina que não se pode confundir silêncio com ausência, porque o silêncio é sinal vivo da presença, o invisível que está-aí e nos fala. A luz que nele brilha é de uma intensidade paralisante, que quase cega."

João Barrento, Breviário do Silêncio, s.l. Edições Alambique, 2021, p. 113.

Saturday, February 18, 2023

BRILHO


 
"Um brilho de Verão chegava até mim. Porquê? Procurava recordar-me. Via vespas num raio de sol, o odor das cerejas em cima da mesa, não fui capaz de me recordar. Durante um momento, fui como esses que acordam a meio da noite e não sabem onde estão, tentando orientar o corpo para tomarem consciência do lugar onde se encontram, desconhecendo em que cama, em que casa, em que lugar da Terra, em que ano da sua vida se encontram."


Marcel Proust, Contra Sainte-Beuve, trad. Manuel de Freitas, Lisboa: Imprensa da Universidade de Lisboa, 2021, p. 6.

Friday, February 17, 2023

RESSURREIÇÕES



 "Não só a inteligência em nada nos pode ajudar nessas ressurreições, como também essas horas do passado que se vão abrigar apenas em objectos que a inteligência não procurou encarnar. Os objectos em que procurastes estabelecer conscientemente relações com as horas que vivestes são aqueles em que ela não conseguirá encontrar asilo. E, além do mais, se outra coisa os pode ressuscitar, eles, quando renascerem com ela, estarão despojados de poesia."

 

Marcel Proust, Contra Sainte-Beuve, trad. Manuel de Freitas, Lisboa: Imprensa da Universidade de Lisboa, 2021, p. 5. 

Thursday, February 16, 2023

NAS DISTÂNCIAS

 


"Nas distâncias a que me deixaram,
desci e escalei.

Primeiro encontrei
um prato de zinco,
de onde gravavam
os mortos que esqueceste.
Cresciam e cresciam.
Cada um tinha o teu nome.
Possuía um som muito bonito,
quando o vento o deixava ao passar."


Paul Celan, "Poemas do Espólio", in Os Poemas, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 791.

Wednesday, February 15, 2023

O EXCESSO, O DESERTO

 



"No campanulado mal respiram
as almas
crentes-não-crentes,

o excesso de estrelas
aí continua, também com a minha
mão, elevada a colina por ti,
em direcção ao deserto

há muito
que aí estamos."


Paul Celan, "Reduto do Tempo", in Os Poemas, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 754. 

Tuesday, February 14, 2023

MY FUNNY VALENTINE

 



"Nos tempos primitivos
o autralopiteco dizia para a mulher:
«ó minha macaquinha, sorria
olhe ali o mamute!»
Nos tempos de hoje em dia
o homem diz para a mulher:
«ó minha dama de companhia, mamo-te.»
Prefiro o rock flower-power dos Camel
que dizia:
ó minha dama da fantasia, amo-te."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Turquesa, Lisboa: INCM, 2019, p. 188.

Monday, February 13, 2023

OUTROS E CERTOS

 


"Outros e certos homens há sobre os quais exerce a bondade uma sincera atracção, - não conseguindo eles, entanto, ser superiormente bondosos: melhores que os outros. Consequentemente criam uma espécie de máscara que grudam ao rosto, aos gestos, aos actos, e de que se revelam extremamente ciosos. Os bons observadores e psicólogos não abundam no mundo, cada vez mais cheio de distraídos. Os distraídos e os ingénuos ajudam esses mascarados a afivelarem a sua máscara, a defenderem-na, a cimentarem-na. Uma auréola de superior bondade passa então a rodear-lhes a cabeça - a ponto de crerem os próprios na justeza da sua reputação. Quem poderá saber se passaram de isto alguns canonizados, safos pelo tempo à nossa observação?"


José Régio, Confissões dum Homem Religioso, Porto: Brasília Editora, 1971, p. 147. 

Sunday, February 12, 2023

A VEREDA DA VIDA

 


"Pedra de canto: Rembrandt,
de tu a tu com a modelada luz,
retirada do astro
como caracol de barba, nas têmporas, 

linhas de mão atravessam a testa, 
nos detritos do deserto, sobre
távolas de rocha, 
brilha para ti à volta
do canto direito da boca 
o salmo dezasseis."


Paul Celan, "Parte de Neve", in Os Poemas, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 684. 

Saturday, February 11, 2023

CONTÍNUO

 



"Se é vida este jogar a ser jogado
Nesta ora adoração do próprio umbigo
Ora ânsia de exceder curvo ou quadrado
De qualquer ventre ou de qualquer postigo,
Se é vida o expresso ou contraído brado
deste lutar com todos e comigo,
Se é vida deste contínuo e fruste parto,
Vivi, Senhor!, vivi! mas caí farto."


José Régio, As Encruzilhadas de Deus, 7.ª ed., Porto: Brasília Editora, 1981, p. 194.

Friday, February 10, 2023

SENTIDOS

 


"Creio que procurar sentidos é natural ao homem: pertence-lhe à condição. Mas se Deus existia, quantas coisas permaneciam inexplicáveis, quantos novos absurdos se levantavam, - e em que rede de interrogações se emaranhava o mísero indivíduo crente na sua existência (pelo menos inclinado a crer nela) todavia não adepto de nenhuma ortodoxia religiosa, não pacificado por nenhum sistema dogmático! Na verdade, tão espantoso me parecia que Deus existisse como se não existisse. Tanto a ideia de uma coisa como a de outra podem mergulhar numa espécie de pavor e vertigem o homem nascido para a consciência ou mesmo o sentir menos consciente de tais problemas."

José Régio, Confissões dum Homem Religioso, Porto: Brasília Editora, 1971, p. 110.

Wednesday, February 8, 2023

MANSO

 


"De esse episódio, que pelo visto se repetia, dos papeizinhos a fazer de santos, me falavam depois como testemunho de ser eu então «muito manso». Isto é, uma criança tranquila, talvez um bocadinho pateta, que facilmente se entretinha com ninharias pacíficas de tal jaez. Vem, pois, de longe o meu interesse pelos santos que se patenteia nO Pólo Sumo do Filho do Homem, - se é que pode interpretar-se aquilo como interesse pela santidade! Também depois me contaram que, já um pouco mais tarde, me chamavam «o menino das orações». Com efeito sabia não só as mais correntes como várias outras, especializadas. Bem provavelmente aprenderia anedotas obscenas, se mas ensinassem."

José Régio, Confissões dum Homem Religioso, Porto: Brasília Editora, 1971, p. 25.

Monday, February 6, 2023

AMARGURA

 



"Mar quer dizer amargura, e chamam-lhe assim, por ser tão salgado; porém falando-se moralmente chama-se mar amargo pelos muitos e grandes trabalhos, perigos, desgostos e amarguras, que os homens recebem a cada passo navegando por ele: com tudo isto a cobiça dos mortais juntamente com a inclinação natural, que têm ao navegar, vence todos os perigos que pela água se podem oferecer."


Jerónimo Cortez, Fisiognomia e Vários Segredos da Natureza, Lisboa: Vega, 1993, p. 113.

Sunday, February 5, 2023

A NORTE

 




"Nos rios a norte do futuro
lanço a rede que tu,
hesitando, carregas
com sombras
escritas por pedras."


Paul Celan, "Outro Respirar", in Os Poemas, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 294.

Saturday, February 4, 2023

SOBREVOO

 



"Rumo à ilha, ao lado dos mortos,
unidos a uma única árvore, vinda da floresta,
os braços sobrevoados pelos abutres do céu,
as almas com os anéis de Saturno:

assim remam os desconhecidos e livres,
os mestres do gelo e da pedra:
rodeados pelo soar das bóias que se afundam,
rodeados pelo latir do mar azul-tubarão.

Eles remam, eles remam, eles remam -:
Precedendo os mortos, os nadadores!
Rodeado pelas grades das nassas!
E amanhã evapora-se o nosso mar!"



Paul Celan, "De Limiar em Limiar", in Os Poemas, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 138.

Friday, February 3, 2023

A PROCURA

 



" - O que poderia eu dizer, ó Venerável? Talvez dizer-te que procuras demasiado? Que enquanto procurares nunca conseguirás encontrar?
- Como assim? - perguntou Govinda.
- Quando alguém procura - respondeu Siddhartha - pode acontecer que os seus olhos vejam apenas a coisa que ele procura, que não permitam que ele a encontre porque ele pensa sempre e apenas naquilo que procura, porque ele tem um objectivo, porque está possuído por esse objectivo. Procurar significa ter um objectivo. Mas encontrar significa ser livre, manter-se aberto, não ter objectivos. Tu, Venerável, és talvez um homem à procura, pois, perseguindo o teu objectivo, muitas vezes não vês aquilo que está perante os teus olhos."


Hermann Hesse, Siddhartha - um poema indiano, 13ª ed. trad. Pedro Miguel Dias, Cruz Quebrada: Casa das Letras, 2006, p. 142.

Thursday, February 2, 2023

O CORAÇÃO

 



"Assim vieste a ser
como nunca te tinha conhecido:
o teu coração em todo o lado a bater
num país de fontes sem ruído,

onde nenhuma boca bebe e nenhuma
figura as sombras debrua,
onde a água brota sem espuma
e é aparência que se esfuma.

Tu entras em todas as fontes,
flutuas nas aparências.
Inventaste um jogo nos montes,
feito para não deixar reminiscências."



Paul Celan, "Papoila e Memória", in Os Poemas, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 57.

Wednesday, February 1, 2023

LEVE, BREVE, SUAVE (para a memória de Cleonice Berardinelli)

 



"Leve, breve, suave,
um canto de ave
Sobe no ar que principia
O dia.
Escuto, e passou...
Parece que foi só porque escutei
Que parou.

Nunca, nunca, em nada,
Raie a madrugada,
Ou splenda o dia, ou doire no declive,
Tive
Prazer a durar
Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Gozar."


Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio, ed. Fernando Cabral Martins, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, pp. 65-66.