Wednesday, April 29, 2015

PAIRA



"Diz-se de habitualmente um juiz...que ele paira. No simbolismo do Império Bizantino, cópia fiel da disciplina celestial, os eunucos representam, diz-se, os anjos. Aos seus trajos devem os juízes uma ambiguidade que é o símbolo angélico da ortodoxia. Citei algures o mal-estar que me causa a ideia destes seres celestes. Também os juízes. O seu vestuário é ridículo. Cómicos os seus modos. Se os considero, julgo-os e preocupo-me com a inteligência deles."


Jean Genet, Diário de um ladrão, trad. Maria Helena Albarran, Mem Martins: Publicações europa-América, s.d., p. 184. 

Tuesday, April 28, 2015

ENTRANHAS



"Os meses passavam. Durante noites e dias viveu com os outros loucos, até chegar o momento em que já não lhe interessava revelar aos agentes a sua identidade. Por fim, acabou por deixar de pensar nisso."

Paul Bowles, "Mejdoub", in A Missa do Galo, trad. José Agostinho Baptista, Lisboa: Assírio & Alvim, 1990, p. 30. 

Sunday, April 26, 2015

A ENVIADA



"Je suis, vers toi, l'envoyée de ces régions sans bornes dont l'Homme ne peut entrevoir les pâles frontières qu'entre certains songes et certains sommeils. Lá, les temps se confondent; l'espace n'est plus! les dernières illusions de l'instinct s'évanouissent."

Villiers de l'Isle-Adam, L' Éve future, Paris: P.O.L., 1992, p. 293.

Saturday, April 25, 2015

PERTENÇA



"Homem livre
amas a solidão
e pertences à Terra
homem livre
queres a glória
e constróis o poema
homem livre
amas a paz 
mas estás em guerra
homem livre
não serves a Deus
nem à praça
homem livre
não trabalhes, 
ri,
goza!

Homem livre
és das paixões
e pertences à Terra."


A. Pedro Ribeiro, Fora da Lei, Braga: e-ditora, 2012, p. 75. 

Thursday, April 23, 2015

RIRE



"Mon verre s'est brisé comme un éclat de rire"



Guillaume Apollinaire, Alcools, Paris: Éditions J'ai Lu, 2014, p. 78. 

Wednesday, April 22, 2015

PARA A MEMÓRIA DE ANTÓNIO REBORDÃO NAVARRO



"A lua passaria pelas quatro fases, deixando, nas mais cheias, sobre as pedras do macadame, nos charcos, nas poças de chuva, nas folhas de couve e dos caramanchões, nos vidros altos das janelas, nas clarabóias, sobre o rio, um brilho lácteo, esfarelado, quase mórbido."

 António Rebordão Navarro, Amêndoas, doces, venenos, Porto: Campo das Letras, 1998, p. 40. 

Tuesday, April 21, 2015

PRAGMATISMO



" - Queres um canivete?
- Tenho um. Tenho tudo: pão, queijo, azeitonas, uma faca, uma sovela, sola para as botas e uma cabaça de água, tudo, tudo! Mas não tenho cigarros: é como se nada tivesse! E que procuras tu nas ruínas?
- Eu contemplo as antiguidades. 
- E percebes alguma coisa?
- Nada!
- Nada, eu também não. Esses estão mortos, nós estamos vivos. Anda, vai-te!
Dir-se-ia o espírito daqueles lugares que me bania."


Nikos Kazantzaki, Zorba, o Grego, trad. Fernando Soares, Lisboa: Ulisseia, s.d., p. 170.

Monday, April 20, 2015

O REINO


"«Descendons! reprit Edison, puisque décidément, il paraît que pour trouver l'Idéal, il faut d'abord passer par le royaume des taupes.»"

Villiers de l'Isle-Adam, L' Éve future, Paris: P.O.L., 1992, p. 133. 

Sunday, April 19, 2015

POMA


"Tem cuidado, meu rapaz! Foi também a mulher que roubou as maçãs do Paraíso e que as meteu no corpete. E agora passeia-se com elas, arrogante. Que peste! Se comes dessas maçãs, desgraçado, estás tramado. Se não comes, tramado estás."

Nikos Kazantzaki, Zorba, o Grego, trad. Fernando Soares, Lisboa: Ulisseia, s.d., p. 134. 

Saturday, April 18, 2015

BARRAS




"Virou pro tuiuiú e falou: 
- Olha, primo, pagar não posso não mas vou te dar um conselho: Neste mundo tem três barras que são a perdição dos homens: barra de rio, barra de ouro e barra de saia, não caia!"


Mário de Andrade, Macunaíma - o herói sem nenhum caráter, Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 138. 

Friday, April 17, 2015

SABLE


"La plus grand des folies est de croire que nous marchons sur du solide. Dès que l'histoire se signale, nous nous persuadons du contraire. Nos pas paraissaient adhérer au sol, er nous découvrons brusquement qu'il n'y a rien qui ressemble au sol, qu'il n'y a rien non plus qui ressemble à des pas."

E. M. Cioran, Ébauches de vertige, Paris: Gallimard, 2014, p. 25. 

Thursday, April 16, 2015

PAULICEIA


"E foi morar numa pensão com os manos. Estava com a boca cheia de sapinhos por causa daquela primeira noite de amor paulistano. Gemia com as dores e não havia meios de sarar até que Maanape roubou uma chave de sacrário e deu pra Macunaíma chupar. O herói chupou e sarou bem. Manaape era feiticeiro."


Mário de Andrade, Macunaíma - o herói sem nenhum caráter, Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 53. 

Wednesday, April 15, 2015

AVULSO



"Se a tarde finda e não há verso
ou canção que nos abrigue, o mundo
pode ser o reduto de um vazio 
onde a voz se desperdiça, escarpa de fumo
e veneno que sempre nos devolve o eco

da nossa própria incerteza. Não fomos
o que quisemos, nem temos quem nos proteja
do que não pudemos ser. À noite, na rua acesa, 
somos actores de outro drama que sofrem a mesma
hora, cheios de um desejo absurdo de cair

e de perder. Por enquanto o ar é doce
e a cidade não escorraça quem celebra o desconsolo
de habitar a sua pele: temos esta estrela amarga
que não luz, que não nos guia - é talvez
a poesia - e amanhã logo se vê."


Rui Pires Cabral, "Mixtape: 13 avulsos", in Morada, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 351.

Tuesday, April 14, 2015

ACONTECIMENTO


" - Qu' importe le son de la voix, la bouche qui prononce, le siècle, la minute où telle idée s'est révéllée, puisque toute pensée n'est, de siècle en siècle, que selon l' être qui la réfléchit? Ceux-là qui ne sauront jamais lire, auraient-ils su jamais entendre?... Ce n'est pas d'entendre le son, mais l' En dedans créateur de ses vibrations même, - ces voiles! - qui est l'essentiel."

Villiers de l'Isle-Adam, L' Éve future, Paris: P.O.L., 1992, p. 16. 

Monday, April 13, 2015

CILADA



"A fé que perdemos nestas ruas
não se recupera nem produz
as consequências da sua mais profunda
vocação. Antigamente não sabíamos
quase nada e ninguém ensombrava 
o nosso sangue: o desamor era apenas 
um motivo para dividir ao meio
o fundo calafrio de alguns versos. 

Mas foi talvez o amor
que nos manteve juntos e unidos
nas montanhas. E quando a noite
encheu a boca de pedras, nós descemos
à cidade onde julgámos poder respirar 
com mais proveito, outra imprevista
cilada da esperança."


Rui Pires Cabral, "Longe da Aldeia", in Morada, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 203. 

Sunday, April 12, 2015

FUNDAÇÃO


"Mas no fundo o que era o Templo Dourado senão um conjunto de estruturas minuciosamente elaboradas, edificadas sobre um não-ser? Assim era este seio: exteriormente, não passava de carne luminosa, resplandecente, mas no seu interior, como o ouro, estava repleto de noite: a sua substância, idêntica ao outro, era uma pesada e sumptuosa treva."

Yukio Mishima, O Templo Dourado, trad. Filipe Jarro, Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, pp. 171-172. 

Saturday, April 11, 2015

ESPERA



"Acaba de chegar da montanha.
É: o que volta sempre do mesmo. 
Acordar-me? Para o emigrante que joga 
do país para o camponês sobre o país
trabalhando. Todos. Nenhum. 
Os homens falam hoje da praia à longínqua
montanha. É: em que consiste o
ser verdadeiro? O que está por detrás?
O portal de uma igreja românica: onde 
se esconde o que é? O suspeito:
camponês ou ministro de estado?
A imagem não reproduz nada: madrugada 
de inverno os últimos fogos um grande erro?"


João Miguel Fernandes Jorge, " Porto Batel", in Obra Poética, vol. I, 2ª ed., Lisboa: Ed. Presença, 1987, p. 59. 

Friday, April 10, 2015

ANIVERSÁRIO



"Quando nadei profundamente na morte
Trouxe a mão ao cimo - era a superfície
O arbusto húmido a respirar fora das águas
A embarcação da infância
A neblina escavada ao redor da ilha desigual. Na vegetação

Que rodeia o homem solitário. Entrei profundamente
Trouxe a mão à tona da morte - o reflexo
Do remo movido sobre a agulha da bússola
O peixe que espera sobre todas as águas

Quando aquática a flor no tronco escavava
A minha última jangada nas correntes."


Daniel Faria, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 235. 

Thursday, April 9, 2015

TENTAR


" - Mais fosse um anjo - pensou o Santo. - Ah, Santo Antão, o demónio sabe fantasiar para nos tentar!"

Roberto Drummond, Hilda Furacão, Lisboa: Gradiva, 1998, p. 54. 

Wednesday, April 8, 2015

DÚPLICE


"Comme il est profond, ce mystère de l'Invisible! Nous ne le pouvons sonder avec nos sens misérables, avec nos yeux qui ne savent apercevoir ni le trop petit, ni le trop grand, ni le trop près, ni le trop loin, ni les habitants d'une étoile, ni les habitants d'une goutte d'eau..."

Guy de Maupassant, Le Horla, Paris: Éditions J'ai Lu, 2013, p. 6. 

Tuesday, April 7, 2015

TEMPLO DOURADO


"No entanto, o Templo Dourado nunca foi para mim um simples conceito. As montanhas impediam-me de olhar para elas, mas bastaria que tivesse a fantasia de o ir ver, e isso seria perfeitamente realizável: existia, estava ali. A beleza é portanto algo que podia ser tocada, algo claramente reflectida pelos olhos. Que no próprio seio desse universo de múltiplas metamorfoses o inalterável Templo Dourado devesse continuar a existir tranquilamente, disso estava eu certo, absolutamente certo."

Yukio Mishima, O Templo Dourado, trad. Filipe Jarro, Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 28. 

Monday, April 6, 2015

PÁSCOA



"O pensamento de que a beleza pudesse existir algures sem eu dela estar ciente causava-me um sentimento de mau estar e de irritação inultrapassável; pois se ela existisse realmente neste mundo, era eu quem, pelo facto da sua existência, estaria excluído desse mesmo mundo."

Yukio Mishima, O Templo Dourado, trad. Filipe Jarro, Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 28. 

Friday, April 3, 2015

TREVAS


" - A harmonia desfeita, que deuses puseste contra ti?"


Nuno Júdice, Plâncton, Lisboa: Contexto, 1981, p. 66. 

Thursday, April 2, 2015

CENA


"Mas assim tinha de ser para que se cumprisse o que está escrito na sua lei: Eles odiaram-me sem qualquer motivo."

Jo 15, 25

QUARTA PORTA



" - Existe alguma palavra - gritou ele olhando para trás,  - para esta sequência de momentos sempre novos?"

Urs Widmer, O Paraíso do Esquecimento, trad. Hiltrud Kallenberg de Soveral, Lisboa: Difel, 1991, p. 52. 

PARA O DIVINO MANOEL DE OLIVEIRA



"E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na eternidade como se fora um filho dos deuses."


Florbela Espanca, "O Aviador", in Contos e Diário, 2ª edição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2004, p. 183.