Saturday, February 29, 2020

ERGUIDA



"A poesia é uma máquina
                                       de produzir entusiasmo
e é preciso que os versos sejam verdadeiros
na vida dos poetas
                            como a tua erguida
                            sobre os anos futuros
quando o próprio bronze das estátuas se cobrir
do verdete do esquecimento
                            e das ortigas
entre as ruínas de um passado morto
e as pequenas plaquetes dos sentimentos pobres
dos lírios delírios
das doidas metáforas sem sentido
louvadas pela crítica
só tenham o arqueológico encanto
de um cabelo de Ofélia...

Então
os teus versos estarão na primeira fila dos pioneiros
                             cobertos de ortigas
porque fizeram todo o caminho do tempo
                             multiplicados por milhões de vozes
                             pela alta potência dos alto-falantes
como uma bandeira erguida
                              sobre os anos futuros."


Joaquim Namorado, A Poesia Necessária, Coimbra: Vértice, 1966, p. 42. 

Friday, February 28, 2020

ORGANISMO ONTOLÓGICO



"Fala-se correntemente da «árvore», ou das «árvores» dos Sefirós. Porquê todo este simbolismo vegetal? É que acontece que estamos aqui em presença de um verdadeiro organismo ontológico que se desenvolve segundo as leis de uma imperiosa hierarquia. Contudo, esta «árvore» distingue-se absolutamente de tudo o que nos poderia levar a uma espécie de «escada de Jacob», unindo a terra e os céus. Porque os Sefirós estão incluídos uns nos outros; e, mais do que isso, cada qual contém-nos a todos e encontra-se contido, todavia, no interior dos seus semelhantes. E o En-Sof permanece sempre o misterioso cofre."

René de Tryon-Montalembert, Kurt Hruby, A Cabala e a Tradição Judaica, trad. Renato Manuel Francisco, Lisboa: edições 70, 1979, p. 69. 

Thursday, February 27, 2020

MISTÉRIO



"Esse «ponto de luz», esse «ponto» inicial que brota de um não-ser concebido como além do ser, esse ponto vertiginoso, misteriosamente aparentado ao En-Sof, vemo-lo aparentado ao En-Sof, vemo-lo aparecer desde as primeiras linhas do Zohar: «Deste modo, por um  mistério dos mais secretos, o infinito tocou o vazio com o som do Verbo, ainda que as ondas sonoras aí não sejam transmissíveis. O som do Verbo era, portanto, o começo da materialização do vazio.»"

René de Tryon-Montalembert, Kurt Hruby, A Cabala e a Tradição Judaica, trad. Renato Manuel Francisco, Lisboa: edições 70, 1979, p. 62. 

Wednesday, February 26, 2020

ASHES



"Ó mistério! Ó mistério! És treva ou luz imensa,
que nos deslumbra e cega e faz desesperar?
Ou negra névoa densa, 
Que nem dissipa Deus, a fim de se mostrar?"


Teixeira de Pascoaes, Cantos Indecisos, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 50. 

TEMPLO



"Quando os sacerdotes saíram do santuário, a Nuvem encheu o Templo do Senhor, e os sacerdotes não puderam continuar o seu serviço, por causa da Nuvem: a glória do Senhor encheu o Templo. Então Salomão disse: «O Senhor escolheu habitar a Nuvem escura.»"

1Reis 8, 10-11. 

Tuesday, February 25, 2020

REALIDADES



"Devemos, por outro lado, aceitar que as realidades tão dinâmicas e instáveis como a palavra se possam converter no imobilismo da escritura, sem que a fonte que as alimenta seja esgotada"

René de Tryon-Montalembert, Kurt Hruby, A Cabala e a Tradição Judaica, trad. Renato Manuel Francisco, Lisboa: edições 70, 1979, p. 18. 

Monday, February 24, 2020

BRAÇOS




"A Natureza nem sempre pode esperar 
que a História compreenda as razões
por que se lança sem reservas nos 
braços do futuro. Então, a superfície 
da página rompe-se, os montes 
tremem e a linguagem reserva-se 
a ousadia de um último discurso. 
Dita a palavra, bandos de pássaros
atropelam-se no cérebro, indiferentes
às ideias que no pensamento desarrumam. 
Aves estranhas, que se alimentam 
de vento, enquanto lá fora alguns
homens esperam pela brisa
que os há de conduzir a climas
que só a violência dos caçadores
conserva imunes. Nada sabem
do futuro. Inseguros, ausentam
-se do presente para esquecer 
monumentos a deuses que só
a aridez da palavra mantém 
insepultos. Caberia o poema 
nas fichas do destino? Ou 
aperceber-se-ia no movimento
das figuras que dentro de si, 
enquanto sonha, permanecem 
ocultas? Os acidentes
da natureza sucedem-se 
interiormente e é pela 
mesquinhez das palavras
que o abrigue dos ventos 
que, por onde quer que siga, 
lhe varrem os sentidos."


Fernando Guerreiro, Ventos Borrascosos, 100 Cabeças, 2019. 

Sunday, February 23, 2020

ACENDER


"Acender a luz, interrompendo
o fluxo, permite-nos entender
a mentira da poesia que dá 
ao não-acontecido a envolvente
fluidez de uma trama narrativa - 
na esperança, talvez, de que
chocando com os móveis
os olhos por fim se habituem 
ao som com que as letras
ao cair iluminam por dentro
as contrafacções do futuro."

Fernando Guerreiro, Ventos Borrascosos, 100 Cabeças, 2019. 

Saturday, February 22, 2020

O MUNDO




"Para que foges tu, se o mundo te persegue?
Para que foges? Se ocultar-te não consegue
Teu próprio coração, é teu fado iracundo
Fugir em toda a parte... E em toda a parte é mundo."


Duarte Solano, Coroa de Rosas, Penafiel: Associação dos Amigos da Biblioteca de Penafiel, 2013, p. 77. 

Thursday, February 20, 2020

COMPARÁVEL



"Só quem soubesse contemplar o próprio passado como fruto da coacção e da necessidade seria capaz de, em cada momento presente, o valorizar ao máximo para si. Porque aquilo que se viveu é, na melhor das hipóteses, comparável a uma bela escultura à qual, no transporte, quebraram todos os membros, e nada mais oferece que o bloco precioso a partir do qual terá de se esculpir a forma do futuro."

Walter Benjamin, Rua de Sentido Único, trad. Isabel de Almeida. Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 74. 

Wednesday, February 19, 2020

IRA



" - A ira - disse Satanás, levantando a máscara e aspirando com elegância uma pitada de rapé -, como a soberba, com a qual se vincula intimamente, é um pecado esplêndido, limpo, vibrante, relampejante, ao contrário do que sucede com outros pecados capitais, os quais prefiro não nomear, para não ofender Vossas Excelências. Um pecado aristocrático."

Manuel Mujica Lainez, A Viagem dos Sete Demónios, trad. Jorge Pinheiro, Lisboa: Nova Vega, 2009, p. 139. 

Tuesday, February 18, 2020

AS ALTURAS



"Não temos as grandes palavras: unicamente a palavra risco para tudo o que há: a fúria de uma criança, a demência de um burocrata, a pontualidade de um funcionário. O risco prende-nos a nada, não começa nem acaba (como o som que o homem inventa), suporta o movimento dos olhos para os manter abertos. Não é o início de um rosto, de uma casa, de uma árvore, de uma palavra: a um risco nada se acrescenta: está completo na sua coisa nenhuma. É. Numa parede, num vidro, no tampo de uma mesa, numa folha de papel. Sobre um nome, mostra o nome. O anónimo. As tesouras continuam a podar."

Rui Nunes, Baixo Contínuo, Lisboa: Relógio D'Água, 2017, pp- 49-50. 

Monday, February 17, 2020

ARTES




"Tapando-os, o demónio estirou o indicador e o mínimo e encolheu os restantes dedos. 
- Vai tu com ele!
Soprou e o homem converteu-se numa açucena. Com ímpeto, Lúcifer urinou-lhe por cima; depois, devolveu-o ao seu aspecto natural. 
O aldeão sacudiu o molhado.
- Como te sentes, bom homem?
- Não sei... empapado...
- Até à próxima, bom homem. Cuidado com o orvalho.
- Até à próxima, bom ancião."


Manuel Mujica Lainez, A Viagem dos Sete Demónios, trad. Jorge Pinheiro, Lisboa: Nova Vega, 2009, p. 30. 

Sunday, February 16, 2020

A DISCIPLINA




"Em resumo, nenhum dos sete serve para nada e isso implica um mau exemplo, que já começa a afectar os espíritos menores. A disciplina relaxa e eu aspiro a que o Inferno seja um modelo disciplinar. Ei-los no Céu; que procedam como lhes apraza; que manejem à sua vontade a indulgência. O Inferno é um instituto penal e deve funcionar em bases sérias. Se os supremos guardiões da nossa casa esquecerem a sua obrigação, a pouco e pouco ir-se-á convertendo, para vergonha nossa, num Paraíso."

Manuel Mujica Lainez, A Viagem dos Sete Demónios, trad. Jorge Pinheiro, Lisboa: Nova Vega, 2009, p. 19. 

Saturday, February 15, 2020

PALMILHAR



"E é isto a Grécia: o palmilhar arcaico completamente independente do clássico; o oráculo dentro de cada um de nós; a bebedeira dos sentidos pedindo uma ressaca para esclarecer o pensamento que está lá no fundo. Sinto a sonolência que o ar da montanha mostra ao homem que, em mim, veio a Delfos compreender os deuses.
Uma formiga enquadra bem o que de mim eu transportava na alma. Transforma o horizonte numa paixão, vê uma esfinge sem mistérios, repara nos templos ao ouvir a urgência dos guardadores de rebanhos."

Ruben A., Um Adeus aos Deuses, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 66. 

Friday, February 14, 2020

DER KUSSE



"Beija a brisa que geme brandamente
as leves ondas que brincando frisa;
o sol beija a nuvem no ocidente
e de ouro e de púrpura a matiza; 
a chama em redor do tronco ardente
para beijar outra chama até desliza;
e o salgueiro, inclinando-se sem pejo, 
ao rio que o beijou devolve o beijo."

Gustavo Adolfo Bécquer, Rimas, trad. José Bento, Lisboa: Relógio d'Água, 1994, p. 57. 

Thursday, February 13, 2020

A POESIA



"A poesia é a exploração do paradoxo da terra que sustenta a vida e a sua subsequente sepultura."

Carl Sandburg, Antologia Poética, trad. Vasco Gato, Porto: Flâneur, 2017, p. 101. 

Tuesday, February 11, 2020

SUSTER


"Na pedra angular do arco em ruínas, 
que o tempo avermelhou, dominador, 
obra de rude cinzel, sobressaía
o gótico brasão. 

Penacho do seu elmo de granito, 
a hera, que pendia ao seu redor, 
dava sombra ao escudo e aí um punho
sustinha um coração. 

A contemplá-lo na deserta praça
detivemo-nos os dois. 
- É esse - disse - o adequado emblema
do meu constante amor. 

É verdade o que ela então me disse;
pois o seu coração
levá-lo-á na mão... em qualquer parte...
mas em seu peito, não."


Gustavo Adolfo Bécquer, Rimas, trad. José Bento, Lisboa: Relógio d'Água, 1994, pp. 107; 109. 

Monday, February 10, 2020

ENTRE



"A poesia é o silêncio e a fala entre a raiz húmida e aflita de uma flor e um botão soalheiro dessa mesma flor."

Carl Sandburg, Antologia Poética, trad. Vasco Gato, Porto: Flâneur, 2017, p. 101.  

Sunday, February 9, 2020

DIAGNOSE



"Os Portugueses vivem em permanente representação, tão obsessivo é neles o sentimento de fragilidade íntima inconsciente e a correspondente vontade de a compensar com o desejo de fazer boa figura, a título pessoal ou colectivo. A reserva e a modéstia que parecem constituir a nossa segunda natureza escondem na maioria de nós uma vontade de exibição que toca as raias da paranóia, exibição trágica, não aquela desinibida, que é característica de sociedades em que o abismo entre o que se é e o que se deve parecer não atinge o grau patológico que existe entre nós."

Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, 4.ª ed., Lisboa: Gradiva, 2005, p. 77. 

Saturday, February 8, 2020

CONSEQUENTE




"Se muitos místicos apreciadores de arte, que tomam por dissecação toda e qualquer crítica, e por destruição do prazer toda e qualquer dissecação, pensassem de forma consequente, o melhor juízo artístico sobre a mais digna obra seria então «Macacos me mordam!». De resto, existem críticas que nada mais dizem do que isso, apenas o fazem de modo mais extenso."

Friedrich Schlegel, "Limalhas de Ferro", in Da Essência da Crítica e outros textos, trad. Bruno C. Duarte, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 111. 

Friday, February 7, 2020

AS PEQUENAS FIGURAS



"Nem tudo teve o brilho do ouro e a consistência do ferro, na áurea e férrea Idade Média. As suas grandes e pequenas figuras foram elaboradas com o mesmo barro das grande e das pequenas figuras de hoje, pois por desgraça não há outro. O que eleva a Idade Média e a coloca acima da calculista realidade actual é - como expressá-lo? - a prodigalidade esplêndida com que os seus homens se entregavam à vida e bebiam até ao fundo um cálice em que o divino e o terreno mesclavam a sua abrasadora mistura. Cada um era o que podia ser, com plenitude, simultaneamente demónio e anjo."

Manuel Mujica Lainez, O Unicórnio, trad. António Gonçalves, Lisboa: Cotovia, 1990, p. 155. 

Thursday, February 6, 2020

MEMÓRIA (para o Divino Kirk Douglas)




"Pus-me nu sobre o cascalho mole de areia onde o mar banhava
   as minhas pernas de sal e humidade. 
Caminhei sozinho sob o arco da noite onde esvoaçavam
   estrelas ao vento entre a copa das árvores. 
E quão viva é a memória que guardo da gentileza do mar
   e da noite."


Carl Sandburg, Antologia Poética, trad. Vasco Gato, Porto: Flâneur, 2017, p. 73. 

Tuesday, February 4, 2020

DEVER (para o Divino George Steiner)



"Antígona - (...) Jazerei ao pé dele, sendo-lhe cara, como ele a mim, depois de prevaricar, cumprindo um dever sagrado - já que é mais longo o tempo em que devo agradar aos que estão no além do que aos que estão aqui. É lá que ficarei para sempre"

Sófocles, Antígona, trad. Maria Helena da Rocha Pereira, 3ª ed., Coimbra: INIC, 1992, pp. 42-43.

Monday, February 3, 2020

A UMA JANELA




"Dêem-me a fome,
Ó deuses que dão parados
Ao mundo as suas ordens. 
Dêem-me a fome, a dor e a penúria, 
Barrem-me entre a vergonha e o falhanço
Às vossas portas de ouro e fama, 
Dêem-me a vossa fome mais vil e penosa!

Mas deixem-me um pouco de amor, 
Uma voz que me fale ao findar o dia, 
Uma mão que me toque na escuridão do quarto
Quebrando a longa solidão. 
No crepúsculo das figuras diurnas
Que toldam o pôr-do-sol, 
Uma pequena estrela vagabunda e ocidental
Expelida das terras inconstantes da sombra. 
Deixem-me ir até à janela, 
Dela observar as figuras diurnas do crepúsculo
E esperar e reconhecer a chegada 
De um pouco de amor."


Carl Sandburg, Antologia Poética, trad. Vasco Gato, Porto: Flâneur, 2017, p. 85. 

Sunday, February 2, 2020

EMPAREDAR



"O emparedamento - seja dito com vénia dos eruditos e para esclarecimento dos que não o são - podia bem considerar-se o enterro de uma mulher viva. A cela da emparedada era um verdadeiro túmulo, tanto mais medonho e terrível que nele se sepultava, não o corpo desanimado e frio, mas o corpo animado e às vezes cheio de energia, de mocidade e de afectos e paixões violentas. Um estreito cubículo de sete ou oito palmos de comprido - como uma sepultura! - de quatro ou cinco, de largo, fechado a pedra e cal por toda a parte, e apenas numa das paredes uma estreita fenda em cruz, que servia para a confissão e comunhão, e para passar o alimento indispensável à vida, o qual em geral se reduzia a pão e água, aqui tem o leitor o que era uma cela de emparedada."

Arnaldo Gama, A Última Dona de S. Nicolau, Porto: Livraria Tavares Martins, 1937, p. 61. 

Saturday, February 1, 2020

DESTINO



"Que o senhor das pedras venha até nós, 
que lance a sua palavra sobre o basalto, e no ar
paire o condor sem as suas presas. 

Que nunca mais o cordeiro da páscoa derrame o 
sangue, 
na inclinação dos montes. 

Que não floresça a estrada por onde caminhamos, 
sem que se iluminem as bermas cegas do nosso
destino. 

Que ao meio-dia toquem os doze acordes do sol, 
nestes sinos.
Que se levante,
que se levante a nossa vida sonâmbula, 
cambaleando sobre os abismos. 

Que o perfume de todas as magnólias percorra o
amanhecer dos inocentes."


José Agostinho Baptista, Filho Pródigo, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p. 88.