Thursday, January 31, 2008

ENCARANDO O DIA COM O SOL DO OPTIMISMO


"Mergulho no dia como em mar ou seda
Dia passado comigo e com a casa
Perpassa pelo ar um gesto de asa
Apesar de tanta dor e tanta perda"


Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, Lisboa: Caminho, 2004, p. 50

Friday, January 25, 2008

COÉFORA


"Para a solidão nascemos. Outras vezes
nos chamam e nos invocam, outros corpos
se perfilam radiosos contra a noite.
Nós não somos daqui. Num intervalo
de campanhas esquecidas nos dizemos,
abrindo o coração aos de passagem.
Mas quando a manhã chega nós partimos,
mais livre o coração, longa a viagem."


Luís Filipe Castro Mendes, "Os Amantes Obscuros", in Poesia Reunida (1985-1999), Lisboa: Quetzal Editores, 1999, p. 427.

Monday, January 21, 2008

REFLEXÃO SOBRE O FIM DO MUNDO


"No fim de um mundo melancólico
os homens lêem jornais.
Homens indiferentes a comer laranjas
que ardem como o sol.

Me deram uma maçã para lembrar
a morte. Sei que cidades telegrafam
pedindo querosene. O véu que olhei voar
caiu no deserto.

O poema final ninguém escreverá
desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim me preocupa
o sonho final."


João Cabral de Melo Neto, O Engenheiro, in Poesia Completa, Lisboa: IN-CM, 1986, p. 417.

Saturday, January 19, 2008

GRADES



"Creio que o mais egoísta dos homens é aquele que recusa dar aos outros a sua fragilidade e as suas limitações. Quem recusa aos outros a sua pequenez, comete um dos mais infelizes gestos de prepotência. E porque aí se rejeita, aos outros não poderá dar senão o sofrimento da perda. Querendo-se sem falha, será o mais incompleto dos seres."


Daniel Faria, O Livro do Joaquim, Quasi Edições: V. Nova de Famalicão, 2007, fol.8, p. 74.

Wednesday, January 16, 2008

MEMÓRIA SATURADA, CAMINHANDO DEVAGAR


"Fechavas a cancela devagar,
o tempo a enredar-se nos sapatos
contrafeitos ao vasto vento frio,
qual lama feita alma do lugar,
sobressalto agudo que no fio
da esperança assim se quis reinventar,
pretexto só de como o coração
se desfaz em memória saturada
e no fulgor imerecido da canção
perdura e se mantém do próprio nada.
Fechavas a cancela devagar."


Luís Filipe Castro Mendes, "Viagem de Inverno", in Poesia Reunida (1985-1999), Lisboa: Quetzal Editores, 1999, p. 127.

Monday, January 14, 2008

SOBRE A MORTE POR PALAVRAS

(G. Ny-Carslberg, Copenhaga)


" Orestes - (...) Que razão tenho para me afligir, se, apesar de morto por palavras, de facto vivo e me cubro de glória? Penso que nenhuma palavra é má, quando traz proveito consigo, pois já vi muitas vezes morrer debalde, por palavras, até homens sábios, e depois, quando regressaram de novo a sua casa, serem honrados ainda mais do que antes. Assim também eu confio em que, após esta notícia, hei-de brilhar, um dia, vivo, como um astro, em face dos meus inimigos."


Sófocles, Electra, 29-67, trad. P. E. Dias Palmeira, Lisboa: Livraria Sá da Costa, p. 66.

Saturday, January 12, 2008

MÚSICA DURANTE O AFOGAMENTO, COM CISNE REGRESSANDO INTACTO DAS ÁGUAS NEGRAS


"Por momentos, el río negro doblegaba
todas mis fuerzas bajo el yugo.
Las aguas bajas, yo las veía profundas,
y las orillas en pendiente suave, abruptas y elevadas.
Arrastrado por el torbellino de las olas, luchaba
y oía las aguas en mí,
las buenas, las bellas aguas negras --
Después, de nuevo respiré una fuerza dorada.
La corriente fluía, poderosa, siempre más poderosa."


(In momenten jochte der schwarze fluss
meine ganzen Kräfte.
Ich sah die kleinen Wasser gross
und die sanften Ufer steil und hoch.
Drehend rang ich
und hörte die Wasser in mir,
die guten, schönen Schwarzwasser -
Dann atmete ich wieder goldene Kraft.
Der Strom strömte starr und stärker.)


Egon Schiele, Yo, eterno niño, trad. Jorge Segovia, Maldoror Ediciones, 2005, pp. 32-33)

Thursday, January 10, 2008

PROCURANDO FAZER COMPREENDER A L. A BELEZA DA RUÍNA

"
AS JANELAS

Nestas salas escuras, onde vou passando
dias pesados, para cá e para lá ando
à descoberta das janelas. - Uma janela
quando abrir será uma consolação. -
Mas as janelas não se descobrem, ou não hei-de conseguir
descobri-las. E é melhor talvez não as descobrir.
Talvez a luz seja uma nova subjugação.
Quem sabe que novas coisas nos mostrará ela."


Kostandinos Kavafis, Poemas e Prosa, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Lisboa: Relógio d'Água, 1994, p. 83.

Monday, January 7, 2008

REFLECTINDO SOBRE A CONTINGÊNCIA - I

"Apenas podemos ter esperança naquilo que é sem remédio. Que as coisas estejam assim ou de outra maneira - isso é ainda no mundo. Mas que isto seja irreparável, que o assim seja sem remédio, que nós possamos contemplá-lo como tal - isto é a única passagem para fora do mundo. (o carácter mais íntimo da salvação: que sejamos salvos só no instante em que já não queremos sê-lo. Por isso, nesse instante, existe salvação - mas não para nós.)"

Giorgio Agambem, A comunidade que vem, trad. António Guerreiro. Lisboa: Ed. Presença, 1993, p. 83.

Saturday, January 5, 2008

ANTE-VISÃO



"A sombra do sol, na hera, no agapanto
na orla de musgo, nas figuras. Passa
entre tudo a fisionomia, a do ante-rosto.
Poder fixá-lo na plenitude. Em repouso."


Fiama Hasse Pais Brandão, "Visões Mínimas" in Obra Breve, Lisboa: Ed. Teorema, 1991, p. 211.

Thursday, January 3, 2008

OS PASSOS DIFÍCEIS



"Esse é o passo difícil para quem aprende a estar morto: convencer-se de que a sua própria vida é um conjunto fechado, todo no passado, ao qual não se pode juntar nada, nem introduzir modificações de perspectiva na relação entre os vários elementos. É certo que os que continuam a viver podem, com base nas modificações por eles vividas, introduzir modificações inclusive na vida dos mortos, dando forma àquilo que a não tinha ou que parecia ter uma forma diferente: reconhecendo por exemplo um justo rebelde naquele que tinha sido vituperado pelos seus actos contra a lei, celebrando um poeta ou um profeta naquele que se tinha visto condenar à neurose ou ao delírio. Mas são modificações que contam sobretudo para os vivos. Eles, os mortos, dificilmente tiram delas qualquer proveito. Cada um é feito daquilo que viveu e do modo como o viveu, e isto ninguém lho pode tirar. Quem viveu sofrendo, fica feito pelo sofrimento; se pretenderem tirar-lho, deixa de ser ele."


Italo Calvino, Palomar, trad. João Reis. Lisboa: Ed. Teorema, 2002, p. 128.

Wednesday, January 2, 2008

OS AMENOS CONCEITOS DO ENGANO




"Somos pois escolhidos por variadas ficções e abandonados
por elas sempre que encontram terreno mais propício?
estamos aqui como no fim da história, o que vem depois é a
coerência dos que se escondem nos amenos conceitos do en-
gano; pressente-se então como circulam sobre tanto maligno;
os conquistadores de mulheres menstruadas, os domesticado-
res de animais dóceis e urbanos;
a morte palpita como a vida?"


Rui Nunes, O Mensageiro Diferido, 2ª ed., Lisboa: Relógio d'Água, 2004, pp. 61.