Monday, October 31, 2011

SOBRE OS ESPECTROS 2


"Notai, senhor, que a beleza não é tanto uma qualidade do objecto que consideramos, é mais um efeito em quem olha um objecto. Fosse a nossa vista mais extensa ou mais curta, fosse outra a nossa compleição e as coisas que hoje achamos belas, pareciam feias e vice-versa. A mais bela das mãos, vista através de um microscópio parecer-nos-á horrenda. Certos objectos vistos de longe são admiráveis; vistos de perto tornam-se horríveis. É por isso que as coisas, consideradas em si ou na sua relação com Deus, não são bonitas nem feias."

Espinosa, Sobre Espectros e Espíritos, trad. Telma Costa, Lisboa: Teorema, 2005, p. 29.

SOBRE OS ESPECTROS 1



"Por mim, creio que há espectros, e isto pelas seguintes razões:

1ª Porque é bom para a beleza e a perfeição do universo que os haja;

2ª Porque é plausível que o Criador os tenha criado, sendo-lhe estes espíritos muito mais semelhantes do que as criaturas corporais.

3ª Porque, assim como há corpos sem alma, também há almas sem corpos.

4ª Finalmente, porque nos mais altos cumes da atmosfera, nas regiões ou nos espaços superiores, calculo que não haja corpos escuros que não tenham os seus habitantes; e, por conseguinte, o espaço incomensurável que se estende entre nós e os astros não está vazio, mas sim preenchido pelos espíritos que nele habitam. Talvez os mais altos e mais afastados sejam espíritos puros, ao passo que os de baixo, os da atmosfera inferior, podem ser de uma substância muito subtil e muito fina e, além do mais, invisíveis. Parece-me, pois, que há espíritos de todos os géneros, mas talvez não haja nenhum do género feminino."


Hugo Boxel, in Espinosa, Sobre Espectros e Espíritos, trad. Telma Costa, Lisboa: Teorema, 2005, pp. 16-17. 

Thursday, October 27, 2011

O FIM DAS ILUSÕES

(museu regional de Lamego)

"agora fiquei triste, realmente,
emudeci

o que esta boca sente
quando sorri!

o jardim está sem gente
e anda um vago sonho por aí

quando voltar a minha força ausente
hei-de pensar neste alibi"
Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação, Lisboa: Assírio & Alvim/editores Independentes, 2008, p. 64.

Sunday, October 23, 2011

O RICOCHETE DA LUZ (POEMA MAHLER)


"No jardim das almas
A fala caída.
Como se a canção de
Deus e Morte.
A canção do cadáver
Sombrosa e rente.
Uivo. Brechas.
Ululante.
Compassadamente
O coração solto
Rasgado contra o céu maciço.
E de abismo ou de crateras
Um ardil. Incessante
Profundidade e permanência interminável
Na terra ímpia.
O relâmpago rasteja Deus.
Abre-se a solidão
Nos ombros do Inferno.

Quem vislumbra pérfido
No alçapão da sombra?
E o ricochete da luz?
Que castigo inexpliável?
Haverá uma música da fatalidade?
E quem lhe deve obedecer?
Sou miserável e perturbante.
Dou-me à paisagem destituída.
À árvore devastadora. À borboleta esmagada.
(O restolho enovelando.
Um bestiário precipitando-se.
Sacudindo-me.
Que aurora imprevista
Impulsivamente no mundo?)
Cantava a impaciência
Melancólica.
A dor radiante.

A vastidão."

José Emílio-Nelson, A Alegria do Mal - Obra Poética I, Vila Nova de Famalicão; Quasi Edições, 2004, pp. 140-141.

Saturday, October 22, 2011

PARA O FIM DO OUTONO


"Visíveis as sombras pendiam no escuro do canto.
(É uma falsa caixa de felicidade, a luz reluzente
Coroa-lhe a cabeça engelhada.)
A iguana de frio olhar humano."

José Emílio-Nelson, A Alegria do Mal - Obra Poética I, Vila Nova de Famalicão; Quasi Edições, 2004, p. 191.

Friday, October 21, 2011

NAS PEDRAS ANGULARES


"Se na vida estamos rodeados pela morte, também na saúde do nosso intelecto estamos rodeados pela loucura."

Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, trad. Jorge Mendes, Lisboa: Edições 70, 2000, p. 70.

Wednesday, October 19, 2011

O TEMPO DO CIMENTO


"É o tempo do cimento, da volúpia das batalhas. Depois da morte do escultor, a rua transformou-se num núcleo fechado. Os candeeiros perderam o seu lado imponente, o cheiro do pão foi sugado por um tubo e uma doença maligna apoderou-se dos cães. Mas eu não partilho desse pensamento, descobri que por debaixo da pele existe o enigma dos nomes. O velho poderia ser o próprio escultor e o homem de capacete  que tapava, há dias, os buracos da rua com uma pá, seria a representação dessa morte. A mulher fica de fora desse conflito, a olhar para a paisagem dentro de um carro, do lado de lá do vidro da frente, como um ser a acordar de um desastre."
Jaime Rocha, Anotação do mal, Lisboa: Sextante Editora, 2007, p. 28.

Tuesday, October 18, 2011

ACHEGAS PARA A MANIFESTAÇÃO SOCIAL


"Aqui, onde falamos da besta e do soberano, teremos sempre em vista uma analogia entre duas representações correntes (correntes, logo problemáticas, suspeitas, a interrogar), entre a espécie de animalidade ou de ser vivo a que se chama a "besta" ou que se representa como bestialidade, por um lado, e, por outro, uma soberania o mais das vezes representada como humana ou divina, antropo-teológica na verdade. Mas cultivar esta analogia, desbravar-lhe ou lavrar-lhe o território, não quer dizer nem autorizá-la, nem tão pouco viajar nela num só sentido, reduzindo, por exemplo, a soberania (política ou social ou individual - e isto são já dimensões diferentes e terrivelmente problemáticas), tal como ela é o mais das vezes situada na ordem humana, a prefigurações ditas zoológicas, biológicas, animais ou bestiais (quatro conceitos - o zoológico, o biológico, o animal, o bestial - que haveria também que prudentemente discernir)."

Jacques Derrida, Le souverain Bien / O soberano Bem, trad. Fernanda Bernardo, Viseu: Palimage, 2004, p. 55.

Monday, October 17, 2011

DO LADO DE DENTRO


"as árvores como
vento implume ou
lápide de um antigo
ser alado

deus ou voz extensa e eu, no
sopé da montanha somos
espantalhos no terreno da alma"

valter hugo mãe, útero, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2003, p. 50.

Sunday, October 16, 2011

A ELEVAÇÃO ESTÉTICA


"O grotesco é a outra face do sublime, a sombra da luz, o grotesco é a fonte mais rica que a natureza pode oferecer à arte. A beleza universal, que a antiguidade difundia solenemente sobre todas as coisas, não estava privada de monotonia, e a mesma impressão pode enfadar, à força de ser reproposta. O belo não possui senão um tipo, o feio possui mil. O sublime acostado ao sublime contrasta a custo, e é necessário fazer uma pausa de tudo, até mesmo do belo. A salamandra faz ressaltar a ondina; o gnomo torna mais belo o Sísifo."


Umberto Eco, Construir o Inimigo e outros escritos ocasionais, trad. Jorge Vaz de Carvalho, Lisboa: Gradiva, 2011, pp. 162-63.

Saturday, October 15, 2011

SINAIS DOS TEMPOS



"Nem meu senhor, nem bispo é;
dele não hei senão pousio,
e não lhe devo preito ou fé,
nem ser eu servo ou corça fio.
Me fez andar todo um estio
a água fria e pão ruim.
Fonas me foi, largo e esguio:
Seja-lhe Deus como ele a mim."


Vasco Graça Moura, Os testamentos de François Villon e algumas baladas mais, Porto: Campo das Letras, 1997, p. 49.

Thursday, October 13, 2011

DIAS DRAMÁTICOS


“a teresa diaba já não era filha de ninguém. por muito tempo que se defendeu de bicho e instinto, a diaba era só bicho e instinto, como coisa que veio do mato para se amigar da vida das pessoas. era assim como um animal selvagem com muita vontade de ser doméstico, presa às atitudes dos homens viciara-se em homens, e nada do que fizesse seria honra para qualquer pai que a tivesse. assim era como se dizia, já não era filha de ninguém, se até os pais se recusavam a recordar o nascimento de tão atrofiada mulher, parida entre pernas como feita para alívio, nunca para viver. era disforme em pequeno, ponto pequeno, já feia para assustar as pessoas, e menina, diziam, vai ser bicho do diabo a distribuir o pecado em carne tão azarada. e era nos azares da sua carne que se rejeitava a filiação, para isso deitou a teresa diaba às sortes, e como vingou não se imagina senão por forças demoníacas que a alimentaram. diaba, grunhindo e zurzindo em busca do prazer, pendurada em galho de homem dia inteiro, batendo os raquíticos braços como asas, sem poder voar, sem andar direito, sem nada. todos lho diziam, anda, animal, some-te daqui a ver se te enfias numa toca e não levas uma pedrada, e ela sorria na sua meia loucura e rondava quem lhe falasse. como tive de lhe falar quando a vi, ou se calava do que viu, ou punha-lhe a lâmina ao pescoço para a calar de vida. era assim simples, se abres a boca para espalhar o que ouviste sais deste mundo para o outro. ela, saia levantada, grunhia risos e pedia-me que entrasse. entra aqui como de costume, estou com saudades tuas, meu amor.”
valter hugo mãe, o remorso de baltazar serapião, Matosinhos: Quidnovi, 2006, pp. 53-54.

Wednesday, October 12, 2011

VÁCUOS


"Os meus contemporâneos são mortais
A erosão protege os corpos vulneráveis
As suas vidas que o presente rege
são os sonhos previstos numa
arte que extingue a realidade

Os meus contemporâneos são
mortais
No meu lugar passado mostrará os
sonhos concluídos esse espelho
que mostra só o nada"

Gastão Cruz, As Pedras Negras, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 60.

Monday, October 10, 2011

AS GRANDES ESPERANÇAS


"- Tudo acaba por se arranjar, meu rapaz, o principal é saber usar la coca.
Por este instante petrifiquei, julgando que o génio da pintura tivesse perdido o juízo e me recomendasse ali sem rebuço o vício da cocaína. Mas no momento seguinte já ele apontava para a minha cabeça:
- La coca, hombre, la cabeza, la tête! Só se precisa dessa. O resto... - e com um floreado Au revoir! saiu para a rua."

J. Rentes de Carvalho, La Coca, 4ª ed., Lisboa: Quetzal, 2011, p. 185.

Sunday, October 9, 2011

A VIDA DOS AMANTES


"E soprou a vela. Nana, furiosa, continuava: não admitia que lhe falassem naquele tom. Estava habituada a ser respeitada. Como ele não lhe respondia, teve de se calar. Mas não podia adormecer, voltava-se e revolvia-se.
- Com os demónios! Quando é que deixas de te mexer? - gritou ele, subitamente, com um salto brusco.
- Não tenho culpa de que a cama esteja cheia de migalhas - respondeu Nana secamente.
Com efeito, havia migalhas. Ela sentia-as até sob as coxas, tinha comichão por todo o corpo. Uma única migalha a incomodava, fazendo-a coçar-se até sangrar. De resto, quando se come um bolo, não é costume sacudir o cobertor? Fontan, com uma raiva fria, voltara a acender a vela. Levantaram-se ambos, com os pés descalços e em camisa, levantando os lençóis, varrendo as migalhas com as mãos. Ele, tiritando, voltou a deitar-se, mandando-a ao diabo por ela lhe recomendar que sacudisse bem os pés. Finalmente, Nana retomou também o seu lugar, mas, mal se estendeu, começou a mexer-se. Ainda havia migalhas.
- Arre! Estava-se mesmo a ver - repetia -, trouxeste-as pegadas aos pés... Não posso mais! Digo-te que não posso mais!
E fazia menção de passar por cima do seu corpo para saltar para o chão. Então, com a paciência esgotada, querendo dormir, Fontan deu-lhe tremenda bofetada. Foi tão grande que, subitamente, Nana deu consigo deitada, com a cabeça sobre a almofada. Ficou atordoada."
Émile Zola, Nana, trad. Carlos Loures, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1973, p. 163.

Saturday, October 8, 2011

LE HASARD


"Où est l'absurdité du monde? Est-ce ce resplendissement ou le souvenir de son absence? Avec tant de soleil dans la mémoire, comment ai-je pu parier sur le non-sens? On s'en étonne, autour de moi; je m' en étonne aussi, parfois. Je pourrais répondre, et me répondre, que le soleil justement m'y aidait et que sa lumière, à force d'épaisseur, coagule l'univers et ses formes dans un éblouissement obscur. Mais cela peut se dire autrement et je voudrais, devant cette clarté blanche et noire qui, pour moi, a toujours été celle de la vérité, m'expliquer simplement sur cette absurdité que je connais trop pour supporter qu'on en disserte sans nuances. Parler d'elle, au demeurant, nous mènera de nouveau au soleil."
Albert Camus, L'été, col. Folio, Paris: Gallimard, 2010, pp. 85-86.

Wednesday, October 5, 2011

A ÉPOCA TRÁGICA


"Sachons donc ce que nous voulons, restons fermes sur l'esprit, même si la force prend pour nous séduire le visage d'une idée ou du confort. La première chose est de ne pas désespérer. N'écoutons pas trop ceux qui crient à la fin du monde. Les civilisations ne meurent pas si aisément et même si ce monde devait crouler, ce serait après d'autres. Il est bien vrai que nous sommes dans une époque tragique. Mais trop de gens confonde le tragique et le désespoir. «Le tragique, disait Lawrence, devrait être comme un grand coup de pied donné au malheur.» Voilà une pensée saine et immédiatement applicable. Il y a beaucoup de choses aujourd'hui qui méritent ce coup de pied."

Albert Camus, L'été, col. Folio, Paris: Gallimard, 2010, p. 53.

Tuesday, October 4, 2011

MORIA 10, A PARTIR DE "O FILHO DE MIL HOMENS" DE vhm


"Depois, imaginou que, de tão levantada, a barriga deixava que o umbigo se abrisse, e que o mar inteiro se punha a voar por sobre a sua cabeça entornando deuses nos seus braços e, quanto mais os estendesse e maiores eles se tornassem, mais deuses ali pousariam até que o Crisóstomo, como por boca de ouro, pronunciasse sonoramente a mais absoluta felicidade."
valter hugo mãe, O filho de mil homens, Carnaxide: Editora Objectiva/Alfaguara, 2011, pp. 229-230.

Sunday, October 2, 2011

MORIA 9, A PARTIR DE "O FILHO DE MIL HOMENS" DE vhm


"O Crisóstomo pensava que o corpo dos homens estava condenado a uma tristeza maior, como se fosse fraco da humanidade, o corpo menor. O corpo triste. Pensava que a pele deveria ser mais terra, e sonhava com fazer crescer árvores no peito e flores pelos braços e ter rios a correr por sob as pernas e entornar nas coxas giestas fartas e um milheiral inteiro. Sonhava que atirava sementes de girassol sobre si e que se pacientava durante uma estação até ver como todo ele procurava o sol, florescendo como um lugar onde a vida se vinha fazer nascer. Sonhava que haviam de ser perfeitas as mulheres por serem escolhidas para a maternidade, a construírem pessoas dentro de si."

valter hugo mãe, O filho de mil homens, Carnaxide: Editora Objectiva/Alfaguara, 2011, p. 228.

Saturday, October 1, 2011

MORIA 8, A PARTIR DE "O FILHO DE MIL HOMENS" DE vhm


"Foi ponderar se seria desagradável colocar-lhe uma pedra em cima. Uma pedra inteira, dessas verdadeiras de mármore, para fazer ao animal uma sepultura já mais inviolável pelos vivos à superfície. Que aos bichos da terra tinha dado a natureza o ofício de intervir na morte, mas aos outros não, e qualquer intromissão era um insulto."
valter hugo mãe, O filho de mil homens, Carnaxide: Editora Objectiva/Alfaguara, 2011, p. 222.