Tuesday, June 30, 2020

VALENTE



"O homem que tem o peito bem composto e ordenado, sempre dorme quieto. Aquele que tem o corpo firme e bem exercitado, dá-se-lhe pouco da desordem dos tempos e mudança dos ares. O que tem valente estômago, nenhum alimento rejeita, prevalecendo o vigor natural contra os mantimentos viciosos e transformando-os em nutrimento saudável. Assim aos justos que amam a Deus nada lhes faz mal e até os males se lhes tornam em bens."

Frei Amador Arrais, "Diálogo Segundo Alívio de Afligidos", in Diálogos,  2.ª ed., Lisboa: Sá da Costa, 1981, pp. 8-9. 

Monday, June 29, 2020

OS SONHOS




"Quando dormimos, estão os instrumentos dos sentidos ociosos, donde é que as alterações que, velando, não sentimos por serem inválidas e fracas, dormindo, as percebemos como se foram fortes e violentas. Aristóteles observa que as cousas pequenas, entre sonhos, parecem grandes. Daqui vem que, quando os ouvidos, estando nós dormindo, são ocupados com sono leve, reputam por trovões os movimentos que brandamente tocam nossas orelhas."

Frei Amador Arrais, "Diálogo Primeiro das Queixas dos Enfermos e Cura dos Médicos", in Diálogos,  2.ª ed., Lisboa: Sá da Costa, 1981, pp. 4-5. 

Sunday, June 28, 2020

ATROAR



"No entretanto o combate tornou-se temeroso. Era um verdadeiro assalto. Os populares, como não tinham escadas, subiam às costas uns dos outros, para entrar na casa pelas janelas. Os homens do senhor da Terra de Santa Maria defendiam porém valorosamente a entrada, fazendo chover sobre o inimigo uma nuvem de virotes e de pedras, e despenhando um sem número de valentes, que uns após os outros, e a despeito de toda a resistência, se empenhavam em entrar pelas janelas. Aquilo era uma confusão medonha, de tiros, de brados, de pragas e de blasfémias. Aos que caíam derribados, sucediam-se imediatamente outros, e daqueles mesmos, os que não ficavam de todo aleijados, aporfiavam de novo em subir. Ao mesmo tempo os besteiros e os espingardeiros populares faziam entrar pelas janelas dentro um chuveiro de setas e de balas, das quais a maior parte ricocheteava nos peitorais estufados das couraças, mas algumas também estendiam por terra aqueles em quem acertavam. Os homens de armas da Terra de Santa Maria correspondiam a este fogo com igual brio. O alarido crescia cada vez com mais horror, em razão dos gemidos dos feridos, dos brados dos velhos e dos prantos e gritos das mulheres. Os sinos tocavam pavorosamente e sem cessar a rebate, as trombetas tangiam por toda a parte, e os brados e alarido atroavam de todo o espaço. Aquilo afigurava um verdadeiro inferno."

Arnaldo Gama, A Última Dona de S. Nicolau, Porto: Livraria Tavares Martins, 1937, pp. 235-236.

Thursday, June 25, 2020

LUCTAS




"Ali, onde o mar quebra, n'um cachão
Rugidor e monotono, e os ventos
Erguem pelo areal os seus lamentos,
Ali se ha-de enterrar meu coração. 

Queimem-no os sóes da adusta solidão
Na fornalha do estio, em dias lentos!
Depois, no inverno, os sopros violentos
Lhe revolvam em torno o arido chão...

Até que se desfaça e, já tornado
Em impalpável pó, seja levado
Nos turbilhões que o vento levantar...

Com suas luctas, seu cançado anceio, 
Seu louco amor, dissolva-se no seio
D'esse infecundo, d'esse amargo mar!"


Antero de Quental, Os Sonetos Completos, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1933, p. 52. 

Wednesday, June 24, 2020

ENCOBERTO



"Coberto de águas
e de meses
esperando o que não terá fim
o fogo anima."


João Miguel Fernandes Jorge, "À Beira do Mar de Junho", in Obra Poética, vol. 5, Lisboa: Editoral Presença, 1996, p. 131.

Tuesday, June 23, 2020

UM DEUS



"O Homem é um deus em ruína. Quando os homens forem inocentes, a vida será mais longa e passaremos à eternidade suavemente, como se acordássemos de um sonho. Ora, o mundo estaria louco furioso, se esta desorganização se mantivesse por centenas de anos. É reprimido pela morte e pela infância. A infância é o Messias perpétuo, que vem aos braços dos homens caídos e lhes roga que voltem ao Paraíso."

Ralph Waldo Emerson, A Natureza, trad. Berta Bustorff Silva, Cascais: Sinais de Fogo, 2001, p. 97. 

Monday, June 22, 2020

TORRENTE



"Apenas por meio de esquecer desse mundo primitivo de metáforas, apenas por meio do endurecimento e da solidificação de um fluido originariamente incandescente, de uma torrente de imagens emergentes do poder originário da imaginação humana, apenas por meio da crença inabalável de que este sol, esta mesa sejam uma verdade em si, numa palavra, apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito, e enquanto sujeito criador e artista, vive ele com algum descanso, segurança e coerência."

Friedrich Nietzsche, Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral, trad. Helga Hoock Quadrado, Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, pp. 224-225. 

Sunday, June 21, 2020

PASSAGEM



"Quando toda e qualquer árvore pode falar uma vez como ninfa ou quando, disfarçado de toiro, um deus pode raptar donzelas, quando a própria deusa Atena é vista de repente como passa pelos mercados de Atenas num belo carro de cavalos, acompanhada por Pisístrato - e nisso acreditavam os bons atenienses -, então em cada instante tudo é possível como no sonho, e a natureza inteira enleia o homem, tal como se ela fosse um jogo de máscaras dos deuses que, por brincadeira, gozam o homem sob todas as formas."

Friedrich Nietzsche, Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral, trad. Helga Hoock Quadrado, Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p. 229. 

Saturday, June 20, 2020

UMA PARCELA DO SABER AUGUSTO

~


"Espectros que velais, enquanto a custo
Adormeço um momento, e que inclinados 
Sobre os meus sonos curtos e cansados
Me encheis as noites de agonia e susto!...

De que me vale a mim ser puro e justo, 
E entre combates sempre renovados
Disputar dia a dia à mão dos Fados
Uma parcela do saber augusto, 

Se a minh'alma há-de ver, entre si fitos, 
Sempre esses olhos trágicos, malditos!
Se até dormindo, com angústia imensa, 

Bem os sinto verter sobre o meu leito, 
Uma a uma verter sobre o meu peito
As lágrimas geladas da descrença!"


Antero de Quental, Sonetos Completos, Porto: Lello & Irmão, 1983, p. 151. 

Friday, June 19, 2020

O CHAMAMENTO




"É de cera e é de cinza toda a ausência.
Do avesso a máscara, dor
De outras perdas ante Seus olhos, os nossos males.
Aonde andará O ausente?
Quem ouvirá para além de nós o chamamento?

(Ardorosamente enquanto ignoramos,
Quem ao alcance tem a ocasião, o firmamento?)"


José Emílio-Nelson, Bacchanalia, s.l.: Edições Sem Nome, 2014, p. 57. 

Thursday, June 18, 2020

NATUREZAS




"Instinto e razão, sinais de duas naturezas."


Blaise Pascal, Pensamentos, 3.ª ed. , trad. Américo de Carvalho. Mem Martins: Publ. Europa-América, 1998, p. 144. 

Wednesday, June 17, 2020

OS FENÓMENOS



"Todas as belezas contêm, como todos os fenómenos possíveis, qualquer coisa de eterno e qualquer coisa de transitório - de absoluto e de específico. A beleza eterna e absoluta não existe, ou, antes, não passa de uma abstracção desnatada à superfície geral das diversas belezas. O elemento próprio de cada beleza provém das paixões e, como temos as nossas paixões próprias, temos a nossa beleza."

Charles Baudelaire, "Salão de 1846", in A Invenção da Modernidade, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Relógio D'Água, 2006, p. 28. 

Tuesday, June 16, 2020

CONFRONTO




" - ... mas que eu diga «estou aqui» e tu respondas «sei», e a perfeição existirá sobre a Terra. De resto - acrescentou ainda - é exatamente porque não há solidão que dizes que há solidão. Imagina que eras o único homem no Universo. Imagina que nascias de uma árvore, ou antes, porque eu quero pôr a hipótese de que não há árvores, nem astros, nem nada com que te confrontes: supõe que o Universo é só o vazio e que tu nascias no meio desse vazio, sem nada para te confrontares. Como dizeres «eu estou sozinho»? Para pensares em «eu» e em «sozinho» tinhas de pensar em «tu» e em «companhia». Só há solidão porque vivemos com os outros..."

Vergílio Ferreira, Estrela Polar, Lisboa: Círculo de Leitores, 1989, p. 222. 

Monday, June 15, 2020

ENFADO




"Ó morte, velho capitão, é tempo! Ao largo!
Este país enfada, ó Morte! Aparelhemos!
E se o céu e o mar são escuros como breu, 
Os nossos corações estão cheios de raios!

Verte-nos o teu veneno, ele nos conforta!
Queremos, tanto esse fogo nos queima o cérebro, 
Mergulhar no abismo, Inferno ou Céu, tanto faz!
No Desconhecido encontraremos o novo!"


Charles Baudelaire, As Flores do Mal, trad. João Moita, Lisboa: Relógio D'Água, 2020, p. 293. 

Sunday, June 14, 2020

O LIMIAR (para a memória de Luís N.)




"O limiar principia aqui. Depois olhamos com receio
a luz que dá a tudo outro significado. Ficamos
mais perto dela para sabermos como em cada gesto
é só nosso o repouso."



Fernando Guimarães, "Fonte", in  Algumas Palavras - Poesia Reunida (1956-2008), Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, p. 174. 

TESTEMUNHA



"Mas o que há é só o teu deserto. É o deserto que circunda o que veio em ti e está contigo, essa tua incandescência, o prodígio da tua riqueza, esse esplendor tão como um escárnio. Não o que inventaste, criaste, não o que deixarás aos que ficarem, não isso, mas o que tu és, porque tudo o mais é o anúncio, reflexo, superfície do que és - isso, tu... abrem-se-me os olhos de espanto e necessidade: tu, imóvel, aí, e uma necessidade igual em mim, chamando, clamando. Que ao menos uma testemunha final se erguesse para o saber. Mas a única testemunha é o silêncio da terra."

Vergílio Ferreira, Estrela Polar, Lisboa: Círculo de Leitores, 1989, p. 82. 

Saturday, June 13, 2020

OBSESSÃO



"Não acabará pois a obsessão do divino? Tanto rio desaguando no mesmo mar. Tanto problema levando à mesma solução. Mas eu quero que os rios se resolvam uns nos outros, que o Mundo seja nosso, que a Terra seja do homem. A palavra que nos queima a boca é uma palavra humana. As questões dos homens resolvem-se entre os homens."

Vergílio Ferreira, Estrela Polar, Lisboa: Círculo de Leitores, 1989, p. 57. 

Friday, June 12, 2020

ICONOCLASMO


"Pois quando é verdadeiro benefício a obra boa? Quando quem a faz sabe que a perde, e, contudo, a faz. E tais são os benefícios que fazem aos mortos. Como os mortos não sentem, nem conhecem o benefício que se lhes faz, e ainda que o conheceram não o podem agradecer nem pagar, tudo o que se faz aos mortos, é como se se perdera, e por isso a sepultura se chama perdição: In sepulchro, in perditione."

Padre António Vieira, Sermão ao Enterro dos Ossos dos Enforcados, Lisboa: babel, 2010, p. 36. 

Thursday, June 11, 2020

CORDEIRO




"A vitória sobre a morte. Que serve ao homem ganhar todo o mundo se vem a perder a sua alma? Quem quiser conservar a alma a perderá.
«Não vim destruir a lei, mas cumpri-la.»
«Os cordeiros não tiravam os pecados do mundo, mas eu sou o cordeiro que tira os pecados.»
«Moisés não vos deu o pão do Céu. Moisés não vos tirou do cativeiro e não vos tornou verdadeiramente livres.»"


Blaise Pascal, Pensamentos, 3ª ed. , trad. Américo de Carvalho. Mem Martins: Publ. Europa-América, 1998, p. 332. 

Wednesday, June 10, 2020

MENTEPSICOSE




"«Ilusão! Ilusão! sonho que encerra
em si a pobre humanidade inteira, 
louros que faz buscar a morte e a guerra, 
nuvem que foge, à hora derradeira!
Glória! nome vão, a quem a Terra
busca, e só palpa a lívida caveira, 
como pálidas flores das ilusões
que esmagaram os pés das procissões!»"



Gomes Leal, A Fome de Camões, ed. José Carlos Seabra Pereira, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 69. 

Tuesday, June 9, 2020

ALIANÇA




"E posso escrever com ele a abertura
A passagem para dentro
Os umbrais na própria carne
Pôr o coração no interior para soldar
Uma pulseira humilde. Uma aliança
Com o que respira."


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 173. 

Monday, June 8, 2020

MUDANÇAS




"Seguindo um impulso repentino, perguntei:
- «Kleine Oma», onde deixaste ficar a rosa da América?
- No friso da janela. É lá o seu lugar. 
- Porque é que não a trouxeste contigo?
- As flores e os velhos não aguentam mudanças."


Ilse Losa, O Mundo em que Vivi, 11.ª ed., Porto: edições Afrontamento, 1992, p. 107. 

Sunday, June 7, 2020

LIMOS (EM MODO WARBURG)



"Atrás da nossa casa, entre pereiras e macieiras, havia um poço em que vivia a ninfa Raquel. Eu bem sabia que Raquel fora a bela filha do dono de rebanhos, Labão, a quem Jacob servira duas vezes sete anos para a obter e que dela lhe nasceram José, o Egípcio, e Benjamin, o menino amimalhado. Mas como imaginava a minha ninfa, no fundo do poço, tão bela como Raquel, dei-lhe o nome que bem merecia."

Ilse Losa, O Mundo em que Vivi, 11.ª ed., Porto: edições Afrontamento, 1992, p. 47. 

Saturday, June 6, 2020

SEMELHANTE




"Nada faço senão olhar. 
Céu rasgado ao céu.
Mostra coisas mortas
Onde enegrece. 

Sei o que você lhes disse.
Provoca a fumarada de pneus, plástico. 
Havia de anoitecer o meio-dia
Destro que nem Deus."


José Emílio-Nelson, A Alegria do Mal - Obra Poética I, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2004, p. 120. 

Friday, June 5, 2020

GUARDAR




"A velhinha da Igreja de St. Germain des Près, vai apagando os círios e guarda os restinhos que ainda servem para uma outra vela, para uma oferta."

António Nobre, Despedidas, 3. ª ed. Porto: Imprensa Moderna, 1944. p. 245. 

Thursday, June 4, 2020

JAZES




"Léman azul que, mudo e morto, jazes. 
Quanto és feliz! assim pudesse eu sê-lo!
Nem a sombra dos montes, nem seu gelo
De turvar tuas águas são capazes."


António Nobre, Despedidas, 3. ª ed. Porto: Imprensa Moderna, 1944. p. 22. 

Wednesday, June 3, 2020

A LUZ


"A luz que o trabalho irradia é uma bela luz que, contudo, só brilha com uma beleza real, se for iluminada por uma outra luz."

Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, trad. Jorge Mendes, Lisboa: Edições 70, 2000, p. 46.

Tuesday, June 2, 2020

LEÃO ARMADO




"Depois da lucta e depois da conquista
Fiquei só! Fôra um acto anthipatico!
Deserta a Ilha, e no lençol aquatico
Tudo verde, verde, - a perder de vista."


Camilo Pessanha, Clepsydra, ed. Paulo Franchetti, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 132. 

Monday, June 1, 2020

VERDE



"Olhava persistente para algumas bujardas da natureza: coisas feias e dejectas a boiarem no verde límpido e cheio de velas pardas; olhava para uns cachorros rabujentos a lamberem a babugem mais fácil e sentia um grito melancólico de esperança e alegria a despontar em tudo que se mexia à minha volta. No contudo, o mundo estava teleguiado, as pessoas iam determinadas pela torre de comando central e à menor tentação mudavam logo de direcção. A esperança era diminuta - não se podia fugir a ser teleguiado."

Ruben A., Cores, 2.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 84.