Friday, December 31, 2010

COMPLETAS



"Há cem anos guardadas no livro mais mito que há em Portugal, sonham imagens de pura alegria onde se forma um mundo novo, dicionário magnífico de cores.

Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!
- Mas qual a vila, qual a aldeia, qual a serra
Que este Palácio da ventura encerra?
- O Espírito, a Nuvem, a Sombra, a Quimera!

E o primeiro homem, deslumbrado dirá:

- Que grande é o mundo! E eu sou! Que ventura tamanha!
Ninguém! Meu pai é o céu. Minha mãe é a montanha.

Que diz, António? Não foi bem assim que escreveu? Foi, foi, deve estar tudo num qualquer futuro manuscrito que já vi. Adeus, eu parto, mas volto, breve (...) Adeus! Os ventos são meigas brisas / E brilha a lua como um farol! Que vista admirável! Que lindo! Que lindo! Ó sol! Ó sol! Ó sol! (as lavandiscas noivas, piando, piando!) Adeus, tão longe, tão longe a terra! Adeus. Adeus. Adeus.

Fecho o envelope ideal.


Regresso a este século só com o meu coração.


Vera Vouga, "À Esquina do Planeta", in Cem anos de gratidão, org. Francisco Topa, Anexo XIII da Revista da Faculdade de Letras, Série «Línguas e Literaturas», Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2008, p. 23.

BALANÇO DO MÊS 12



"A beleza, a meia-noite, a visão fenece.
Que sopre suave o vento errante
Da aurora sobre a tua cabeça adormecida,
Desvelando um dia de tanta doçura
Que agracie o olhar e o coração pulsante,
Bastando-lhes o mundo mortal;
E que te saciem, na árida secura,
Os poderes involuntários,
E possas passar, nas noites de injúria,
À guarda de todo o humano amor."


W. H. Auden, Outro Tempo, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D' Água, 2003, p. 83.

Thursday, December 30, 2010

O TERCEIRO CORO E UMA VOZ



" Coro 3.º

Mentira, tú eres
Luciente cristal,
Color de oro y nácar
Que encanta al mirar.


Una Voz

Feliz a quien meces.
Mentira en tus sueños,
Tú sola halagüeños
Placeres nos das,
Ay!, nunca busquemos
La triste verdad!
La más escondida
Tal vez, qué traerá?
Traerá un desengaño!
Con él un pesar!"


José de Espronceda, "El Diablo Mundo", in El Diablo Mundo. El Pelayo. Poesías, 2ª ed., ed. Domingos Yndurain, Madrid: Cátedra, 1992, pp. 326-327.

Wednesday, December 29, 2010

UMA VOZ



"Verdad, te buscamos,
Osamos subir
Al último cielo
Volando tras ti,
Con noble avaricia
Y ansia sin fin
De ver cuanto ha sido
Y está por venir."


José de Espronceda, "El Diablo Mundo", in El Diablo Mundo. El Pelayo. Poesías, 2ª ed., ed. Domingos Yndurain, Madrid: Cátedra, 1992, p. 326.

Sunday, December 26, 2010

ANGELORUM CHORUS CANEBAT



"Ai!, um mortal, ai!, com pressa e saudade,
assalta o seu trabalho no ventre subjugado;
mas o grande amplexo, que ele não enche,
para Deus estava preparado."


Rainer Maria Rilke, Poemas, trad. Paulo Quintela, 5ª ed., Porto: Edições Asa, 2003, p. 286.

Friday, December 24, 2010

SINE LABE ORIGINALI


"Andando ele a pensar nisto, eis que um Anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos, e lhe disse: «José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho e pôr-Lhe-ás o nome de Jesus; porque Ele salvará o povo dos seus pecados.
Tudo isto sucedeu para que se cumprisse o que foi dito pelo senhor e anunciado pelo profeta: « Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho; e chamá-Lo-ão Emmanuel que quer dizer: «Deus connosco». Despertando José do sono, fez como lhe ordenou o anjo do Senhor e recebeu sua mulher. E, sem que a tivesse conhecido, ela deu à luz um filho, ao qual ele pôs o nome de Jesus."

Mat 2, 20-25

Thursday, December 23, 2010

HOJE ESTÁ FRIO



"Revelar o meu segredo? Não, por certo;
Talvez, quem sabe, um dia em breve.
Mas hoje não; tombou geada e neve.
Se a curiosidade te hei desperto
E, sem pudor o que queres ouvir, pois bem:
O segredo é meu, não conto a ninguém.

Talvez nem haja nada que contar:
Imagina afinal não há segredo,
Era só a brincar.
Hoje está frio, é um dia azedo
Em que faz falta uma roupa abafada,
Um xaile e mantas que nos aqueçam;
Não posso abrir a todos quanto peçam,
Deixar o vento entrar-me de rajada,
Rodear-me, cercar-me,
Aturdir-me, assustar-me,
Enregelar-me sob este disfarce
Que me aconchega;
Pois quem quer desnudar-se
Ao vento frio que o há-de fustigar?
Não me fustigarias? Obrigada,
Mas deixa essa verdade inda velada."


Christina Rossetti, O Mercado dos Duendes e outros poemas, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2001, p. 81.

Tuesday, December 21, 2010

A BIRTHDAY


"Meu coração é um pássaro cantante
Cujo ninho é um rebento orvalhado;
Meu coração é uma macieira
Vergando o tronco de frutos pesado;
Meu coração é um búzio irisado
Vogando na corrente com langor;
Meu coração mais que tudo se alegra
Porque a meus braços chegou meu amor.

Dai-me um dossel tingido de cor roxa;
De seda debruada de mil folhos;
Bordai nele romãs, pombos alados,
Pavões com caudas de mais de cem olhos;
Ornai-o de uvas, de rubis e prata,
Folhas douradas, pomares em flor;
Porque hoje é dia que nasce m'nha vida,
Hoje a meus braços chegou meu amor."


Christina Rossetti, O Mercado dos Duendes e outros poemas, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2001, p. 69.

Monday, December 20, 2010

RODIN EM ROMÂNICO?



"Primeiro é um alvor trémulo e vago,
risco de inquieta luz que corta o mar;
depois faísca e aumenta, dilatando-se
em ardente explosão de claridade.

O cintilante lume é a alegria;
a temerosa sombra é o pesar.
Ai, nesta escura noite da minha alma,
- quando amanhecerá?"


Gustavo Adolfo Bécquer, Rimas, trad. José Bento, Lisboa: Relógio D'Água, 1994, p. 131.

Sunday, December 19, 2010

O QUE ELE NÃO TERÁ DITO


"Ele não disse: sede
criadores

Ele disse: servi
a fé

Tão pouca é a sua fé
na criação"


Reiner Kunze, Poemas, trad. Luz Videira e Renato Correia, Porto: Paisagem Editora, 1984, p. 137.

Saturday, December 18, 2010

BELEZA DE ESCURIDÃO



"Tu não deves, disse a coruja ao galo silvestre,
tu não deves cantar o sol
O sol não é importante

O galo silvestre tirou
o sol do seu poema

Tu és um artista,
disse a coruja ao galo silvestre

E foi uma beleza de escuridão"


Reiner Kunze, Poemas, trad. Luz Videira e Renato Correia, Porto: Paisagem Editora, 1984, p. 29.

Thursday, December 16, 2010

ORAÇÃO DEVOTA



"Dos homens pequeninos,
libera nos Domine.

Dos homens pequeninos que são poetas
libera nos Domine.

Dos homens pequeninos que são poetas e críticos
libera nos Domine.

(Devia ser proibido que alguém,
pretendendo-se a poeta e crítico,
tivesse menos de 10 cm da altura média
da raça a que pertença)."


Jorge de Sena, Dedicácias, 2ª ed., Lisboa: Guerra e Paz, 2010, p. 27.

Wednesday, December 15, 2010

VERDADES



"Os santos esculpidos tiveram muito maior influência no mundo do que os santos vivos."


Lichtenberg, Aforismos, trad. João da Fonseca Amaral, Lisboa: Estampa, 1974, p. 19.

Tuesday, December 14, 2010

REBENTAÇÃO



"São outras as paisagens quando alguém
as vê pela janela do seu próprio coração ou quando
com esse coração
a própria estrada está comprometida."


Luís Miguel Nava, "Rebentação", in Poesia Completa, org. Gastão Cruz, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 127.

Sunday, December 12, 2010

A VERDADE



"Pois quem não sente bater o coração, nem de tristeza, nem de alegria, não pode ser considerado um verdadeiro ser humano."


Selma Lagerlöf, O Imperador de Portugal, trad. Esther de Lemos, Lisboa: Ulisseia, 2006, p. 11.

Saturday, December 11, 2010

À FORMA



"A Forma não se agarra fotograficamente:
é entre as mentiras
a que menos mente.
Seria falta de respeito pô-la de lado,
ou pedantismo, ou cultivada ignorância.

Porque a Forma não habita as viscosas vísceras,
Não nasce de um semítico (e não somítico!)
clamor,
nem de uma raiva
contra as ditas cujas convenções
literárias ou sociais
mas começa a partir dos abanões da atenção
quando estamos sentados num ócio moderno
e tocamos com os lábios o café forte
e a língua se torna escura como a morte.

Como não ressurgem os espelhos
que mostram a saliva acastanhando-se
só a chávena se torna evidente no seu vazio lacado
com a borra inútil e muita do café turco.

A Forma vem depois das definições:
essa idade pré-histórica de conceitos
onde os sentidos são dinossáurios escorreitos
e se camuflam de acordo com os "hiperescópicos" comentadores
fazendo derivar qualquer coisa do seu inconsequente anseio.

A Forma, meus caros, é a cristalização do entusiasmo,
é a ninfa sorrindo nas ondas atapetadas de azul,
é a casa pensada nocturnamente
como uma varanda sobre o mar apaziguado,
aplainado,
liso,
cool,
cortado obliquamente pelo sulco de um navio."


Pedro Proença, O Homem Batata, Lisboa: Parque das Nações, 2000, pp. 156-158.

Thursday, December 9, 2010

AUTOBIOGRAFIA ?



"E eu fico abandonada
na cerca de gelo ferida.

Inda a neve me não pôs
nos olhos a sua venda.

Agarram-se a mim os mortos,
Nenhuma voz me nomeia.

Ninguém me ama, nem por mim
acendeu uma candeia."


Ingeborg Bachmann, O Tempo Aprazado, trad. João Barrento e Judite Berkhemeier, Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, p. 85.

Wednesday, December 8, 2010

DOS NEGÓCIOS E SUAS CONTRAPARTIDAS



" EU (sentindo um vento extremamente glacial): - Como? Isso é novo para mim. Que significa essa cláusula?
ELE: - Significa renúncia, e nada mais. Pensas, acaso, que os ciúmes têm o seu domicílio somente nas alturas, e não nas profundezas também? Tu, ó distinta e bem-feita criatura, prometeste-te e uniste-te a nós. Não te será permitido amar.
EU (rindo-me involuntariamente): - Não amar? Ó pobre Diabo! Queres então justificar realmente a tua reputação de burrice e pendurar ao teu pescoço um chocalho, como se fosses um gato? Como é possível que tenciones basear negócios e promessas num conceito tão maleável e capcioso como é... o amor? Desejará o Diabo proibir a volúpia? Caso contrário, deverá aceitar em troca a simpatia e até mesmo a caritas, sob pena de ser burlado, como está escrito no Livro. Aquilo que apanhei e que, segundo afirmas, faz com que me tenha prometido a ti - de que, dize-me, deriva aquilo, a não ser do amor, ainda que este haja sido envenenado por ti, com a licença que Deus te outorgou? A aliança que nos liga, se é que te devo crer, tem, ela mesma nexo com o amor, imbecil que és! Pretendes que eu consinta e que me encaminhe para o bosque, para a encruzilhada das quatro veredas, em prol da minha obra. Mas assevera-se que a própria obra anda ligada ao amor.
ELE (proferindo uma risada nasal): - Dó, ré, mi! Podes ter a certeza de que as tuas fintas psicológicas não produzem sobre mim maior efeito do que as teológicas! Psicologia? Por amor de Deus! Ainda acreditas nela? Mas isso é a mais execrável mentalidade burguesa do século XIX! A nossa época está saturada dela até aqui. Em breve esse modo de pensar provocará apenas a sua raiva, e quem incomodar a vida, introduzindo nela a psicologia, vai simplesmente levar uma pancada na cabeça. Nós entrámos num período, meu caro, que não quer ser importunado pela psicologia... Isto, só de passagem. A minha condição era clara e correcta, determinada pelo legítimo zelo do Inferno. O amor fica-te proibido, porque queima. A tua vida deve ser frígida, e, portanto, não tens o direito de amar pessoa alguma."


Thomas Mann, Doutor Fausto, trad. Herbert Caro, 4ª edição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, pp. 337-338.

Tuesday, December 7, 2010

EM SHANGRI-LA



" - A gema tem facetas - disse o chinês -, e é possível que muitas religiões sejam moderadamente verdadeiras.
- Concordo com isso - declarou Bernard, entusiasmado. - Nunca acreditei em zelos sectários. Chang, você é um filósofo, não me quero esquecer dessa sua observação. «Muitas religiões são moderadamente verdadeiras.» Vocês lá de cima da montanha devem ser um grupo de tipos sensatos, para terem-no descoberto. E têm razão, estou absolutamente certo disso.
- Mas nós - respondeu Chang, sonhador - estamos apenas moderadamente certos."


James Hilton, Horizonte Perdido, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1986, p. 81.

Monday, December 6, 2010

AVISOS À NAVEGAÇÃO 4



"- É o que me faz ter piedade de vós - diz-lhe então Dom Pedro.
- E porquê? - perguntou Dom Rodrigo.
- Porque uma mulher inteligente vos engana mais cedo ou mais tarde - respondeu Dom Pedro. - Sabeis - acrescentou -, pelo relato que vos fiz das minhas aventuras, como fui defraudado e juro-vos que se encontrasse uma mulher tão estúpida como sei que as há inteligentes, daria largas por ela tudo o que sei de galantaria e preferi-la-ia à própria sensatez, quisesse ela escolher-me para seu namorado."


Paul Scarron, Precaução Inútil, trad. Honório Marques, Lisboa: Teorema, 2004, p. 15.

Sunday, December 5, 2010

SOB AS OLIVEIRAS


"Eu tinha então nove anos, tinha pneumonia e era Domingo de Ramos.
«Que queres que te traga, Musia, da festa de Ramos?» - a minha mãe já vestida para sair rodeada assimetricamente - por um lado Andriucha com a sua nova capa do colégio que o fazia ver-se maior ainda e por outro Asia, com o meu casaco do ano anterior, que a ela chegava até aos pés e a tornava ainda mais pequena. «Um diabo numa garrafa!» - disse imediatamente, com a mesma impetuosidade com que o Diabo havia saído da garrafa. «Um diabo? - surpreendeu-se a minha mãe -, e não um livro? Ali também os vendem, há lojas inteiras com eles. Por dez copeques podem-se comprar até cinco livritos sobre a defesa de Sebastópolis, por exemplo, ou sobre Pedro, o Grande. Pensa nisso.» - «Não, mesmo assim... um diabo...» - disse, em voz muito baixa, com dificuldade e vergonha. - «Bom, se queres um diabo trago-te um diabo.» - «Eu também quero um diabo!» - disse imediatamente a minha eterna imitadora Asia. - Não, não terás nenhum diabo!» - repliquei eu em voz baixa e ameaçadora. «Mamã! Ela diz que eu não vou ter nenhum diabo!» - «Bom, claro que não... - disse a mamã -. Em primeiro lugar, Musia disse primeiro, em segundo, para quê comprar duas vezes a mesma coisa e ainda por cima uma tontice dessas? De qualquer maneira, vai partir-se.» - «Mas eu não quero um livro sobre Pedro, o Grande! - começou a guinchar Asia -. Também se partirá!»"


Marina Tsvietaieva, O Diabo, trad. Manuel Dias, Lisboa: Relógio D'Água, 1994, pp. 51-52.

Saturday, December 4, 2010

NOVA DEMONOLOGIA


"«Isso mesmo... Mas é engraçado, filho, que tu tenhas acertado com certas coisas que estou certa que nunca te contei. É claro, não tem importância nenhuma... Que coisas curiosas que são os sonhos! Como é que se pode arranjar assim uma história, em que há coisas verdadeiras - e que a própria pessoa não podia adivinhar - e tantos grandes disparates, como o comboio e a ponte e o subterrâneo?»

Ingrata humanidade! Assim se agradeceu ao Diabo!"



Fernando Pessoa, A Hora do Diabo, ed. Teresa Rita Lopes, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 66.

Friday, December 3, 2010

DA TENTAÇÃO, QUE PODIA SER DE PESSOA



"EU: - Então quereis vender-me tempo?
ELE : - Tempo? Unicamente algum tempo? Não, meu caro, não é só com esse artigo que o Diabo faz negócios. Só ele não nos faria merecer o preço do fim que será nosso. O que importa é a espécie de tempo que se fornece! Um tempo grandioso, um tempo louco, um tempo totalmente endiabrado, com fases de júbilo e de folia, mas também, como é natural, com períodos um tanto miseráveis ou mesmo inteiramente miseráveis. Não tento negá-lo e até o realço orgulhosamente; pois é assim que deve ser, de acordo com a natureza e a mentalidade dos artistas, que, como se sabe, tendem a exceder-se em ambas as direcções, e para os quais é perfeitamente normal ultrapassarem um pouco os limites. Na sua vida, o pêndulo vai ininterruptamente de cá para lá, entre a exuberância e a melancolia. Esse vaivém é comum; é, por assim dizer, ainda burguesmente moderado à maneira dos nuremberguenses, em comparação com aquilo que nós propiciamos. Pois, nesse género, oferecemos o máximo: proporcionamos enlevos e iluminações, experiências de desembaraço e desregramento, de liberdade, segurança, facilidade, sensações de poder e triunfo, que fazem o nosso homem perder a fé nos seus próprios sentidos e ainda lhe proporcionam uma admiração colossal pelas suas próprias realizações, que até pode induzi-lo a renunciar de bom grado a qualquer estima que venha de outros e de fora, sob o frémito do narcisismo e até mesmo o delicioso horror a si, cujo efeito o leva a considerar-se porta-voz da Graça e monstro divino. E, do outro lado, há de vez em quando descidas igualmente profundas, igualmente gloriosas, não só a vácuos e ermos e impotentes desolações, mas, também a dores e enjoos. Esses são, aliás, males familiares, que sempre existiram e pertencem à índole da gente; apenas se intensificam notavelmente em virtude da iluminação e da já mencionada embriaguez. São dores que se aceitam com prazer e orgulho em troca de enorme gozo, dores que conhecemos dos contos de fada, as dores da Pequena Sereia, à qual parecia que facas afiadas lhe feriam as belas pernas humanas, adquiridas, após ter entregue o seu rabo de peixe. Conheces a Pequena Sereia, de Andersen, não é verdade? Ela poderia ser uma boa amante para ti. É só pedir, e meto-a já na tua cama.
EU: - Será que não te podes calar, animal cretino?"


Thomas Mann, Doutor Fausto, trad. Herbert Caro, 4ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, pp. 313-314.

Thursday, December 2, 2010

DA PROFUNDA CRUELDADE HUMANA



"Clarice Lispector,
a senhora não devia
ter-se esquecido
de dar de comer aos peixes
andar entretida
a escrever um texto
não é desculpa
entre um peixe vivo
e um texto
escolhe-se sempre o peixe
vão-se os textos
fiquem os peixes
como disse Santo António
aos textos"


Adília Lopes, "Clube da Poetisa Morta", in Caras Baratas - Antologia , selecç. Elfriede Englemayer, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 126.

Wednesday, December 1, 2010

EM DEZEMBRO TREME DE FRIO CADA MEMBRO



"Ainda há pouco prometiam o vento
para amanhã; e a chuva, que vem com o vento,
pode vir também amanhã, quando o céu carregado
de nuvens atravessar o continente, em
direcção não sei aonde. E onde irei eu
estar, amanhã, quando essas nuvens tiverem
desaparecido, e só as árvores
com os ramos partidos lembrarem que o
vento lhes roubou as folhas? É possível que
eu possa vir a estar entre essas folhas,
ou debaixo delas, espessas com a humidade
da terra, como se fossem um manto; mas
não sei se era isso que o vento me queria dizer
quando me falava, por entre as frinchas da
porta, e só os ruídos secretos da noite
lhe respondiam. Talvez por isso, deixei-me
ficar acordado. Nem sempre se podem ouvir
esses diálogos; nem adivinhar, na manhã
futura, o destino previsível de um ser."


Nuno Júdice, Meditação sobre ruínas, 3ª ed., Lisboa: Quetzal Editores, 1999, p. 93.

Tuesday, November 30, 2010

BALANÇO DO MÊS 11


"Não falles alto, que isto aqui é vida -
Vida e consciência d'ella,
Porque a noite avança, estou cansado, não durmo,
E, se chego á janella,
Vejo, sob as palpebras da besta, os muitos logares das estrellas...
Cansei o dia com esperanças de dormir de noite,
É noite quasi outro dia. Tenho somno. Não durmo.
Sinto-me toda a humanidade atravez do cansaço -
Um cansaço que quasi me faz carne os ossos...
Somos todos aquillo...
Bamboleamos, moscas, com asas presas,
No mundo, teia de aranha sobre o abysmo."


Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), Vida e Obras do Engenheiro, ed. Teresa Rita Lopes, 2ª ed., Lisboa: Estampa, 1992, p. 82.

Sunday, November 28, 2010

ONDE ADORMECEM AS AVES, MUROS



"Dormis onde adormecem as aves:
abrigos de sóis empalidecidos
sob céus amplos como velhas naves
vogando num reflexo de lagos esquecidos;

num sono fugitivo como a corça
que o próprio vento amedronta
quando, soprando sem força,
o arbusto dobra na ponta.

Num espasmo de breve sobressalto
os corpos estremecem: velas
empurradas para o mar alto

num impulso branco de telas
que o pintor olhou, sem ver nelas
mais do que um brusco bater de janelas.


Nuno Júdice, Meditação sobre Ruínas, 3ª ed., Lisboa: Quetzal Editores, 1999, p. 80.

Saturday, November 27, 2010

WARUM BIST DU SO KURZ?



"Porque és tão breve? Pois não amas então
Já o canto? Quando jovem, nunca achavas,
Nos dias da esperança,
O fim, quando cantavas!

Como a ventura é a canção. - Se queres banhar-te
Alegre no sol da tarde, eis que ele desaparece,
A terra é fria, e a ave nocturna
Esvoaça importuna ante teus olhos."


Friedrich Hölderlin, Poemas, trad. Paulo Quintela, Lisboa: Relógio D'Água, 1991, p. 73.

Friday, November 26, 2010

COISAS QUE DURAM POUCO



" A história chama-se «A Rosa». «A Rosa era feliz. Vivia em harmonia com as outras flores. Um dia, a Rosa sentiu-se murchar e estava quase a morrer. Viu uma flor de papel e disse-lhe: "Que bela rosa és tu" - "Mas eu sou uma flor de papel" - "E tu sabes que eu estou a morrer?" - A Rosa então morreu e não voltou a dizer mais nada.»
Esta história tão breve, que diz quase tudo o que se pode dizer sobre a ternura da vida e a dor insuportável da morte, recorda-nos que as coisas duram um pouco mais do que a vida mas estão também destinadas a desaparecer e que, perante a dor da morte, faz pouco sentido celebrar o autêntico contra o artificial. Somos fiéis às lágrimas das coisas vivas quando ouvimos o seu choro, o seu desejo de durarem um pouco mais, pelo menos como as coisas fictícias, como as colunas dóricas deste Walhalle postiço."


Claudio Magris, Danúbio, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Quetzal, 2010, pp. 128-129.

Thursday, November 25, 2010

SE É UMA PORTA



"Os Irmãos:

A nossa irmã é pequena,
ainda não tem seios.
Que faremos nós à nossa irmã
no dia em que for pedida (em casamento)?
Se ela é um muro,
edificaremos sobre ela ameias de prata.
Se é uma porta,
fechá-la-emos com batentes de cedro."

Cant. 8, 8-9.

Wednesday, November 24, 2010

AO OLHO DE DEUS 2


"Sempre o meio é mais fundo, o grito no meio confia no fim, sobre verde-]
muco seco,
o corpo canibalesco fica
inundado por outro corpo, gosta de ver
o medo perto, muitas vezes, uma forma parecida
entrar por ele e levantar
ângulos novos, cantos, o exagero dos pontos -
outros bicos sopram para lá da boca. Deus soube olhar para a carne
quando as pedras abriam
a cabeça. O que está mais perto desta terra são as mãos e o resto do corpo
cortado."


António Madureira Rodrigues, A Potência do Meio dos Nós, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2009, p. 38.

Tuesday, November 23, 2010

AO OLHO DE DEUS 1



"Se até vós subir o movimento das águas,
querereis um com o outro vos banhar?
- E se até vós subir o movimento da morte,
querereis um com o outro vos banhar?"


"Canção Indonésia", in Herberto Helder, O Bebedor Nocturno, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 148.

Monday, November 22, 2010

DA FÉ, PENSANDO TAMBÉM EM HENRY MOORE



"Não é necessária fé em Deus, basta a fé nas coisas criadas, que consente que nos movamos entre os objectos persuadidos de que eles existem, convencidos da irrefutável realidade da cadeira, do guarda-chuva, do cigarro, da amizade. Quem duvida de si próprio está perdido, como quem, temendo não conseguir fazer amor, não consegue. Somos felizes junto das pessoas que nos fazem sentir a indubitável presença do mundo, do mesmo modo que um corpo amado nos dá a certeza desses ombros, desse seio, dessa curva dos flancos e da sua onda que nos sustenta como um mar. E quem não tem fé, ensina Singer, pode comportar-se como se acreditasse; a fé virá depois."


Claudio Magris, Danúbio, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Quetzal, 2010, p. 70.

Sunday, November 21, 2010

NASCEMOS PARA O SONO



"Nascemos para o sono,
nascemos para o sonho.
Não foi para viver que viemos sobre a terra.
Breve apenas seremos erva que reverdece:
verdes os corações e as pétalas estendidas.
Porque o corpo é uma flor muito fresca e mortal."


"Poesia Mexicana do ciclo Nauatle", in Herberto Helder, O Bebedor Nocturno - poemas mudados para português, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 65.

Saturday, November 20, 2010

A REGIÃO DAS SEMENTES HÚMIDAS



"Ireis à região das piteiras selvagens,
para colher os cactos e as piteiras selvagens,
para erguer uma casa de piteiras selvagens.

Ireis à região onde é a raiz da luz,
para atirar os dardos:
águia amarela, tigre amarelo, serpente amarela,
coelho amarelo, veado amarelo.

Ireis à região onde é a raiz da morte,
para atirar os dardos:
águia azul, tigre azul, serpente azul,
coelho azul, veado azul.

Ireis à região das sementes húmidas
para atirar os dardos sobre a terra florida:
águia branca, tigre branco, serpente branca,
coelho branco, veado branco.

Ireis à região dos espinheiros bravos,
para atirar os dardos sobre a terra violenta:
águia vermelha, tigre vermelho, serpente vermelha,
coelho vermelho, veado vermelho.

E depois de atirar os dardos e atingir os deuses,
o amarelo, o azul, o branco, o vermelho,
águia, tigre, serpente, coelho, veado -
colocai sob a sua protecção
os veladores do deus antigo - o deus do tempo."


"Canto de Itzpapaloltl", in Herberto Helder, O Bebedor Nocturno - poemas mudados para português, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, pp. 62-63.

Friday, November 19, 2010

AVISOS À NAVEGAÇÃO 3


"- Acha - disse eu em seguida - que nunca vai confiar plenamente em mim?
Ela virou-se a sorrir, mas não deu qualquer resposta, apenas continuou a sorrir para mim.
- Não vai responder? - disse eu. - Não pode responder amigavelmente. Eu não devia ter perguntado.
- Fez muito bem em perguntar-me isso, ou qualquer outra coisa. Não sabe como é querida por mim ou não pode imaginar nenhum segredo grande de mais para saber. Mas estou sob juramento, nenhuma freira faria um voto tão terrível e não ouso contar a minha história ainda, até mesmo para si. Está muito perto o tempo quando deverá saber de tudo. Acha que sou cruel, muito egoísta, mas o amor é sempre egoísta; quanto mais ardente, mais egoísta. O quanto sou ciumenta não pode imaginar. Deve vir comigo, amar-me à morte ou então odiar-me e ainda vir comigo. E odiar-me na morte e depois. Não existe a palavra indiferença na minha apática natureza.
- Agora, Carmilla, vai falar com seu extravagante disparate novamente? - disse eu apressadamente."


Sheridan Le Fanu, Carmilla, trad. Mafalda Silva, Lisboa: QuidNovi, 2010, p. 45.

Thursday, November 18, 2010

AVISOS À NAVEGAÇÃO 2



"Um quadrado de céu estrelado, onde se desvaneciam nuvens azuladas, dominava o pátio branco. Todo um andar brilhava iluminado pela Lua e o resto repousava numa sombra confidencial.
Concha estendeu-se à oriental numa esteira. Sentei-me junto dela e ela pegou-me na mão.
- Meu amigo - disse-me ela -, amar-me-á?
-Que pergunta!
- Durante quanto tempo me amará?
Receio estas perguntas que todas as mulheres fazem e a que não se pode responder senão com as piores banalidades."


Pierre Louÿs, Um Obscuro Objecto de Desejo, Lisboa: Bico de Pena, 2009, p. 66.

Wednesday, November 17, 2010

AVISOS À NAVEGAÇÃO 1



"Nunca ela usara aquele tom, tão comovido e tão simples, para me dirigir a palavra. Julguei ter finalmente libertado a sua verdadeira alma irónica e orgulhosa que ma havia ocultado durante tanto tempo, e uma nova vida se abriu à minha convalescença moral.
(Conhece, no museu de Madrid, uma singular tela de Goya, a primeira à esquerda ao entrar na sala do primeiro andar? Quatro mulheres com saias espanholas, na relva do jardim, estendem um xaile pelas quatro pontas e nele fazem saltar, a rir, um fantoche do tamanho de um homem...)
Em resumo, voltamos a Sevilha.
Ela retomara a sua voz trocista e o seu sorriso particular: mas eu já não me sentia inquieto. Há um provérbio espanhol que diz: «A mulher, como a gata, é de quem cuida dela.» Eu tratava-a tão bem e seria tão feliz se ela se deixasse tratar!"

Pierre Louÿs, Um Obscuro Objecto de Desejo, Lisboa: Bico de Pena, 2009, p. 92.

Tuesday, November 16, 2010

VARIANTES, VARIAÇÕES



"Não há palavras que digam o mistério
Das trevas e da luz em diagonal"


Alberto de Lacerda, Oferenda I, Lisboa: IN-CM, 1984, p. 173.

Monday, November 15, 2010

GÉNERO FEMININO, NÚMERO PLURAL



" Calou-se um instante, depois prosseguiu em tom de conselho:
- Ah! Senhor! - disse. - Tenha cuidado com as mulheres! Não direi que fuja delas, pois gastei a minha vida com elas e, se pudesse voltar atrás, as horas que assim passei estão entre as que desejaria reviver. Mas tenha cuidado, tenha cuidado com elas!
E como se tivesse encontrado uma expressão para o seu pensamento, don Mateo acrescentou mais lentamente:
- Há duas espécies de mulheres que se deve, a todo o custo, evitar conhecer: primeiro, as que não nos amam, e depois as que nos amam. Entre estes dois extremos, há milhares de mulheres encantadoras, mas não sabemos apreciá-las."


Pierre Louÿs, Um Obscuro Objecto de Desejo, trad. Ana Moura, Lisboa: Bico de Pena, 2009, p. 29.

Sunday, November 14, 2010

PUMPKINS WITHOUT A ROOF



"- De qualquer modo - disse o Apostador, depois de muito instado a responder. - O estado natural entre duas pessoas que se desejam é a discussão. O segundo irmão Jade chega ao ponto de chamar gorda à irmãzinha Lin, o que a põe furiosa, como se fosse uma briga de hoje. Que maravilha! "Tão gorda como a favorita Yang!" O presidente Clinton não arranjava melhor para dizer à sua descarada e encantadora menina Lewinsky. Mas desejar uma mulher é vergonhoso, não há evasiva, é só um acto carnal. Enquanto que amar e desejar um homem está aberto a todas as contradições: a guerra, a governação, a ciência, a filosofia, os negócios e por aí adiante. Até a arte culinária e a moda.
- É uma indirecta?
- Não, não - disse, apressadamente, o Apostador. E pensou: «Que quer ele, com esta conversa?»"


Agustina Bessa-Luís, A Quinta Essência, 3ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1999, p. 355.

Saturday, November 13, 2010

VENTO NORTE



"Da tua dor faz um caudal de espuma
para que no mar somente permaneça
a água."


Alberto de Lacerda, Oferenda I, Lisboa: IN-CM, 1984, p. 27.

Friday, November 12, 2010

DIFÍCIL É ESPERAR



"Difícil é esperar
quando sabemos
nada haver a esperar.

O eco de uma lágrima não basta
para dar vento à sementeira."


Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 44.

Thursday, November 11, 2010

FÁBRICA DE NUVENS 2



[em "Nota a «Em honra e memória de Howard»"]

"Na primeira estrofe refere-se a divindade indiana Camarupa (weaver of shapes at will = aquela que pode tecer várias formas), aquele ser espiritual que transforma como quer todas as figuras, e que também actua neste nosso domínio, formando ou desfazendo as nuvens.
Na segunda estrofe é da função da imaginação humana que se trata, uma faculdade que, assentando num impulso inato, tende sempre a dar a tudo o que é acidental e amorfo uma qualquer forma necessária. Reconhecemos isso pelo facto de a imaginação gostar de atribuir às nuvens formas de animais, exércitos em luta, fortalezas e coisas semelhantes, como Shakespeare fez também algumas vezes de forma muito feliz. A mesma operação se produz ao contemplarmos muros e paredes com manchas, imaginando então ver aqui e ali, se não figuras definidas, pelo menos imagens deformadas, fragmentadas."


Johann Wolfgang Goethe, O Jogo das Nuvens, selecção e trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p. 83.

Wednesday, November 10, 2010

ET IN ARCADIA EGO 2



"Tão profundo quanto a escuridão eram o silêncio e a quietude. Os rios haviam parado o seu curso, o vento não se movia e até as folhas dos choupos tinham deixado de ondular. Se se estivesse junto ao mar, ver-se-ia que as ondas já não batiam na praia, se se estivesse no deserto, a areia deixaria de ranger debaixo dos pés. Tudo estava petrificado e imóvel, para não perturbar essa santa noite. A erva não ousava crescer, o orvalho não podia cair e as flores não se atreviam a exalar o seu perfume."


Selma Lagerlöf, Os Milagres do Anticristo, trad. Liliete Martins, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2008, p. 9.

Tuesday, November 9, 2010

DO DESTINO AZUL


"Todas as manhãs corria até chegar ao cimo do monte. Queria ser o primeiro a saudar o sol. Abria as janelas e deixava que o primeiro raio de sol se refractasse nas águas adormecidas do meu ser.

Hoje, um artigo de jornal veio lembrar-me que o sol - também ele - um dia se há-de extinguir. E nem o facto de isso só vir a acontecer daqui a alguns milhões de anos conseguiu atenuar a minha dor."

Jorge Sousa Braga, O Poeta Nu [poesia reunida], Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 135.

Monday, November 8, 2010

DA INEXISTÊNCIA, OUTONO


"De novo se desfazem as instâncias do tempo
Da verdade da tua inexistência
atravessas a noite transparente

Os sonhos no outono são cruéis
mas não és um fantasma e o presente
embora falso transformou-se em ti"



Gastão Cruz, As Pedras Negras, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 40.

Sunday, November 7, 2010

CHAMAS


"Do sono matinal jorram palavras
é o poder do dia
Luz vencida

trama solar herança da nocturna
lividez
céu da manhã nublado de apagadas

estrelas, de fantasmas
dá lugar
às chamas imperfeitas

não me detenhas
enquanto o corpo eterno
arde na tarde."


Gastão Cruz, As Pedras Negras, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 24.

Friday, November 5, 2010

OBSERVANDO OS EPÍGONOS DE JOANA VASCONCELOS



"Que essa arte não é feita para o povo? Naturalmente que o não é - nem ela nem nenhuma arte verdadeira. Toda a arte que fica é feita para as aristocracias, para os escóis, que é o que fica na história das sociedades, porque o povo passa, e o seu mister é passar."


Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa: Edições Ática, s.d., p. 161.

Thursday, November 4, 2010

DO PODER



"O mais nobre tipo de beleza é aquele que não arrebata de repente, que não faz ataques impetuosos e raptadores (esse provoca com facilidade o tédio), mas sim aquele que se insinua lentamente, que, quase despercebido, a pessoa traz consigo e, em sonhos, vem mais uma vez ao seu encontro, mas que, por fim, após ter estado muito tempo no nosso coração com toda a modéstia, toma inteiramente posse de nós, enche os nossos olhos de lágrimas, o nosso coração de ânsia. Porque ansiamos nós, à vista da beleza? Por sermos belos: julgamos que muita felicidade deveria estar associada a isso. Mas é um erro."


Friedrich Nietzsche, Humano, Demasiado Humano, trad. Paulo Osório de Castro, Lisboa: Relógio D'Água, 1997, p. 156.