Friday, July 31, 2020

GROTESCO



"Então, o outro enforcado que me puxava a perna esquerda, quis também brincar com as garras. Primeiro fez-me cócegas na planta do pé. A seguir, o monstro arrancou a pele, separou todos os nervos, descarnou-os e quis tocar com eles como se fossem cordas de um instrumento musical. Mas como eu não soltava um som que lhe desse prazer, espetou uma garra na barriga da perna, dedilhou nos tendões e torceu-os como se faz para afinar uma harpa, pondo-se a extrair música da minha perna como se fosse um saltério. Ouvi o seu riso diabólico. Enquanto que a dor me fazia soltar bramidos lancinantes, os uivos do inferno faziam coro. Ao escutar os rugidos dos danados, pareceu-me que cada uma das minhas fibras era esmagada pelos dentes deles. Por fim, perdi os sentidos."


Jan Potocky, Manuscrito de Saragoça, trad. Dórdio Guimarães, Torres Vedras: Tertúlia do Livro, s.d., p. 48. 

Thursday, July 30, 2020

A CRENÇA




"Esta declaração pareceu surpreender o eremita. Acusou-me de estar possuído pelo demónio do orgulho e quis persuadir-me que uma confissão geral me era necessária. Todavia, vendo que a minha obstinação era invencível, abandonou o seu ar apostólico e tornando-se mais natural, inquiriu-me:
- Meu filho, a sua coragem espanta-me. Diga-me, quem sois? Que educação recebestes? Acredita nos fantasmas ou não? Não recuseis em satisfazer a minha curiosidade."


Jan Potocky, Manuscrito de Saragoça, trad. Dórdio Guimarães, Torres Vedras: Tertúlia do Livro, s.d., p. 50.  

Wednesday, July 29, 2020

PARA LÁ DOS LIMITES



"Pessoas para quem, um momento antes, o simples acto de se deslocarem teria semelhado uma tortura, aqui, agarrando-se às suas malas e embrulhos, berravam na bilheteira. Como loucos, invadiam as decadentes carruagens, faziam cerco junto dos degraus e, cobertos de fuligem a ponto de parecerem limpa-chaminés, comprimiam-se em compartimentos divididos por painéis entalhados, que pareciam estar empenados pelo calor, pela violenta linguagem e pelas sacudidelas constantes dos passageiros. As carruagens ardiam, os carris ardiam, até os próprios sinais ardiam, enquanto as locomotivas de longe e de perto emitiam as suas lamentações através dos vapores. Deslizando lentamente por entre ejaculações de vapor, tal um insecto roncando, a pequena locomotiva cuspia o avassalador bafo da sua fornalha aberta, nas faces do maquinista e de encontro ao avental de couro do fogueiro. O mostrador do relógio ardia, as barras de ferro transversais do velocímetro ardiam e os ponteiros ardiam; os vigias ardiam. Tudo estava para lá dos limites da resistência humana. Tudo isto, porém, era suportado."

Bóris Pasternak, Uma aventura em Ferrara, trad. Morgado de Carvalho, Lisboa: Editorial Inquérito, s.d., pp. 20-21. 

Tuesday, July 28, 2020

TESTEMUNHAS




"Esta ideia, de que o «Francisco» poderia vir a falar, divertiu muito a jovem. Lourenço olhou para os grandes olhos verdes do bicho e sentiu um estremecimento percorrer-lhe a pele.
- Aqui tens como ele faria - continuou Teresa -: pôr-se-ia de pé, e, apontando para mim com uma pata, e para ti com a outra, exclamaria: «O senhor e a senhora beijam-se a valer no quarto; e não têm medo de mim, mas como os seus amores criminosos me desagradam, peço-lhe que os mande prender aos dois; não voltarão a perturbar a minha sesta.»
Teresa brincava como uma criança, mimava os modos do gato, estendia as mãos, como se fossem garras, imprimia aos ombros ondulações felinas. «Francisco», sempre numa imobilidade de pedra, continuava a olhar para ela; só os seus olhos pareciam vivos; e tinha, aos cantos do focinho, duas pregas profundas, dir-se-ia que aquela cabeça de animal empalhado ria às gargalhadas."


Émile Zola, Teresa Raquin, trad. João Gaspar Simões, Lisboa: Círculo de Leitores, s.d., p. 59. 

Monday, July 27, 2020

ANJOS





"Porque nunca tiveste heranças
Nunca fizeste alianças 
Neste mundo.

Estás de veias bem abertas.
Vais de puras mãos desertas.

Ao lado vão batedores, 
Invisíveis anjos de aço.
Tu não apressas o Tempo.
Vais a passo, 
Como fores."


Natércia Freire, Liberdade Solar, Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural, s.d., pp. 12-13. 

Sunday, July 26, 2020

BONECOS DE LUZ (em homenagem à Divina Olivia de Havilland)




"Abrindo uma tampa da máquina, o mecânico espreitou lá para dentro... Depois, veio cá fora deitar uma olhadela para o céu...
O gordo tomou aquilo por gracejo e explodiu:
- Parvo! Que tem que ver o ar da noite com o desarranjo da máquina?
- Qual desarranjo! - exclamou o cara triste. - A máquina está boa! O luar é que bate em cheio no lençol e apaga a projcção!
Ao ouvir isto, ninguém ficou sentado no recinto: todos se ergueram de nariz no ar..."


Romeu Correia, Bonecos de Luz, 2.ª ed., Lisboa: Arcádia. 1975, p. 64. 

Saturday, July 25, 2020

PEREGRINO




"Ouve a minha direcção: rosa-dos-ventos seguindo 
encontrarás para ocidente navegador de areias
este lugar.
Não durmas. Faz como a ave à noite durante a viagem
não durmas, corpo, não durmas ao longo da terra. 
Um grande erro não se perdoa. 

Está cansado o vento que encontrou a terra
seu sinal são as árvores mais os pássaros tão a sul."


João Miguel Fernandes Jorge, "Actus Tragicus", in Obra Poética, vol. 4, 2ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 78. 

Friday, July 24, 2020

TUDO ESTÁ CERTO




"Carlos Bruno encheu enfim o peito de ar, disse inesperadamente:
- Tudo está certo no mundo. 
Berta olhou. A lua escorria-lhes pelo corpo, vestia-os agora de um branco sem culpas, dissipava-os num frio vapor de lenda. 
- Tudo está no seu lugar. O que amo, Berta, merece bem o meu amor. E o que odeio merece bem o meu ódio."


Vergílio Ferreira, Mudança, Lisboa: Círculo de Leitores, 1988, p. 8. 

Thursday, July 23, 2020

REVOLTA




"O que fará Deus com esse fluxo de anátemas
Que não pára de chegar aos seus Serafins?
Como um tirano farto de carne e de vinhos, 
Adormece ao doce som das nossas blasfémias.

Os soluços de mártires e flagelados
Só podem ser inebriante sinfonia, 
Pois, malgrado o sangue que lhes custa a volúpia, 
Deles ainda não se cansaram os céus!"


Charles Baudelaire, As Flores do Mal, trad. João Moita, Lisboa: Relógio D'Água, 2020, p. 265. 

Wednesday, July 22, 2020

AS LÍMPIDAS CORES




"Não queiras muitas coisas. Olha para as mãos
e vê tudo o que elas podem conter ser estão vazias. 
Há muito que esperam o gesto de uma oferenda, a que chega 
para que se tornem mais amplas ou possam receber
as límpidas cores, os vestígios onde se conhecia
o sulco mais estreito que as vinha separar
até que sejam apenas tuas as margens deste rio
que se tornou maior e assim encontra o nada."


Fernando Guimarães, Lições de Trevas, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 44. 

Tuesday, July 21, 2020

CANTO




" - Mas de guerra sabem muito! Uma vez, ouvimos até um canto que, a princípio, considerámos uma provocação - disse o general- Mas um velho canto, aliás, um canto de amor. 
- Ah, sim? - indagou o outro, num tom indiferente. 
- A letra era mais ou menos esta: «Oh, tu, linda Hanko, que és bela como o dia, não te passeies entre os túmulos, pois vais ressuscitar os mortos.»
- Bem, bem! - comentou o general de divisão."


Ismaïl Kadaré, O General do Exército Morto, trad. Artur Lopes Cardoso, Porto: Sextante/Porto Editora, 2020, p. 270. 

Monday, July 20, 2020

NESSES VELHOS SEPULCROS





"Surge a luz da alvorada. Pudessem
Dessas campas geladas que vejo 
Os bons monges dos tempos antigos
Surgir vivos à voz de um desejo!

E que ao longo das vastas arcadas
Se escutassem seus passos serenos, 
Como se ouve o tranquilo regato
Sussurrar nestes campos amenos!

Quem então não curvara ante o velho?
Quem a bênção da mão descarnada, 
Como a bênção do céu, não pedira
Da virtude ao poder confiada?

Quem ousara soltar no deserto
Estridente clangor da trombeta, 
E fazer cintilar pela noite
A cruel decisiva baioneta?

Quem ousara o sorriso do insulto
Junto ao negro edifício soltar, 
E com gozo, na mente, por terra
Suas grimpas jazendo pintar?

Mas há muito que os bons se finaram; 
Mas há muito que às dores fugiram.
E depois, nesses velhos sepulcros
Quantos maus inquietos dormiram!

Quem o sabe? Quais foram? Seus nomes
Pereceram: ninguém o dirá.
O que o sabe os julgou: e do abismo
Nem um ai o cantor tirará."


Alexandre Herculano, Poesias, Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, p. 189. 

Sunday, July 19, 2020

AO ACASO



" - Eles próprios o confessaram, procuram ao acaso. 
- Se são capazes de fazer isso, não poderemos considerá-los representantes governamentais encarregados de uma missão. Não passam de simples aventureiros - disse o general, encolerizado. 
- E o mais grave é que os restos que recolhem são imediatamente expedidos - acrescentou o perito. 
- Quer dizer com isso qu não poderemos recuperar estes onze?
- Será difícil, se as cinzas já tiverem sido expedidas. 
- Ou seja, os restos mortais dos nossos soldados serão distribuídos por famílias estrangeiras, em vez de serem entregues às suas próprias famílias! - exclamou o general. - É de enlouquecer!
- Há que acreditar que assumiram compromissos - disse o padre - Deve ser por isso que se apressam tanto a expedir as cinzas que recolhem."


Ismaïl Kadaré, O General do Exército Morto, trad. Artur Lopes Cardoso, Porto: Sextante/Porto Editora, 2020, p. 170. 

Saturday, July 18, 2020

TRÁGICO




"O general observava a paisagem sombria mergulhado no nevoeiro, os flancos despidos das montanhas e a abundância de pedras de todas as dimensões que cobriam o solo. Sentiu-se invadido por uma profunda tristeza. Havia uma semana que não viam senão essas vertentes rochosas. Parecia-lhe que, na sua nudez selvagem, ocultavam um segredo terrível. 
- É um país trágico - disse. - Os seus trajes têm também algo de trágico. Olhe para aquelas capotes negras e para as saias das mulheres. 
- Que diria se ouvisse os seus cantos? Ainda são mais lúgubres. Tem que ver com o destino do país. Não há um povo que tenha conhecido, ao longo dos séculos, um destino mais triste. É a isso que se devem esta rudeza e esta severidade. 
- Não têm canções alegres?
- Não. Muito poucas."


Ismaïl Kadaré, O General do Exército Morto, trad. Artur Lopes Cardoso, Porto: Sextante/Porto Editora, 2020, p. 49. 

Friday, July 17, 2020

ARTE ROMÂNICA




"Não atiremos areia para os olhos 
O automóvel é uma cadeira de rodas
O leão é feito de cordeiros
Os poetas não têm biografia
A morte é um hábito colectivo
As crianças nasceram para ser felizes
A realidade tende a desaparecer
Fornicar é um acto diabólico
Deus é bom amigo dos pobres"


Nicanor Parra, Acho que Vou Morrer de Poesia, sel. e trad. Miguel Filipe Mochila, Lisboa: Língua Morta, 2019, p. 81. 

Thursday, July 16, 2020

AS VINGANÇAS




"E têm vinganças terríveis!
Semeiam coisas horríveis, 
Que nascem logo do chão...
Línguas de fogo, que estalam!
Sapos com asas, que falam!
Um anão preto! um dragão!

Ou deitam sortes na gente...
O nariz faz-se serpente, 
A dar pulos, a crescer...
É-se morcego ou veado...
E anda-se assim encantado, 
Enquanto a fada quiser!"


Antero de Quental, Tesouro Poético da Infância, Lisboa: Ed. de Couto Martins, 1943, pp. 69-70. 

Wednesday, July 15, 2020

ANIVERSÁRIO




"1

Consomes-te, não podes apagar-te
Com o bater da mão sobre o teu peito

2

Mineral desde o seu centro em labaredas
Animal tão afastado das nascentes"


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 258. 

Tuesday, July 14, 2020

SUSPENSO



"Contudo, no momento em que estava a levantar voo, Psique agarrou-o pela perna direita com mãos ambas e acompanhou, como desventurado apêndice, a sua elevação nos ares; continuou em suspenso até à região das nuvens, disposta a segui-lo até ao fim do mundo, até que, já exausta, se deixou escorregar para terra."

Apuleio, O burro de ouro, V, 24, 1, trad. Delfim Leão, Lisboa: Cotovia, 2018, p. 126. 

Monday, July 13, 2020

BÊNÇÃOS




"Bem hajas, ó luz do sol, 
Dos órfãos gasalho e manto, 
Imenso, eterno farol
Deste mar largo de pranto!

Bem hajas, água da fonte, 
Que não desprezas ninguém!
Bem haja a urze do monte,
Que é lenha de quem não tem!

Bem hajam rios e relvas, 
Paraíso dos pastores!
Bem hajam aves das selvas, 
Música dos lavradores!

Bem haja o reino dos céus, 
Que aos pobres dás graça e luz!
Bem haja o templo de Deus, 
Que tem sacramento e cruz!

Bem haja o cheiro da flor, 
Que alegra o lidar campestre;
É o regalo do pastor, 
A negra amora silvestre!

Bem haja o repouso à sesta, 
Do lavrador e da enxada; 
E a madressilva modesta, 
Que espreita à beira da estrada!

Triste de quem der um ai
Sem achar eco em ninguém!
Felizes os que têm pai, 
Mimosos os que têm mãe!"

Tomás Ribeiro, in Antero de Quental, Tesouro Poético da Infância, Lisboa: Ed. de Couto Martins, 1943, pp. 17-18. 

Sunday, July 12, 2020

DOMINGO





"É domingo: o burguês deixa os asfaltos, 
Dando o braço à burguesa:
Procura o campo e, ao vê-lo, exclama aos saltos: 
«Ó filha, que lindeza!»

E pasma do verdor febril, romântico, 
Da múrmura floresta;
E a sua longa orelha absorve o cântico
Da passarada em festa. 

Eu que não saio, escondo a gelosia, 
Com negros cortinados, 
E recebo a visita, em pleno dia, 
Dos espectros amados. 

E aquele Amor que eu vi morrer outrora, 
No meu quarto aparece!
Senta-se ao pé de mim, beija-me e chora, 
E treme e desfalece!"


Gonçalves Crespo, Nocturnos, in Obras Completas, 6ª ed., Lisboa: Empresa Literária Fluminense, 1922, pp. 52-53 [ort. atual..].

Saturday, July 11, 2020

MEZINHA





"Ela, contudo, ao ver-me naquele estado, pôs-se a golpear enfurecidamente o rosto com as mãos, enquanto exclamava:
- Arruinei-me por completo;  o nervosismo, a pressa levaram-me a falhar; a semelhança dos boiões induziu-me em erro. Em todo o caso, ainda bem que a mezinha para essa metamorfose é fácil de encontrar: basta mastigares umas rosas para deixares logo esse aspecto de burro e voltares à condição do meu Lúcio. Oxalá tivesse preparado hoje à tarde umas coroas para nós, como costumava fazer, e nem precisarias sequer de ficar à espera uma noite."


Apuleio, O burro de ouro, III, 25, 2-4, trad. Delfim Leão, Lisboa: Cotovia, 2018, p.84. 

Friday, July 10, 2020

HOMEM PETRIFICADO




"Não havia coisa, naquela cidade, que me parecesse de facto ser, ao mirá-la, o que na realidade era, pois supunha que tudo houvesse mudado de figura, por obra de algum sortilégio infernal. Se topava com uma pedra, nela via homens petrificados; se ouvia pássaros a cantar, logo imaginava pessoas com asas; outro tanto acontecia às folhas das árvores que bordejavam a muralha, ou ainda às águas das fontes, onde vislumbrava correntezas a manar de corpos humanos. Já as estátuas e as imagens me pareciam estar prontas a andar, as paredes a falar, os bois e a restante alimária a profetizar; o próprio céu e o disco do sol se preparariam para emitir um oráculo a qualquer momento."

Apuleio, O burro de ouro, II, 3-5, trad. Delfim Leão, Lisboa: Cotovia, 2018, p. 48. 

Thursday, July 9, 2020

CHAVE





"Dizem que fere amor com passadores
e que traz em matar o pensamento, 
mas eu julgo que tem amor de vento
quem cuida haver no mundo tais amores. 

Também dizem que o pintam os Pintores
menino, nu e cego: e tão sem tento, 
que é mais cego e mais nu d'entendimento, 
quem cuida que em amores cabem tais cores. 

Amor é um espírito invisível, 
que entra por onde quer, e abranda o peito
sem cor, ser arco, aljava ou seta dura:

Pode num peito humano o impossível, 
recebe-se somente no conceito, 
e tem no coração posse segura."


(Frei Bernardo de Brito), Sílvia de Lisardo - os sonetos, ed. Fiama Hasse Pais Brandão, Lisboa: Assírio & Alvim, 1987, p. 43. 

Wednesday, July 8, 2020

COLOSSAL




"Nossa análise do universo pôs em cena sobretudo os planetas, único teatro da vida orgânica. As estrelas ficaram no segundo plano. É que nelas, nada de formas cambiantes, nada de metamorfoses. Nada além do tumulto do incêndio colossal, manancial do calor e da luz, depois seu decréscimo progressivo, e enfim as trevas geladas. Nem por isso a estrela deixa de ser o foco vital dos grupos constituídos pela condensação das nebulosas. É ela que ordena e regula o sistema do qual forma o centro. Em cada combinação-tipo, ela difere na grandeza e no movimento. Ela permanece imutável em todas as repetições desse tipo, inclusive as variantes planetárias que são obra da humanidade."


Louis-Auguste Blanqui, A Eternidade pelos Astros, trad.Takashi Wakamatsu, Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2017, p. 87. 

Tuesday, July 7, 2020

MUROS




"O silêncio cercava-os. Formava uma
barreira entre as suas vidas. 
Compreendia que voltaria muitas vezes
àquela casa para ver o
ciclo das horas e do inverno, 
Em redor dos seus muros havia de encontrar,
se tivesse persistência, a paz
e conservá-la-ia sempre em si mesmo, 
através do mundo através
do que parecia conter o seu destino. 
Todos os sonhos ali se encontravam.
Havia que contemplar o rosto onde a luz
ia morrer, 
palidamente, 
de encontro ao dealbar de um novo dia."


João Miguel Fernandes Jorge, a jornada de cristóvão de távora primeira parte, Lisboa: Editorial Presença, 1986, pp. 94-95. 

Monday, July 6, 2020

DAIMÓNICOS




"Daquilo que é apenas movido
E não te em si fonte de movimento - 
Conduzido por daimónicos, ctónicos
Poderes. E a acção certa é liberdade
Do passado e também do futuro."

T.S. Eliot, Quatro Quartetos, trad. Gualter Cunha, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 73. 

Sunday, July 5, 2020

CONTRADITÓRIO



"O coração humano alberga dois sentimentos contraditórios. É claro que toda a gente se comove com as pessoas que sofrem infortúnios. Mas, quando essas pessoas conseguem ultrapassá-los, sentimos um pequeno desapontamento. Até podemos sentir (para enfatizar um pouco o caso) o desejo de as mergulharmos novamente naqueles infortúnios. E, antes que nos apercebamos disso, chegamos (ainda apenas passivamente) a albergar uma certa hostilidade para com eles."

Ryunosuke Akutagawa, "O Nariz", in Rashomon e outras histórias, trad. Virgílio Tenreiro Viseu, 2.ª ed., Lisboa: Cavalo de Ferro, 2019, p. 42. 

Saturday, July 4, 2020

REPUTAÇÃO



"Margarida, a feiticeira da Torre da Marca, era bruxa muito mais modesta do que o celebrado Abracadabro. De feiticeira tinha apenas a reputação que a crença popular lhe criara, baseada na severidade dos modos, na taciturnidade do génio, e em ter ido viver para lugar deserto e em casa com pecha de ser assistida pela presença nocturna do diabo ou de coisa que tinha com ele estreitas relações de amizade."

Arnaldo Gama, Um Motim Há Cem Anos, 2.ª ed. popular, Porto: Livraria Tavares Martins, 1950, p. 153. 

Friday, July 3, 2020

ANRIQUE




"Anrique era um poeta, Senhoras desculpae
O seu pensar ingenuo, os erros em que cae. 
Não vê na Lua mais, que um premio ao seu amôr. 
Senhoras perdoae-lhe! elle era um sonhador. 
Anrique se eu podesse dizer-te baixo, ao ouvido, 
Quem é o vulto escuro, nas sombras escondido, 
Que vela sobre ti com tão ardente olhar
Que nem o volve atraz ao abandonado Lar?"


António Nobre, Despedidas, 3. ª ed. Porto: Imprensa Moderna, 1944. p. 91. 

Wednesday, July 1, 2020

IMPRECAÇÕES




" - Que é que você fez a estas morcelas, que não podem comer-se?
- Eu, meus senhores, respondeu a serva, não sabia como isso se cozinhava! nunca tinha visto dessas chouriças amarelas e quem as cozinhou foi o sr. Antero!
. Mas que é que deitaram nas morcelas?
- O sr. Antero, continuou a criada, depois de eu ter frigido as sardinhas, frigiu, no mesmo tacho, as tais chouriças, que os senhores chamam com esse nome!
As imprecações contra Antero foram gerais! Sobre todos sobressaía Filémon, que era o mais guloso! Mas Antero, sempre muito pacífico e sereno, disse:
- Sois uns tolos de bem esquisito paladar! Que importa que se misturassem morcelas com sardinhas? Tudo é matéria. Ou bem que somos panteístas ou que não somos panteístas!"


José Bruno Carreiro, Antero de Quental - Subsídios para a sua biografia, 2.ª ed., Vol. I, Braga: Livraria Editora Pax, 1981. p. 162.