Friday, December 31, 2021

FINDA

 



"É certo que aceleram as galáxias
no fim do universo: o espaço cresce;
e em cada coisa flui, sempre diverso, o tempo.
Não te distraias: dessa matéria és feito;
és quem demora."


António Franco Alexandre, "Carrocel", in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 595. 

VAGAROSO




"Às vezes fica o mundo vagaroso
e pousa nos retratos, na moldura, 
um caracol simbólico que irrita."


António Franco Alexandre, "Carrocel", in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 595. 

A TERRA VERDADEIRA

 



"O que será de ti quando eu deixar
esse planeta só na sua elipse
e me for às galáxias imperfeitas
ditar da criação o último eclipse.
Que outros corpos terão na tua sede
a fonte inacessível e primeira; 
que gesto nunca antes concebido
trará ao mundo a terra verdadeira. 
Não há no universo outra casa assim
habitada por bichos com ideias;
talvez em vez de gente melhor fôra
entregá-la ao descaso e ao proveito de uma etérea companhia. 
A ti confio a feira; volte um dia, 
e com asas nos pés esteja refeito
o divino baloiço das estrelas, 
aprenderei contigo a impaciência 
que em ti não use, para bem servir-te;
e então não serei mais, nos teus desenhos, 
ausente das imagens e das paisagens, 
o caracol que pousa na moldura;
e enfim no carrocel terei lugar seguro."


António Franco Alexandre, "Carrocel", in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 594. 

LEVE TÚNICA DE FOGO

 


"Ficou para trás, quente, a vida, 
a marca colorida dos meus olhos, o tempo
em que ardiam no fundo de cada vento
mãos vivas, cercando-me...

Ficou a carícia que não encontro
senão entre dois sonos, a infinita
minha sabedoria em pedaços. E tu, palavra
que transfiguravas o sangue em lágrimas. 

Nem sequer um rosto trago
comigo, já trespassado em outro rosto
como esperança no vinho e consumado
em acesos silêncios... 

                                          Volto sozinha
entre dois sonos lá atrás, vejo a oliveira
rósea das talhas cheias de água e lua
do longo inverno. Torno a ti que gelas

na minha leve túnica de fogo."



Cristina Campo, O Passo do Adeus, trad. José Tolentino Mendonça, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 25. 

RECORDAR

 




" - É um grande pecado abater uma árvore no rebentar da folha, quando ela está tão cheia de força e não pode morrer. É terrível para um morto quando não consegue ter paz na sua sepultura. Os que estão mortos já não podem esperar nada de bom, não podem ser contemplados pelo amor nem pela felicidade. O único bem que ainda podem almejar é o de poderem descansar em paz serena."


Selma Lagerlöf, O Tesouro, trad. Liliete Martins, 3ª ed., Lisboa: Cavalo de Ferro, 2017, p. 66. 

CONTROLO

 


"As respostas medievais à doença nunca eram unidimensionais. Na Sétima Cruzada, em 1250, por exemplo, o rei francês Luís IX teve um caso tão mau de desinteria que tiveram de lhe cortar os fundilhos das calças. O seu biógrafo concentrou-se na humilhação do rei, montado indignamente num pequeno cavalo de carga, acompanhado apenas por um cavaleiro, enquanto o seu exército fugia pelo mar, e por fim feito prisioneiro pelos egípcios. Neste relato, a perda de controlo corporal de Luís estava inextrincavelmente ligada à vergonhosa perda de controlo militar."

Seb Falk, A Idade Média – A verdadeira Idade das Luzes, trad. Elsa T.S. Vieira, Lisboa: Bertrand Editora, 2021, p. 301. 

Thursday, December 30, 2021

LUX HOMINUM

 


"Mais fundamentalmente, contudo, a maioria dos leitores do Evangelho de João entendia que lux hominum, a luz dos homens, se referia ao entendimento humano. Ao longo das Escrituras, as ideias de visão e pensamento, luz e entendimento, estavam interligadas, como quando São Paulo escreveu que «agora, vemos como num espelho, de maneira confusa», ou como nos Salmos, onde as palavras de Deus «iluminam», dão luz. Para alguns filósofos, essa relação entre visão e luz oferecia a chave para compreender como a mente humana pode alcançar o conhecimento das coisas que não se veem - incluindo Deus."


Seb Falk, A Idade Média – A verdadeira Idade das Luzes, trad. Elsa T.S. Vieira, Lisboa: Bertrand Editora, 2021, p. 163. 

LUMEN

 



“A avaliar pelos interesses científicos da época, esta foi sem dúvida a Idade da Luz. Os franciscanos tinham um interesse invulgar pela luz, que consideravam o meio pelo qual Deus trabalhava no mundo material. Mas os monges seguiam também, naturalmente, os desenvolvimentos científicos nessa área. A perspetiva podia ajudar a desvendar o início enigmático do Evangelho de João, que dizia que Deus era vida «e a Vida era a Luz dos homens, a Luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a receberam». Quando os monges leram que João Batista não era ele próprio a luz (lux em latim), mas surgia apenas como testemunha da luz (lumen), terão certamente pensado qual a diferença entre os dois tipos de luz (lux e lumen). A maioria dos filósofos, seguindo a opção de Avicena, usava lux para luz e as suas propriedades luminosas em geral, e lumen para casos de luz propagada e dos seus efeitos. Bacon usava os dois termos alternadamente. Mas, na teoria de Grosseteste, os dois tipos de luz eram parte integrante de fases diferentes da Criação. A luz divina imaterial do primeiro Big Bang, que se multiplicara para o exterior infinitamente, era lux, enquanto a luz corpórea que compunha as esferas interiores dos céus e da Terra era lumen. Tinham origens e características diferentes, em certa medida, como os físicos, hoje em dia, podem pensar na luz como tendo as propriedades de uma onda ou de uma partícula.”

Seb Falk, A Idade Média – A verdadeira Idade das Luzes, trad. Elsa T.S. Vieira, Lisboa: Bertrand Editora, 2021, pp. 162-163.  

Wednesday, December 29, 2021

FÉNIX

 


“Ficou ali a recordar quando ela e a irmã se meteram por um atalho verde e, à beira do caminho, viram uma faia pequena e terna que tinha sido cortada. Via-se, pela cor da madeira, que havia sido cortada alguns dias antes. Então, viram que a pobre árvore decepada já tinha começado a vicejar e que novas folhas brotavam dos botões. A irmã adoptiva parara e debruçara-se sobre a árvore. 
- Ai, pobre árvore! – dissera ela. – Que mal terás tu feito para que não morras, mesmo tendo sido decepada? Porque tens de fazer brotar as tuas folhas, como se estivesses ainda viva?”


Selma Lagerlöf, O Tesouro, trad. Liliete Martins, 3ª ed., Lisboa: Cavalo de Ferro, 2017, p. 65. 

Tuesday, December 28, 2021

REFÚGIO

 


“ – Não vimos os inimigos prepararem-nos emboscadas, quando fechámos a casa de Deus? Não fomos expulsos do presbitério e não nos vimos obrigados a refugiar-nos nos bosques, como proscritos? É próprio de nós sentirmo-nos desamparados e perdermos o ânimo por causa de um mau presságio?”

Selma Lagerlöf, O Tesouro, trad. Liliete Martins, 3ª ed., Lisboa: Cavalo de Ferro, 2017, p. 17. 

Monday, December 27, 2021

TRAÇOS

 


"Por um lado, o interesse é abstrato - correta ou erradamente, mas aqui pouco importa - pela possibilidade de encontrar um princípio, de dar uma origem às nossas experiências e às nossas maneiras de viver; por outro lado, é fascinante a ideia de compararmos e de descobrirmos traços de afinidade com o passado que nos permitam galgar o tempo que nos separa de então, o hiato entre ontem e hoje, atitude que talvez a ilusão humana de uma continuidade no futuro."


Massimo Osanna, Pompeia. O Tempo Reencontrado - As novas descobertas, trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Lisboa: Quetzal, 2021, p. 144. 

Sunday, December 26, 2021

SOL IMAGINÁRIO

 



"Consternadores os resultados do vento.
Quem envolveu o girassol que havia encostado ao muro e, ao soprar sem descanso, derrubou o tutor a que ele se arrimava, e o quebrou na queda?
Ao dar as cinco horas, Alice chega; desta vez, mais do que em mim repara a grande flor por terra, e sofremos a morte de um ser humano. 
Segredo-lhe inundada num sol imaginário:
- Dá-te aquele que já tem o teu nome."


Maria Gabriela Llansol, Na Casa de Julho e Agosto, Lisboa: Relógio D'Água, 2003, p. 98. 

Saturday, December 25, 2021

NATAL

 



"Se conseguirmos passar um dia em que o tempo é feito de silêncios, nunca mais poderemos ouvir/suportar a cavalgada ruidosa dos dias. Viver o silêncio, meditar com ele, como quando estamos a conversar com o pensamento, as ideias a nascer, é a única forma de verdadeiramente nos encontrarmos."


João Barrento, Breviário do Silêncio, s.l. Edições Alambique, 2021, p. 15.



Friday, December 24, 2021

EXULTATE


"E de novo regressa a chama, vermelha agora, contra o mais cerrado negro, e o eco quase silêncio de um coro ao longe, nocturno, exultate... E a imagem de um cego que o escuta. Não creio que o cego, por sê-lo, tenha o ouvido mais desperto para o ruído do mundo, ou para o silêncio nele. O seu mundo é o de um silêncio interior de imagens. Não vê e não ouve, é uma porta fechada: por detrás dela, só o espaço do silêncio."

João Barrento, Breviário do Silêncio, s.l. Edições Alambique, 2021, p. 15. 

Thursday, December 23, 2021

OS QUE IMPLORAM

 


"Não leves nenhum desespero para casa. 
Os que sofrem hoje
não são os que sofrerão amanhã.
Os que imploram hoje
não são os que implorarão amanhã. 
A medida de todas as coisas
é como a mulher que chora no centro do mundo. 
Chora para constatar que está viva. 
Serve-te de um copo de leite.
Vê como é branco.
Constata como é puro. 
Observa como só até um preciso momento
é útil e fruível.
Qualquer pergunta que possas fazer sobre ti
terá sempre uma única resposta
dentro de ti. 
És como o leite, 
puro e fruível
até ao preciso momento em que se ferve
ou azeda."


Amadeu Baptista, Arte do Regresso, Porto: Campo das Letras, 1999, p. 86. 

Wednesday, December 22, 2021

CINTILAÇÃO

 




"Aqui tocamos a cintilação, 
onde o rio se abre em deltas fascinantes
e o repouso da terra é uma promessa fértil

O mistério religa-nos ao sol. 

As torres mais altas de Alexandria
são o momento da seda e do fascínio. 

Já fomos peregrinos, 
como certos falcões salteadores. 

Agora somos deuses, 
que a luz inebria
e o poder da noite ressuscita."



Amadeu Baptista, Arte do Regresso, Porto: Campo das Letras, 1999, p. 109. 


Tuesday, December 21, 2021

ANIVERSÁRIO

 




"O múltiplo sentido das permutações
do tempo que o poema permite
assombra. Uma sequência de imagens
simples, e finalmente convencionais, 
a rápida sucessão das unidades dinâmicas do verbo, 
combina as três perspectivas

que os filósofos dizem do eterno, do instante, e 
do perene. A terra mesma se transforma, 
a sombra das nuvens ao voar sobre as casas
dá repouso e abrigo à obra das nossas mãos. 
Passam os anos como os dias, o dia de agora
é inteiro e completo como outrora. 

Lendo, já sei, talvez nada aconteça:
vento nas folhas, água, uma estrela que cai.
Comendo a sopa quente diante da tv
a ordem da história e a sociedade não está
prevista no menu. Ainda assim são essas imagens voláteis
a razão do poema, enquanto dura o sol."

António Franco Alexandre, "Post-Scriptum", in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 289. 

Monday, December 20, 2021

PARAÍSO

 




"outra vez volto
a olhar. O paraíso
é assim: à semelhança do inferno, 
mas em tudo diferente.
Por exemplo: aqui trocamos os nomes todos, 
cada dia é uma nova ´
constelação. Do outro lado
dos teus olhos, 
quando o retrovisor espreita
por cima dos teus ombros, 
fica um mundo suspenso, 
o manso amor, o vento."


António Franco Alexandre, "Corto Viaggio Sentimentale, Capriccio Italiano", in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 387.

Sunday, December 19, 2021

VARIEDADE

 



"Ela replicou, «Sabes por que razão as mulheres sabem menos do que os homens?»
«Não, minha Senhora, tereis de me elucidar.»
«É porque estão expostas a uma larga variedade de experiências, uma vez que têm de ficar em casa todo o dia entregues a actividades domésticas. Não há nada como uma variedade de experiências diferentes para expandir a mente de qualquer criatura racional."


Christine de Pisan, A Cidade das Mulheres, I. 27., selec. e trad. Ana Nereu, Almargem do Bispo: Coisas de Ler, 2007, p. 36.

Saturday, December 18, 2021

HIERÁTICO

 



"Meus antepassados não cessaram de dizer-me palavras cheias de sensatez e de tristeza, avaliando dificilmente a singularidade do nosso destino; mas seu pensamento hierático, sua estima por nós em que se fechara sua descendência, não deixa de produzir seus clarividentes efeitos."


Maria Gabriela Llansol, Na Casa de Julho e Agosto, Lisboa: Relógio D'Água, 2003, p. 86. 

Friday, December 17, 2021

TARDA



"tarda
o silêncio todo
dentro da cabeça.
é tempo da recolha dos peixes. 
tempo é tempo de me trazeres
pela mão asas, 
desferrolhos que cheios de vezes às vezes trazes.
fora: a realidade, vê. 
um restolhar de asas, 
senhora, que cheio de vezes fazes, 
por que subterrâneos, por que pedras, 
crê, voltarão.
voltarão os pássaros."


Óscar Possacos, cantaria, Porto: Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, 2014, p. 95. 

 

Wednesday, December 15, 2021

DESTINO (para a memória de Rogério Samora)

 



"Só que o esquecimento surgiria com um destino feliz:
pois sob as nobres alegrias morre o sofrimento, 
subjugado na sua malevolência, 

Quando o Destino de um deus atirar
em direção ao alto a aventura sublime."


Píndaro, "Ode Olímpica II", 18-22, Poesia Grega, de Hesíodo a Teócrito, ed. e trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2020, p. 175. 

Tuesday, December 14, 2021

INFINITAS MÁSCARAS

 



"Vejo infinitas máscaras que cercam, bailando, a minha máscara contemplativa, de espectral presença, abismática e parada, onde as outras se reconhecem, porque o meu ser é uma lagoa, morta e sem fundo, reflectindo estrelas, nuvens, ramos de árvores..."


Teixeira de Pascoaes, Verbo Escuro, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 76. 

Monday, December 13, 2021

DENTRO DO NEVOEIRO




"este o lugar do frívolo, o vaidoso
campo de inverno frio. 
leio os mapas, os tiros, como quem
tem a radioscopia sobre a mesa.

quando começa a ser poema, a frase
destoa no veludo. 
a meio do caminho os troncos derrubados
as pequenas bandeiras vermelhas,

choveu. são modos de falar, 
ténues, dentro do nevoeiro,
que o corpo era claro, esse

foi o primeiro a acontecer, agora
os rios, a boca, as derradeiras
estradas se confundem."


António Franco Alexandre, "A Pequena Face", in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 205.  

 

Saturday, December 11, 2021

E NENHUM AR OSCILA



"não tenho estado nada bem, um retrocesso, 
uma maneira de vencer, de ter as mãos sem penas, 
nenhuma pálpebra invulgar, apenas o bater
das pálpebras, elas agarram-se
viscosas ao sentido, 
e nenhum ar oscila. outras vezes

é o silêncio das ruas, a água 
sobre os seixos, líquida, 
o silêncio entre as bocas
e as roucas paredes; receio, 
sem pavor, o simples
sofrimento. 

tenho errado o que faço, a garatuja, os passos; 
lembrado certas horas, uns lugares
depois outros, 
o sopro de algumas casas, mas também
os poços da lepra, 
as estradas cortadas, as naus
inexistentes."


António Franco Alexandre, "As Moradas 1 & 2", in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 241. 

Friday, December 10, 2021

A FELICIDADE


"A amizade dança à volta da Terra inteira convocando-nos para que despertemos para a felicidade."


Epicuro, "Sentenças Vaticanas", 52, Cartas, Máximas e Sentenças, trad. Gabriela Baião, Lisboa: Edições Sílabo, 2009, p. 136. 

Wednesday, December 8, 2021

PRINCÍPIO E FIM



"Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver, 
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

«Tudo no mundo é frágil, tudo passa...»
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
«Ah! Podem voar mundos, morrer astros, 
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...»"


Florbela Espanca, Sonetos Completos, 8.ª ed., Coimbra: Livraria Gonçalves, 1950, p. 72. 

Monday, December 6, 2021

CHÃO SEGREGADO

 




"neste secreto esconso os animais
se entredevoram
sem cuidados demais que não demora
o gume desbotado

é um desvão na face da cidade
tão semelhante em tudo
falar de quem perece não alcança
lugar no seu recanto

ouço na rádio a tua nova imagem
entrevistando as ilhas

saíste de manhã sem dizer quem
vestido de cidade
sabe a cimento o ombro mais discreto
é o chão segregado"


António Franco Alexandre, "A Pequena Face", in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 175. 

Sunday, December 5, 2021

MUDAS

 



"Já folheias o corpo as folhas mudas
com a mão no silêncio me descobres
e me tomaste todos os sentidos
ó insensato ouvido

pois em folha te deito lençol leito
no coração da trégua te desenho
serás amanhecendo uma outra letra
ó demorada boca

já tudo te permites mesmo o espanto
da cor inesperada que tiveram
por um momento as tuas mãos em vidro
irreflectidas

visto melhor verás o prateado
reverso da floresta
e o amor que permites nele inscrito
ó cautelosa gente."


António Franco Alexandre, "A Pequena Face", in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 158. 

Saturday, December 4, 2021

BÁRBARA

 



"O seu orgulho atingiu o auge quando, depois de ter subido pela primeira vez os mil e quinhentos degraus da torre, olhou para baixo. Os homens tinham o aspecto de formigas, as montanhas afiguravam-se-lhe conchas e as cidades colmeias de abelhas. A ideia que tamanha elevação lhe dava da sua própria grandeza mais lhe transtornou a cabeça. Ia já prostrar-se em adoração a si próprio quando, olhando para os astros, percebeu que eles estavam à mesma altura a que os via quando os olhava da terra. Para este involuntário sentimento de pequenez, procurou ele consolação no facto de, aos olhos dos outros, parecer grande: pensou para consigo que as luzes do seu espírito ultrapassavam o alcance da sua própria vista e que havia de pedir às estrelas contas dos decretos do destino."


William Beckford, Vathek, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 20. 

Friday, December 3, 2021

DENSO INSTANTE





"percorro a habitação, o movimento
violento do cálculo.
quero este denso instante, o opaco
ardor da eternidade.
divirto a embarcação, um rio nos corre
as margens, onde guerreiros pernoitavam."


António Franco Alexandre, "Visitação", in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 112. 

Thursday, December 2, 2021

OUVIR A LUZ DO VENTO

 



"eu simplesmente ardi fui o retrato
das suas mãos que tecem pesadelos
na margem que deixaram 
as migrações do vento

o meu país tem dormições abertas
do público dos seus
doces tormentos
eu simplesmente ouvi a luz do vento"


António Franco Alexandre, "Visitação", in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 108. 

Wednesday, December 1, 2021

REVELAÇÃO

 



"Colocou à direita todos os livros, cadernos e papéis. Nunca se sentira tão calmamente só, era estranho que aquela estranha Ana de Peñalosa tivesse o monge Eckhart - o Porto - no seu quarto. Não era uma compilação dos Sermões

     Quasi stella matutina in medio
     nebulae et quasi luna plena in
     diebus suis lucet et quasi sol
     refulgens, sic iste refulsit

Não o livro da Consolação, 
Nem os Tratados, 
mas urso, dama, sangue, rosa
se eu me concentrar num fragmento do tempo
não é hoje, nem amanhã
mas se eu me concentrar num fragmento do tempo, 
agora, 
esse fragmento revelará todo o tempo."


Maria Gabriela Llansol, O Livro das Comunidades, Lisboa: Relógio d'Água, 1999, pp. 66-67.