" - Bom, isto é uma história... Mas como nós somos! Como atribuímos sempre ao tempo insolúvel de além da morte a coesão dos nossos vícios e manias! Os hábitos são toda a personalidade desses excêntricos que constituem a gente comum adaptada aos menores absurdos. A acção é uma primitiva condição da vontade, e por isso é tão fácil criar um fantasma entregue às suas ocupações como tocar violino ou pintar num terraço retratos de princesas decapitadas. No movimento conjura-se toda a vida, são a consumação desse movimento ininterrupto, eterno, os actos atribuídos às almas penadas. Elas próprias não são mais do que a presença cénica que culmina toda a sua existência passada. uma velha que fia a sua estriga branca é já uma imagem mitológica que ultrapassa a criação do fantasma. O fantasma é uma moral oportuna, a mitologia é a sublimação dessa moral. Ambos conduzem à popularidade de Deus.
- Sim senhor - disse Tamar, meio vexada. - Não sei até que ponto tu acreditas ou não em fantasmas.
- Acreditar é uma arma muito perigosa. Admitimos a morte, por exemplo; mas pessoalmente não acreditamos nela."
Agustina Bessa-Luís, A Muralha, Lisboa: Amigos do Livro/TV Guia, 1986, p. 92.