Thursday, June 30, 2022

INOCÊNCIA

 



" - Eu estou inocente! Eu estou inocente! -  repetiu o homem de cabelos eriçados.
- Jesus Cristo também estava inocente - prosseguiu Chveik - e, apesar de tudo, crucificaram-no. Desde que o mundo existe foram sempre e em toda a parte os inocentes que mais se amolaram. Maul halten und weiter dienen!, como se dizia no regimento. É ainda o que há de melhor e de mais catita."


Jaroslav Hasek, O Valente Soldado Chveik, trad. Alexandre Cabral, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1971, p. 21. 

Wednesday, June 29, 2022

NAVIO

 



"Num mundo tornado deserto, temos sede de encontrar os companheiros: o gosto do pão repartido pelos companheiros leva-nos a aceitar os valores da guerra. Não precisamos da guerra para encontrar o calor das costas vizinhas numa corrida para o mesmo fim. A guerra engana-nos. O ódio não contribui em nada para a exaltação da corrida. 
Para quê odiarmo-nos? Somos solidários, transportados pelo mesmo planeta, tripulação de um mesmo navio. E, se por um lado é bom que as civilizações se oponham a fim de favorecerem novas sínteses, é monstruoso que se devorem mutuamente."


Antoine de Saint-Exupéry, Terra dos Homens, trad. Maria Georgina Segurado, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 116

Tuesday, June 28, 2022

RECONFORTANTE

 


"Não sei o que se passa comigo. Este peso que me prende ao solo quando há tantas estrelas magnetizadas. Um outro peso me faz voltar a mim mesmo. Sinto o meu próprio peso que me atrai para tantas coisas! Os meus sonhos são mais reais do que estas dunas, do que esta luz, do que estas presenças. Ah!, o maravilhoso de uma casa não é o facto de ela nos abrigar ou aquecer, nem de ter paredes. Mas de ela ter depositado lentamente em nós estas provisões tão reconfortantes. De formar, no fundo do coração, este maciço obscuro de onde brotam, como as águas de nascente, os sonhos..."

Antoine de Saint-Exupéry, Terra dos Homens, trad. Maria Georgina Segurado, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p.47. 

Monday, June 27, 2022

FOLHAGEM

 



"Faz parte dos seres grandes que aceitam percorrer largos horizontes com a sua folhagem. Ser homem é precisamente ser responsável. É conhecer a vergonha em face de uma miséria que não parecia depender de si. E orgulhar-se de uma vitória que os companheiros obtiveram. É sentir, ao colocar a sua pedra, que se contribui para a construção do mundo."


Antoine de Saint-Exupéry, Terra dos Homens, trad. Maria Georgina Segurado, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 34. 

Sunday, June 26, 2022

AGRADAR

 


"A graça, o que mais se parece com a gratidão, tornou-se intolerável. Há uma agressividade oficial que a impede de sobreviver. O homem é treinado para actualizar a sua servidão, e não para assumir o seu sacrifício. Sacrifício maravilhoso, dádiva em que as margens do tempo se confundem e em que a vida e a morte se tocam quase ternamente. Damos demasiado significado a nós próprios, mergulhamos cada vez mais num abismo confidencial. Instauramos a solidão, embora estejamos aturdidos pelo número. Medimos a extensão das catástrofes e aproveitamos nelas o paralelo com o nosso fracasso. Isto doura a solidão, prodigaliza à inveja consolos inestimáveis. A guerra nuclear substitui hoje a fornalha do inferno, ambas ideias apadrinhadas pelo inconsciente colectivo da natureza apocalíptica. A pequena história do quotidiano, isso que fazia  o fermento da mais bela literatura, é tomado como ofício da pobreza envergonhada. Ser escritor tornou-se, como tudo, uma maneira de suportar a mediocridade. Primeiro, o poeta era o sábio; depois, as letras foram um mester, um talento aparentado com o funambulismo; e agora, tornaram-se numa complicada tentativa para seduzir e influenciar. Não há hoje praticamente ninguém que não esteja possuído da intenção pueril de ganhar a simpatia dum público. É a atitude que tomam as crianças por traumatismo da sua debilidade. O escritor quer agradar, o político precisa de agradar, o metafísico aspira a agradar. Esta subserviência que se instala numa fraude da desafectação, de impune demagogia, acaba por institucionalizar-se na pura superficialidade. E marca a agonia duma cultura. A graça, contrário da exibição, alma sincera que persuade, desaparece. A civilização torna-se num método unicamente concebido para sobreviver."

Agustina Bessa-Luís, Contemplação Carinhosa da Angústia, 2ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 2000, pp. 22-23. 

Saturday, June 25, 2022

MÁRTIRES

 



"Todos os mártires se parecen
polo menos nun sentido:
non podem arrepentirse de selo."


Ramón Caride, A Chuvia Integral, A Coruña: Medulia Editorial, 2022, p. 14. 

Thursday, June 23, 2022

TEMPS BIZARRE

 




"Tempo bizarro, sim, qual o céu vos guarde!
Errais, em solitária sombra e em furor, 
A mirar-vos precoce e adentro com terror;"


Stéphane Mallarmé, "Herodíade", in Poesias, trad. José Augusto Seabra, Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 79. 

Wednesday, June 22, 2022

APAGADA VIDA

 




"Ter nascido homem outro, em outros dias,
 - Não hoje, nesta agitação sem glória,
Em traficâncias e mesquinharias, 
Numa apagada vida merencórea...

Ter nascido numa era de utopias,
Nos áureos ciclos épicos da História, 
Ardendo em generosas fantasias, 
Em rajadas de amor e de vitória:

Campeão e trovador da Idade Média, 
Herói no galanteio e da cruzada,
Viver entre um idílio e uma tragédia;

E morrer em sorrisos e lampejos, 
Por um gesto, um olhar, um sonho, um nada, 
Traspassado de golpes e de beijos!"


Olavo Bilac, "Tarde", in Poesias, 22.ª ed., Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1946, p. 370. 

Tuesday, June 21, 2022

VERÃO

 




"Se fores aristocrata do sol
não precisarás de um inferior que te enalteça;
do próprio sol extrairás o que é a tua nobreza
deixando aos outros o que eles quiserem ser. 

Sou o que sou
como dádiva do sol, 
sem haver nos outros o que é minha medida.

Sejamos genuínos, e todas as crianças talvez cresçam repletas de sol
e aristocratas do sol. 
Não precisamos de mortos, de escravos do dinheiro nem de vermes."


D. H. Lawrence, Sol, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2021, p. 157. 

Monday, June 20, 2022

ROLAR

 



"Falamos em progresso e rolamos na morte. Nada se sabe. Se considero a música a mais espiritual das artes é porque a música é pura essência. O ritmo é a sua lei, a sua manifestação é o som, da natureza da luz e do éter, simples vibração, onda etérea, nada mais. A música explica-me, de certo modo, o invisível e eu compreendo a alma quando executo, sinto Deus quando componho."


Coelho Netto, Esphinge, 3.ª ed., Porto: Livraria Chardron, de Lello & Irmão, 1925, pp. 117-118 [ort. actual.].

Sunday, June 19, 2022

CUIDADO

 




"Cuidado, pois ninguém sabe como Deus decide, 
Ou quando, eliminar o pecador, ou quando o verme
Da consciência trará o terror para quem se mostra firme
Na sua maldade, por mais secreta que seja, 
Quando ninguém sabe, só Deus é o próprio.
Seja analfabeto ou homem de conhecimento, 
Quando o golpe cairá, não se pode prever.
Ofereço-vos este conselho: esquecei os vossos pecados
Antes que os vossos pecados vos esqueçam."


Geoffrey Chaucer, "Conto do Físico", in Contos de Cantuária, trad. Linguagest, Barcelona: Mediasat Group, 2004, p. 369.  

Saturday, June 18, 2022

NESTA ROSA (para a memória de João Rui de Sousa)

 



"Nesta rosa que adivinho 
pelo rumor de quem passa
sem saber bem o caminho
sem saber quem o enlaça
com braços de murta e vinho
sem estremecer na vidraça 
partida com este ancinho
de esfarelar a desgraça
encontro a foto dum astro
numa rota sem destino
a procurar o seu espaço."


João Rui de Sousa, Lavra e Pousio, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005, p. 48. 

Friday, June 17, 2022

MARIA DA FONTE

 



"Se sois bela, onde houver gente
Mostrai o vosso rosto e o vosso vestuário.
Se sois feia, libertai-vos da tarefa.
Ocupai-vos a arranjar amigos.
Sede alegre e leve como uma folha de limoeiro, 
E que ele se preocupe e chore e se contorça e se lamente."


Geoffrey Chaucer, "O Conto do Estudante", in Contos de Cantuária, trad. Linguagest, Barcelona: Mediasat Group, 2004, p. 276. 

Thursday, June 16, 2022

HÓSTIA/LUA

 



"D'uma gaze de luz na transparente alvura,
O luar- opala fluida - envolve a terra e o céu...
É tudo branco sob o luminoso véu, 
Qual paisagem polar, que argenta a neve pura.

Nada bole em redor, nada em redor murmura:
Tudo se extasiou em sonho, e emudeceu...
A matéria - ó prodígio! - em alma se volveu
E nada em beatitude e mística doçura!

Mas, de súbito, além, nostálgica e pangente, 
A voz d'um rouxinol rompe do alvor silente
E, nessa imensa paz, a gorgear, descanta.

E vibra uma tal dolência de elegia, 
Tão cheia de mistério e de melancolia, 
Que dir-se-á ser o luar que, eoliamente, canta!"


Luís de Magalhães, Antologia Poética, selec. José Valle de Figueiredo, Maia: Edição da Câmara Municipal da Maia, 1998, p. 235 [ort. atual.]. 

Wednesday, June 15, 2022

EXPRESSÃO

 


"Para mais, a expressão das emoções funerárias, moldada num ritual definido e ostensivo, pode ou não transbordar, ou ignorar as emoções reais provocadas pela morte, ou ainda conceder-lhe um sentido desviado. Assim, a ostentação da dor, própria de certos funerais, destina-se a provar ao morte a aflição dos vivos a fim de garantir a benevolência do defunto. Em certos povos é a alegria que é de bom uso nessas ocasiões: visa mostrar tanto aos vivos como a morto que este é feliz."

Edgar Morin, O Homem e a Morte, trad. João  Guerreiro Boto e Adelino dos Santos Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 27. 

Monday, June 13, 2022

ANTONIANO

 


"A sabedoria fez o sábio mais forte do que dez príncipes de uma cidade. A sabedoria, nome que vem de sabor, é o amor e a contemplação de Deus, que faz o sábio forte; isto é, fortalece a alma, que aprecia o gosto do amor, mais que a dez príncipes duma cidade, isto é, acima de todo o deleite dos dez órgãos sensoriais. A sabedoria, de facto, verdadeiramente sacia; o deleite tudo deixa perder; aquela dulcifica; este amarga. Quem serve a sabedoria é livre; quem serve o deleite é infeliz. Portanto, compra as juntas de bois quem em transacção ruinosa despreza o gosto do amor divino e se sujeita ao deleite dos cinco sentidos, portador de infelicidade e servidão."


Santo António de Lisboa, "Sermões - 2.º Domingo depois do Pentecostes", in Almanaque de Santo António - 1997, Braga: Editorial Franciscana, 1997, pp. 145-146. 

Sunday, June 12, 2022

SYMBOLO

 



"Notando, porém, o meu espanto, explicou, sem voltar-se, sempre debruçado ao parapeito e com o mesmo vagar:
- Arhat servia-de do símbolo como expressão do mistério. O que se não pode dizer ou representar figura-se. A cor é o símbolo para os olhos, o som é o símbolo para os ouvidos, o aroma é o símbolo para o olfacto, a resistência é símbolo para o tacto. A própria vida é o símbolo. A verdade, quem a conhece? A chave dos símbolos abriria a porta de ouro da Ciência, da verdadeira e única Ciência, que é o conhecimento da causa."


Coelho Netto, Esphinge, 3.ª ed., Porto: Livraria Chardron, de Lello & Irmão, 1925, p. 53 [ort. actual.].

RUA MORTA

 


"Fui feliz. O meu nome deve ter dito rua da Felicidade. Hoje, deveria chamar-me rua do Paraíso Perdido. A morte do barco, assassinado, à minha vista, pela locomotiva; a paragem desta, numa estação esquálida, a meia légua de mim; o desvia de uma estrada, cujo fito, creio eu, não foi servir os povos, foi chegar à tumba sem sair do berço; por último, a gasolina, que pulverizou, pelas aldeias, os centros comerciais... Todos esses bens foram para mim o mal. Deram cabo de mim. A morte, por sua vez, há-de fazer o resto. Por esta fenda, se me irá a vida. Suporto, há século e meio, nas minhas costas, o peso dum grande morro. Mais dia, menos dia, há-de esbarrondar-se... Irão comigo, para o abismo, os bêbedos que me habitam - os meus últimos amigos. Como lhes quero bem... O desmazelo desses rapazes é o toldado buqué da minha vida. Lembra-me o sossego de alma, que foi, no tempo áureo, o prémio da minha energia."

 

João de Araújo Correia, Caminho de Consortes, 2.ª ed., Régua: Imprensa do Douro, 1971, pp. 78-79. 

Friday, June 10, 2022

DIA DE PORTUGAL

 



“Oh! como se me alonga, de ano em ano, 
A peregrinação cansada minha!
Como se encurta, e como ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano!

Vai-se gastando a idade e cresce o dano;
Perde-se-me um remédio que inda tinha;
Se por experiência se adivinha, 
Qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;
No meio do caminho me falece;
Mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ela foge, eu tardo; e na tardança, 
Se os olhos ergo a ver se inda parece, 
Da vista se me perde e da esperança.”


Luís de Camões, Sonetos e Canções para o 3.º ano liceal, ed. Joaquim Portugal e Manuel Catarino, Porto: Porto Editora, 1973, p. 66. 

Thursday, June 9, 2022

EQUILÍBRIO

 



"Porque a morte tem o seu tempo
A ruína soma ruína, à cabeça
Equilibra a existência desmoronada e inteira.
Tu és o que edifica
Tu constróis mil vezes.
Porque o raio tem o seu tempo.
És o clarão, a lâmpada, a estrela
Somas luz à luz.
Não és a luz, és mais que a luz
Porque a noite tem o seu tempo."

Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 186. 

Wednesday, June 8, 2022

O AFECTO (para a memória da Divina Paula Rego)

 



"Lentamente, desdobro as pregas dessa vida de menina e em muitos detalhes eu estou lá. Na solidão da quinta, na fantástica e humilde marcha doméstica a que não faltam clarins de vozes, bater de portas, tambores de chuvas e fervuras, sangue e água nas pias, os olhos moribundos das galinhas depenadas com água quente. A brutalidade nem sequer envergonhada dos predadores, os comedores de jantares rituais, o afecto repartido entre as crianças, os sabores, os animais. Um mundo perverso e encantado que as histórias de fadas e princesas trazem no ventre e que vão fazer a tanta obra dum artista, se ela se escapa entre as malhas da casa materna e se evade para o mundo. O mundo artista é um prolongamento da infância, dos seus medos e dos seus gritos penetrantes como o que os pavões soltam num parque deserto. Um parque arruinado, não um jardim francês, geométrico e letal."


Agustina Bessa-Luís e Paula Rego, As Meninas, 2.ª ed., Lisboa: Guerra e Paz, 2008, pp. 11-12. 

Monday, June 6, 2022

AVENTURAS

 


"Mas, depois da primeira noite, quando as mulheres já foram assim desfloradas, são guardadas com tanto ciúme que nunca mais podem falar ou sequer estar na companhia de um homem. Perguntei-lhes qual era a razão de ser daquele costume. Disseram-me que noutros tempos alguns homens tinham morrido naquela terra ao desflorar donzelas, porque estas tinham cobras dentro delas, que mordiam os homens no pénis dentro do corpo das mulheres; e assim muitos homens foram mortos, e daí veio o costume de fazerem outro homem testar o caminho antes de eles próprios se meterem em tal aventura."

John Mandeville, Viagens de Mandeville, trad. Clara Pinto Correia, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. 271. 

Sunday, June 5, 2022

PENTECOSTES

 



"Mr. Head manteve-se muito quieto e sentiu o ato de misericórdia a tocá-lo de novo, mas, desta vez, soube que não havia palavras no mundo que o pudessem descrever. Compreendeu que este ato emergia da angústia, que não é negada a nenhum homem e que é proporcionada às crianças de formas estranhas. Compreendeu que a angústia era tudo o que um homem podia levar consigo para a morte, para oferecer ao seu Criador, e sentiu-se subitamente abrasado de vergonha por ter tão pouca angústia para poder levar consigo. Ficou aterrado, a julgar os próprios atos com a meticulosidade de Deus, enquanto o ato de misericórdia lhe cobria o orgulho como uma labareda e o consumia. Nunca até então se achara um grande pecador, mas via agora que a sua verdadeira depravação estivera oculta a seus olhos, para evitar causar-lhe desespero. Compreendeu que fora perdoado por pecados cometidos desde o começo dos tempos, quando concebera no seu pobre coração o pecado de Adão, até ao presente, quando negara o pobre Nelson. Percebeu que nenhum pecado era demasiado monstruoso para que o pudesse reclamar como seu, e, como Deus ama em proporção àquilo que perdoa, sentiu-se pronto naquele instante para entrar no Paraíso."


Flannery O'Connor, Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias, trad. Paulo Faria, Lisboa: Relógio d'Água, 2015, p. 118. 

Saturday, June 4, 2022

SACRA

 


"Nunca seria uma santa, mas achava que poderia ser uma mártir, se a matassem depressa. 
Suportaria que a matassem a tiro, mas não que a mergulhassem em óleo a ferver. Não sabia se conseguiria suportar ser despedaçada por leões ou não. Começou a preparar o seu martírio, imaginando-se vestida com um par de collants, numa grande arena, iluminada por cristãos primitivos suspensos em jaulas de fogo, emitindo uma luz dourada e pulverulenta que tombava sobre ela e sobre os leões. O primeiro leão arremeteu e caiu aos pés dela, convertido. Uma sucessão de leões fez o mesmo. Os leões gostavam tanto dela que acabaram por dormir juntos, e, por fim, os romanos viram-se forçados a queimá-la, mas, para espanto deles, o corpo dela não ardia, e, percebendo que ela era tão difícil de matar, acabaram por lhe cortar a cabeça muito depressa com uma espada, e ela foi de imediato para o Céu. Ensaiou várias vezes esta narrativa, regressando, de cada vez que chegava à porta do Paraíso, para junto dos leões."


Flannery O'Connor, Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias, trad. Paulo Faria, Lisboa: Relógio d'Água, 2015, p. 87. 

Friday, June 3, 2022

IMPERMEÁVEL

 



"Mas uma boa cabeça não é uma cabeça impermeável. Porosa a todos os ventos, depois das tempestades só é de manhã um fruto que um orvalho amargo, os sonhos, torna pesado.
Os sonhos."

René Crevel, A Morte Difícil, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2018, p. 88. 

Thursday, June 2, 2022

SUBIDA

 


"E nunca nenhum homem foi lá excepto um anjo que, pela Graça de Deus, foi lá e trouxe de volta um pedaço de madeira da Arca, que agora está exposto numa Abadia do sopé da montanha. O monge tinha um grande desejo de escalar aquela montanha, e, finalmente, um dia, pôs-se a caminho. Pela altura em que já tinha feito um terço da jornada estava tão cansado e frágil que se sentou numa rocha e entrou em meditação, depois do que adormeceu. Quando acordou estava, de novo, no sopé da montanha. Então implorou a Deus que  o deixasse subir; e um anjo veio e ajudou-o na subida. Foi depois disso que ele trouxe para baixo a madeira da Arca. Desde então nunca mais nenhum outro homem lá foi, e, portanto, os que dizem que foram estão a mentir."

John Mandeville, Viagens de Mandeville, trad. Clara Pinto Correia, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. 154.

Wednesday, June 1, 2022

NA MESMA MONTANHA

 


"Na mesma montanha, naquele preciso lugar, no Dia do Juízo, virão os quatro anjos tocar as suas trombetas e levantar para a vida todos os que estiverem mortos. E todos estes virão, de corpo e alma, prostrar-se perante o Deus Soberano no Vale de Jeosafate, para escutarem o julgamento sobre si próprios; isto acontecerá num Domingo de Páscoa, à hora da Ressurreição de Cristo. Pois que, como dizem os estudiosos, no mesmo espaço e tempo em que Ele vagueou pelo Inferno virá Ele agora destruir o mundo e tomar os seus amigos e conduzi-los à felicidade sem fim, ao mesmo tempo que condena os maus às dores que nunca acabam."

John Mandeville, Viagens de Mandeville, trad. Clara Pinto Correia, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, pp. 121-122.