"Depende dela, da alegria e da segurança dela, como um vidro enorme que alguém leva pela rua, a minha permanência nesta vida. Por isso aos domingos levo-a a passear. Os olhos estão cada vez mais cansados, e vê cisnes no lugar de lenços, toda a gente com a boca rodeada de formigas, perde os dígitos das horas para se orientar. Ainda assim, gosta de passear, de ver as formas como o mundo sofre.
Gosta de casinhas arranjadas e de igrejas cheias de flores, ajaezadas como burros numa procissão. Gosta de parques e de shoppings de geometria funcional, benigna. Ri-se das piadas menos sofisticadas. Espreita as confeitarias sobreaquecidas onde o pasteleiro inventa a excrescência de uma nova iguaria e pessoas bem vestidas celebram os filhos corados, comem croissants.
Vemos a gente de domingo aconchegadas em bons carros e camisas de lã, em casamentos como o fruto agridoce de um magro cabaz. Gente cujos pais dormiam sob o ventre das ovelhas. Na manhã seguinte voltam ao trabalho com a cara em gume, com uma guelra esclerosada de tão pouco respirar. Sentimos juntas a pobreza disto tudo, que é também a nossa. Ela, que cresceu entre cavalos magros e avós de rins desfeitos, trabalhou como uma louca para que eu pudesse ser igual a esta gente. Mas para mim não há esperança. Tenho fomes simples de batatas e feijão. Bebo nos ossos o sol de inverno."
Andreia C. Faria, Clavicórdio, 2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 29.