Friday, June 30, 2023

VERDADEIRA

 



"Permaneci muito tempo fiel à religião da minha infância. Imaginava que o pai me podia ouvir e eu dizia-lhe que a culpa não fora minha mas do doutor. A mentira já não tinha importância, pois ele compreendia tudo e eu também. Estes colóquios com meu pai prosseguiram por muito tempo, suaves e secretos como os dum amor lícito. Em público, eu continuava a troçar de todas as práticas religiosas, ao passo que, diariamente, com fervor, dirigia ao Céu orações por alma do defunto. A verdadeira religião é propriamente aquela que não temos necessidade de professar com evidência para se obter o consolo que às vezes - mas poucas - nos é indispensável."


Italo Svevo, A Consciência de Zeno, trad. Maria Franco e Cabral do Nascimento, Lisboa: Editorial Minerva, s.d., p. 54. 

Thursday, June 29, 2023

VISÃO


 

"Assim, o apóstolo, no seu quarto de Suburra, nome feito de todos os detritos humanos acumulados aos pés de Júpiter Capitolino, anteviu a igreja católica, substituindo-se ao Estado Imperial, e Pedro, no trono de César."


Teixeira de Pascoaes, São Paulo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1984, p. 202. 

Wednesday, June 28, 2023

GUARDAR O AMOR




"E, enfim, os indivíduos sensatos estavam de acordo para negar redonda e sinceramente o despautério. De que natureza seria, pois, aquele amor?
Em primeiro lugar, o amor é uma aventura a dois; o facto, porém, de ser isso não implica que seja igual para ambos os componentes. Há o que ama e há o amado. Muitas vezes, este último constitui apenas um estímulo para o amor acumulado que jaz até aí no amante, o qual bem sabe que isso é uma coisa solitária. Depois, vem a conhecer nova e estranha solidão, o que o faz sofrer ainda mais. De modo que só lhe resta um processo: guardar o amor dentro de si tanto quanto puder; criar um mundo interior, intenso e completo. Digamos aqui que este amante de quem falamos não precisa necessariamente de ser jovem nem destinado ao casamento: pode ser homem, mulher, criança - enfim, qualquer entidade terrena."


Carson McCullers, A Balada do Café Triste, trad. Cabral do Nascimento, Lisboa: Círculo de Leitores, 1989, pp. 42-43. 

Monday, June 26, 2023

PLANO DE IMAGEM

 


"O plano de imagem é portanto essa espécie de lugar neutro (na medida em que não é afectado pela vontade) onde a imagem emerge como um devir, constituindo-se como lugar de manifestação de uma espécie de inconsciente da imagem na acepção em que a psicanálise admite que o inconsciente se organiza como uma linguagem."


Bernardo Pinto de Almeida, O Plano de Imagem, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 42. 

Sunday, June 25, 2023

TEMPO QUENTE

 



"Cum rézão ou sem rézão, 
João Capixaba, um caúchêro,
das bandas de Sairé,
me contou que a cabôquinha,
numa festa, im Caeté,
no dia de S. João,
só cum vaquêro dansou, 
e prú via disso a festa
im tempo quente acabou!!!"


Catullo da Paixão Cearense, Luar do Sertão e outros Poemas Escolhidos, selec. Guimarães Martins, 3.ª ed. , Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 95.

Saturday, June 24, 2023

JOANINO

 



"Quem é este mancebo, envolto em peles, 
Errante nas agruras do deserto, 
Não tendo a quem pedir sustento incerto
Para a fome matar?

Quem é esse infeliz, que pede às fragas
Um leito onde repouse os membros lassos, 
Nos instantes que dá ao sono, escassos, 
Em que deixa d' orar?"


Camilo Castelo Branco, Duas épocas da vida, 3.ª ed., Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1906, pp. 232-233. 

Friday, June 23, 2023

PERENEMENTE

 


"Só no amor, na renúncia e na dedicação residia a felicidade humana. O corpo precisa apenas de um bocado de pão. A alma, essa, necessita de mais abundante alimento, porque a sua fome de ideal arde perenemente, eternamente insatisfeita. Se o mundo era mau, e o homem se revelava, como há cem mil anos, o lobo do homem, era porque, dezanove séculos depois do Calvário, ainda a doutrina de Cristo se não gravara nos corações. E parecia-lhe tão simples a solução do problema! Toda ela se encontrava em duas linhas do Sermão da Montanha: «pão para todas as bocas, perdão para todas as dívidas». No dia em que os fartos repartissem com os esfomeados, e se apagasse nas almas o ressentimento de todos os agravos, a humanidade seria feliz, - e sobre a terra, até então empapada de lágrimas e sangue, desceria, num deslumbramento, o reino de Deus..."

 

Campos Monteiro, Camilo Alcoforado, 7.ª ed., Porto: Livraria Figueirinhas, s.d., pp. 106-107. 

PROPRIEDADE

 



"Jean-Jacques Antier - Para compreender os fenómenos psíquicos, tentemos ficar solidamente agarrados a uma realidade bem material, que é a vida. Os místicos possuem um corpo de carne e de sangue, o mesmo que todos os homens. Mas, primeiro, o que é a vida?
Jean Guitton - É uma propriedade emergente da matéria, um fenómeno que obedece a uma espécie de necessidade inscrita no coração do inanimado."


Jean Guitton, Os Misteriosos Poderes da Fé - Diálogo com Jean-Jacques Antier, Lisboa: Âncora Editora, 2000, pp. 58-59.

Wednesday, June 21, 2023

HORA DE VERÃO

 



"Mais do que devo, gosto
de andar na praia, 
de a visitar em dias, 
e saber sempre
que não fomos à praia, 
nem um, nem dois.
O teu corpo na areia
fulva, tão fina, 
onde ele nunca deitou.
Nem eu, tampouco, 
me estendo nessa toalha.
Mas não será
por isso que vou hoje
deixar de ver
a largura tostada
dos nossos dorsos, 
o vermelhão da luz
sobre a tua pele, 
o protector solar
no teu nariz, 
mancha sexy, molhada, 
quando sorris, 
as costas encostadas, 
espraiadas praias. 
Será melhor usar
o protector
também, se fores tu
a colocar-mo.
Aqui, no guarda-sol, 
ninguém nos vê.
Ninguém nos viu na praia, 
só eu vi todos
os que por lá passavam, 
um pouco como
tu, a fazer passeios
à beira-mar, 
a fumar no calor, 
nós os dois, juntos, 
crendo inventar um novo
lugar comum."


Amândio Reis, Antilha, Lisboa: Língua Morta, 2022, pp. 54-55. 

Tuesday, June 20, 2023

PATOLOGIA

 



"J.-J.-A. - O místico é um ser faminto de Deus!
J. G. - A folha deve ser decomposta, e como que comprimida em botão para se tornar flor; e esta poderia ser entendida como uma doença da planta. Esta patologia faria com que a natureza vegetal tivesse acesso à improbabilidade de uma promoção furtiva, instável, maravilhosa, estranha, à cor e ao perfume. A vida mística é uma mutação. Os místicos são mutantes, isto é, tipos de humanidade adiantados sobre os outros. Eles prefiguram a humanidade do futuro temporal-eterno. Pré-adaptados ao futuro, representam, a título de amostragens excepcionais, a humanidade futura, se esta quiser ter acesso à sua experiência e participar nela de algum modo."


Jean Guitton, Os Misteriosos Poderes da Fé - Diálogo com Jean-Jacques Antier, Lisboa: Âncora Editora, 2000, p. 49. 

Monday, June 19, 2023

QUARTO ABANDONADO

 



"Janelas, canteiros de flores coloridas, 
Toca de lá um órgão cá para dentro.
Sombras dançam sobre papéis de parede, 
Maravilhosa e louca a sucessão.

Os arbustos sopram um buraco de luz, 
Agita-se um enxame de mosquitos.
Longe, ceifam no campo as foices
E uma água antiga canta. 

De quem é a respiração que me acaricia?
Andorinhas desenham sinais loucos.
Suave, desliza para aí
O bosque dourado, rumo ao sem fim. 

Cintilam chamas nos canteiros. 
Louca sucessão confusa, em êxtase,
Ao longo do papel de parede amarelecido.
Alguém espreita pela porta adentro.

Cheiro doce a incenso e pêra
E o crepúsculo desce sobre vidros e arcas.
Lentamente dobra-se a fronte quente
Em direcção às estrelas alvas."


Georg Trakl, Poemas, trad. e pref. António de Castro Caeiro, Lisboa: Abysmo, 2019, p. 33. 

Sunday, June 18, 2023

PROFETAS

 



"se te invoco Deus
é para saber porque não se escrevem
poemas felizes.

respondendo
volta ao teu silêncio.

aliás quantos profetas te perguntaram
se eras feliz?

talvez nas suas grutas fosse impossível
alguém ser maior que tu.

portanto sendo mortal
é justo que te pergunte:
porque não há poemas felizes?

(bons poemas pelo menos)

nunca ninguém me disse:
recita.

fiquei sempre aqui assombrado
à espera de uma bênção.

e todas as rosas continuaram
a pronunciar o mesmo cheiro
mesmo quando cheirava a rosas."



Pedro Braga Falcão, os deuses da resina [em três livros], Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2022, p. 67.

Friday, June 16, 2023

LEVEZA DE OCASIÃO

 



"os deuses não têm templos
apenas céu.

ou são as divindades que nos assaltam
à espera de um sacrifício?

por tudo isso e por estes rios
é preciso que os contemples.

é preciso que haja tempo e forma
para a sua leveza de ocasião."


Pedro Braga Falcão, os deuses da resina [em três livros], Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2022, p. 49. 

Thursday, June 15, 2023

PRINCÍPIO



"Novamente, princípio [arkhé] quer dizer aquele tópico inicial a partir do qual uma coisa é primeiro entendida, sendo por isso também denominado o «princípio» de uma coisa, tal como sucede com as hipóteses de demonstração. Visto isto, «causa», por outro lado, pode ter efetivamente um número semelhante de diferentes aceções, uma vez serem as causas «princípios». Por conseguinte, constitui propriedade comum serem todos os «princípios» a primeira coisa a partir da qual algo existe, se gera ou se conhece; sendo consequentemente alguns princípios intrínsecos às coisas, enquanto outros, por seu lado, não o são. Assim, «natureza» supõe um princípio, assim como também o «elemento» e o «entendimento», a «escolha», a «essência» e a «causa final»; sendo, em muitas ocorrências, o bem e o belo os princípios tanto do conhecimento como do movimento."


 Aristóteles, MetafísicaV, 1012b 34- 1013a 20, trad. Carlos Humberto Gomes, Lisboa: Edições 70, 2021, pp. 175-176. 

Tuesday, June 13, 2023

ANTONIANO

 



"Os homens copiavam os anjos;
Os anjos copiavam os homens; 
Ambos copiavam a inocência;
A inocência copiava as feras.

As feras devoraram os homens;
Os anjos devoraram as feras.
A inocência vestiu-se de roxo
Pelo luto das futuras eras."


Natália Correia, Poesia Completa, 3.ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2007, p. 119. 

Monday, June 12, 2023

INTERSTÍCIO

 


"A quem ali chegasse de noite, pela primeira vez, parecer-lhe-ia, no dia seguinte, ter caído de algum avião, pois não enxergava interstício na muralha de pedra por onde se insinuasse a fita de um carreiro. Era um mundo à parte aquele, perdido, ignorado do outro na corcova gigante daquela serra. Nem os rios lá chegavam, nem poços ali afloravam, não gorgolejava uma nascente e, contudo, a vegetação manava, como oásis, nos pequenos vales abertos entre os outeiros nascidos naqueles píncaros."


Lília da Fonseca, O Relógio Parado, Lisboa: Arcádia, 1961, p. 40. 

Sunday, June 11, 2023

AVALIAR

 


"Quando Deus, cuja beleza é impossível de avaliar, deu à Natureza a beleza que a caracteriza, transformou-a num curso de água impossível de secar, sempre em movimento, a fonte de toda a beleza, e cujas margens e profundezas ninguém conseguiu sondar. Assim, não seria apropriado da minha parte fornecer uma descrição tanto do seu corpo quanto do seu rosto, que é de tal maneira fresco e encantador, que nenhum lírio de Maio, nenhuma rosa no seu ramo, nenhum floco de neve no seu tronco, se mostram tão vermelhos ou tão brancos. Acabaria por me ver obrigado a pagar pela minha ousadia caso me atrevesse a compará-la fosse ao que fosse, já que homem algum está em condições de compreender a sua beleza ou o seu valor."


Guillaume de Lorris e Jean de Meun, O Romance da Rosa, trad. Lucília Mateus Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, 2001, IX , p. 265. 

ORDEM TERRENA

 


"Abandonei por duas semanas o meu amado jardim junto ao Wannsee para regressar à paisagem mediterrânica. «Mediterrâneo» significa literalmente no meio da terra. Portanto, estou particularmente próximo da terra. A proximidade da terra enche-me de felicidade. Mas o meio digital destrói a terra, essa maravilhosa criação de Deus. Amo a ordem terrena. Nunca a abandonarei. Experimento um sentimento de fidelidade profunda, de profundo apego a esse precioso dom de Deus. Penso que a religião não significa senão esta profunda compenetração que, no entanto, me faz livre. Ser livre não significa ficar ocioso nem estar livre de compromissos. Para mim, em momentos como este, liberdade significa passar o tempo no jardim."

 

Byung-Chul Han, Louvor da Terra - Uma Viagem ao Jardim, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio D'Água, 2020, p. 115. 

Friday, June 9, 2023

HABITÁCULO

 


"Que alegria e que terror teres vindo. Conseguirei voltar a habitar este espaço outra vez sem ti?"


Daniel Faria, Sétimo Dia, 1:14., Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 46. 

Thursday, June 8, 2023

O PÃO E O VINHO

 



"Temos
sobre a terra a tarefa de preparar para o altar
o pão e o vinho do sacrifício
que inscrevem na terra
o próprio céu.

O mais insondável dos mistérios é o céu esconder-se
num humilde pão. Porque Jesus é o próprio céu
vindo até nós, todas
as manhãs.

Rainhas
mais felizes do que nós certamente que não há.
As tarefas do seu estado não são uma prece
unitiva com o seu próprio
Esposo.

As maiores
honras deste mundo não se podem comparar
com a paz celeste e profunda
que Jesus nos quer
dar a provar:

É natural
que invejemos santamente o trabalho de nossas mãos,
a pequena e branca hóstia
onde se esconderá
o Cordeiro divino.
(...)"


Thérèse Martin, de Lisieux, O Alto Voo da Cotovia, trad. Maria Gabriela Llansol, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p. 237.

Tuesday, June 6, 2023

HONRADO BENEFÍCIO

 


"Os do castello mujto anojados por a morte de Nuno Gomçallvez, que lhe assi virom dar, nom teverom mentes no fogo que deitarom, estando mujto espamtados das razooens que dissera ao filho. O fogo era gramde per aazo do vemto, a que se remedio nom pode poer, e arderom todallas choças com quamto neelas sija, e mujta gente em ellas: e o filho de Nuno Gomçallvez manteve o castello como lhe seu padre mandou, e depois lhe deu elRei huum muj homrrado benefiçio, por quamto lhe prougue escolher vida de clerigo."

Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, LXXIX, Porto: Livraria Civilização, 1966, p. 208. 

Monday, June 5, 2023

SECULAR

 



"- Que é isto, demónio? Será que estás a ser impertinente? Que pessoas são essas de que nos estás a falar? Será então possível encontrar a religião num lar secular?
- Sim, meu senhor. Não é forçoso que alguém leve uma vida perversa e acabe por perder a alma porque enverga trajes mundanos. Tal seria uma lástima. A religião verdadeiramente sagrada pode muito bem habitar entre roupas coloridas. Temos presenciado a morte de muitos homens santos e de muitos santos religiosos, bem assim como de muitas mulheres devotas e religiosas, que sempre usaram trajes comuns e que ainda assim foram canonizados."


Guillaume de Lorris e Jean de Meun, O Romance da Rosa, trad. Lucília Mateus Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, 2001, VI, p. 180.

Sunday, June 4, 2023

BOM JESUS

 


"Para este povo, gente simples do mar, gente então pobre que sentia na pele as agruras da vida dura cheia de incertezas quanto ao futuro, pois o seu sustento provinha do mar, por vezes tão generoso e não  raramente tão duro e hostil, durante muitos séculos - até ao século XVIII - o Senhor Jesus de Bouças, hoje de Matosinhos, pelos auxílios que lhe foi prestando pelos "milagres" realizados nesta vida ingrata de pescadores, tornou-se o Bom Jesus, e assim é designado até hoje, como expressão da bondade de Deus que por Seu Filho chega aos mais pobres e abandonados, aos marginalizados, e faz deles os favoritos do Reino, solidarizando-se com eles."


Pe. José Maria Gonçalves Fabião, Devoção, Romaria e Festa do Bom Jesus de Matosinhos. Sua Origem e Evolução, Matosinhos, 2001, p. 9. 

Saturday, June 3, 2023

BALIZAS


 "Este monte, ora ermo, silencioso e esquecido, já se viu regado de sangue: já sobre ele se ouviram gritos de combatentes, ânsias de moribundos, estridor de habitações incendiadas, sibilar de setas e estrondo de máquinas de guerra. Claros sinais de que aí viveram homens: porque é com estas balizas que eles costumam deixar assinalados os sítios que escolheram para habitar na terra."

 

Alexandre Herculano, "O Castelo de Faria", in Lendas e Narrativas, Tomo I, 28.ª ed., Lisboa: Livraria Bertand, s.d., p. 218. 

Thursday, June 1, 2023

INFÂNCIA




"Com o massacre da minha infância ficou
perdida a minha alegria primeira. Secou a 
raiz que havia de prender ao ventre de
todos os sorrisos. Tudo o que de feliz eu fui
depois disso, nasceu de artifícios inventados
à força. Na verdade, nunca saí daqui, da terra
onde a minha esperança se decompõe."


Virgínia do Carmo, Poemas simples para corações inteiros, Poética Edições, 2017, p. 39.