Thursday, February 29, 2024

REAL

 


"Da mesma forma, a magia contida numa palavra continua a ser magia, mesmo que não seja compreendida. A palavra nunca perde o seu poder. Os poemas podem ou não ser compreensíveis, mas têm de ser admiráveis, têm de ser reais."


Velimir Khlébnikov, Histórias, Equações, Relâmpagos, trad. Sara Veiga, Porto: Editora Exclamação, 2022, p. 67. 

Tuesday, February 27, 2024

ANIVERSÁRIO

 



"Deixa-me olhar-te pássaro real
A saltitar nesta tarde esquecida
Como uma clara afirmação de vida
Mesmo porque esse teu corpo vale.

Que alguma coisa morre em cada qual
Leio-o nessa cabeça ao alto erguida
Mas tens a alegria extrovertida
De não sentir em ti o nosso mal.

Somos contemporâneos meu amigo
Por isso posso conviver contigo
Compartilhar o orgulho de estar vivo.

Eu penso e tu não pensas é que é certo:
Tu a saltar e eu aqui tão perto
A pensar que da morte não me privo."




Ruy Belo, “Homem de Palavra[s]”, in Todos os Poemas, 4.ª ed. , Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, p. 311. 

Monday, February 26, 2024

DIAS PRIMITIVOS

 

"Não, não procures mais o reflexo dos dias primitivos e não toldados por nuvem escura! Flor murcha pelo tufão assolador que desbastou uma família, vergôntea débil do tronco eivado de serpes, cujos frutos são extintos ou malditos, não olhes mais o passsado aí; curva a fronte empalidecida pelo gemer da orfandade, pobre noviça na atmosfera viciosa em que te puseram as violências do destino!"

 

Ana Plácido, Luz coada por ferros, Porto: Book Cover Editora, 2023, p. 78. 

Sunday, February 25, 2024

MUDOS

 



"Que responde pois aos teus gemidos? Nada. Céu e terra é mudo!
Mudas são estas paredes, mudos os ferros que me represam aqui. No silêncio da noite, só harmonizam com os meus gemidos estas gotas d'água filtradas das abóbadas que me vem molhar a face, já lenta do suor febril. Reina aqui a mudez que aterra a alma frágil, e fortalece a ousada, que tem fé e crê no imprevisto, e na bondade divina. Ai! quisera ver uma visão que me afiançasse que os meus sonhos não mentem, nem as minhas previsões!"

Ana Plácido, Luz coada por ferros, Porto: Book Cover Editora, 2023, p. 76.

Saturday, February 24, 2024

UMA CASA VAZIA



"Agora o que lhes digo
quando todas as pedras perguntarem por ti
e não tiver mais que este silêncio como resposta.
Quando os plátanos condescenderem
em dourar a avenida de vénias
para que passe, na devida solenidade,
o cortejo destas tristezas.
Quando a chave na fechadura
se recusar a abrir uma casa vazia
e tropeças na embriaguez
amparado apenas pela sombra
que me pergunta pela ausência da tua."


Rui Xerez de Sousa, Ao Ouvido do Diabo, Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2018, p. 20.
 

Friday, February 23, 2024

CIRCUNSPEÇÃO

 


"Queres saber? Estas cãs - continuou ela, afastando os cabelos da fronte ainda majestosa e bela - nem sempre pesaram aqui. O que tu és hoje, rica de crenças e de ilusões formosas! O mundo é belo, mas os espinhos rasgam-nos a alma quando não lhes antepomos a circunspeção e a prudência que só trazem os anos. O nosso espírito cega-se muitas vezes à primeira luz. Libamos o néctar sem reparar nas fezes negras e nauseabundas que se congelam no fundo do cálix. Acordas hoje na sociedade, e sabes tu que mistérios assombrosos vão aí? Que juízos se fazem, que reputações se criam?"


Ana Plácido, Luz coada por ferros, Porto: Book Cover Editora, 2023, pp. 20-21. 

Thursday, February 22, 2024

CARETOS INDOMÁVEIS

 



"Com cigarros cravados num sorrisinho de ameaça
exalámos sombras vagarosas.
Cuspimos no amanhã num desleixo de tremoços
prontos a crucificar deuses que não se vergassem aos nossos caprichos.
Guardávamos na alma caretos indomáveis
firmes no propósito de subverter o mundo
chocalhando dogmas.
Herdámos uma revolução demasiado limpa
e, vingativos, queremos a nossa hora.
Alimentamos revoltas com copos de três
mas endireitamos as costas por saber que há punhais que nos ouvem
paredes que nos odeiam.
Mas não sabemos por onde começar...
Nunca soubemos.
Heróicos
sonhámos com chaimites
peito a fazer frente às balas
dispostos a morrer pela causa
se a audiência o justificar
para depois
adormecermos na hipótese de tudo nos ser possível
e acordar
estremunhados
no rancor de tudo nos ser devido."


Rui Xerez de Sousa, Ao Ouvido do Diabo, Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2018, p. 29.

Tuesday, February 20, 2024

ABERTURAS

 


"A imaginação é uma janela aberta sobre as emoções", leu algures. Por isso nunca arejava a casa. Com receio que os ventos da história lhe desarrumassem as ideias."


Augusto Mota, Sujeito Indeterminado, ed. do autor, 2005, 38.  

Sunday, February 18, 2024

A VOZ

 




" - Abençoai-nos este dia sagrado, Senhor, abençoai-me a mim, ao Dylan e a esta Vossa pequena capela para todo o sempre, ámen. Fiz aqui uma série de melhoramentos.
Fiquei sentado no feno de olhos postos em Gwilym a pregar, e ouvi a voz dele subir, tornar-se rouca, baixar para um sussurro, desatar a cantar, passar para galês, vibrar triunfante, e soar ora irada ora humilde. O Sol através de um buraco iluminava-lhe os ombros suplicantes:
- Senhor, Vós que estais a todos o momento em toda a parte, no orvalho da manhã, na névoa do entardecer, no campo e na cidade, no pregador e no pecador, no pardal e no falcão enorme. Vós que podeis ver tudo, no mais fundo dos nossos corações; Vós que podeis ver-nos quando o Sol desapareceu; Vós que podeis ver-nos quando não há estrelas no céu, na espessa escuridão, no fundo dos fundos do mais profundo poço; Vós que podeis ver-nos e vigiar-nos e observar-nos a cada momento, nos cantos mais recônditos, nas vastas pradarias dos cowboys, debaixo dos lençóis, quando ressonamos no sono; nas sombras mais terríveis; nas trevas de breu, nas trevas de breu; Vós que podeis ver tudo o que fazemos, de noite e de dia, de dia e de noite, tudo, tudo; Vós que podeis ver tudo a cada momento. Ó Senhor, vá, Vós sois como o raio de um gato."



Dylan Thomas, "Os Pêssegos", in Oito Contos, trad. José Lima, Porto: Livros do Brasil, 2024, p. 35.

Friday, February 16, 2024

AS TROMBETAS

 



"Senti passar por mim um arrepio e agarrei-me à cadeira, como a procurar encontrar o equilíbrio perdido; parecia que acabavam de destruir à minha volta o princípio da gravidade, e durante um instante vi os povos de todas as nações entrarem em todos os templos e em todas as igrejas, e procurarem todos os cultos, com auxílio de todos os ritos, de todos os cânticos, de incenso e de música, conciliar os favores de Deus inacessível, não pensavam eles, porque a sua grandeza fosse imensa, mas na realidade porque não existia.
Olivier retomou a sua calma. No entanto, as mãos tremiam-lhe um pouco, à semelhança dessas falenas, cujas asas tremem sobre as flores.
- E aqui está, senhor, porque é que o forte oprime o fraco, porque é que as nossas orações ficam sem resposta, porque razão os bons são sacrificados. Eis a origem de todas as guerras e de todas as atrocidades. Cometemos acções que nunca virão a ser nem boas nem más, porque se cometem sob um céu vazio que jamais ouvirá as trombetas do juízo final."



Maurice Sandoz, O Limite, s. trad., Lisboa: Editorial Organizações, 1957, pp. 121-122.

Wednesday, February 14, 2024

EROS

 


"Temos de dar um lugar a essa necessidade essencial. Só através dos meandros do tempo podemos ser, podemos viver humanamente: só o conjunto do tempo compõe e completa a vida humana. Na origem a consciência é frágil - por causa da violência das paixões; um pouco mais tarde manifesta-se, devido à sua acalmia. Não podemos desprezar a violência, não podemos rir-nos da acalmia."


 Georges Bataille, As Lágrimas de Eros, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: sistema solar, 2012, p. 118. 

ASH WEDNESDAY

 


"As imagens concebidas como uma dupla forma de "celebração" e de "luto". Celebração de um acto profanante (iconoclasta) em relação à "aura" e luto (melancolia) pela perda desse paraíso (idílio) do sentido. "Mise à mort" do signo que assim se vê destituído, encarnado e profanado (enquanto lugar do "sagrado") mas que, ao mesmo tempo, sobre o suporte violento de uma "cruz" (o resto/vestígio da inscrição), se reconstitui como matéria - seja ela a de um corpo morto e apodrecido. Daí esse novo emblema (escudo) sacrílego: o luxo (material) de um corpo que se dá às leis da matéria e do tempo, à podridão do seu novo estatuto de signo. Cristo-crucificado (=signo), o último dos "humanos" ou o primeiro dos "híbridos"."


Fernando Guerreiro, Grãos de Pólen, Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 183. 

Tuesday, February 13, 2024

DO CÓMICO




"Qual a essência do cômico?
Um homem de perna de pau nos deixa indiferentes, polidamente indiferentes.
Mas três homens de perna de pau andando juntos na rua... Não, isso é demais! Por que estás rindo?"



Mário Quintana, "Caderno H" in Poesia Completa, org. Tânia Franco Carvalhal, Rio de Janeiro: col. Nova Aguilar / Nova Fronteira, 2009 (reimp.), p. 282.

MEMÓRIA

 



"Em nossa vida ainda ardem aqueles velhos, aqueles antigos lampiões de esquina
cuja luz não é bem a deste mundo...
Porque, na poesia, o tempo não existe!
Ou acontece tudo ao mesmo tempo..."


Mário Quintana, velório sem defunto - poemas inéditos, 2ª ed., Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1992, p. 30.

Monday, February 12, 2024

ENTRELUZ

 



“Na arqueologia de tal distribuição, a fotografia desempenha um papel de primeira ordem. Com ela a linguagem começa a falhar e a «fonte da vida» entreluz através dela como o Sol por entre as nuvens. De facto, ela opera um esgaçamento do simbólico, da sua planaridade  e compactidade. O real, a matéria começam a aparecer, mas sem ser catastroficamente, como na peste medieval. Através da fotografia pretendemos dar algumas das potencialidades que foram abertas pela maneira como destitui, esgarça ou fragmenta o simbólico.”


José Bragança de Miranda, Constelações - Ensaios sobre cultura e técnica na contemporaneidade, Lisboa: Documenta, 2023, p. 108. 

Sunday, February 11, 2024

DESPOSSUÍDOS

 


"É esta a única tese materialista. É preciso partir das adições, dos acrescentos, antes de qualquer resultado, antes de pensar no efeito - um pouco como fazem todos os despossuídos do poder. Este minimalismo da adição, sendo planetário, abole o dramatismo das morais e das ideologias. Tem-se confiança ou não. Tudo, como os livros, ou os filmes, ou os filhos entram no mundo, está sempre a ser enviado sem destino, embora seja predestinado. Mesmo aqueles que negam tudo, os que se constelam a utopia ou em Deus, ou na embriaguez, caem na mesma biblioteca infinita que recebe, lado a lado, a Divina Comédia e a Comédia Humana, O Banquete de Platão e a filosofia do toucador de Marquis de Sade. Todos, com as potências próprias, entram no mundo, enchem-no, desarranjam-no, originam choques e absorções de todo o género."


José Bragança de Miranda, Constelações - Ensaios sobre cultura e técnica na contemporaneidade, Lisboa: Documenta, 2023, p. 87. 

Saturday, February 10, 2024

ALMA

 



"- Que ideia foi essa? Na via da espiritualidade?
- Suponho que nunca saí dela. O homem é um cego que vai tacteando com o seu bordão pela existência fora, e basta saber-se cego para olhar para dentro de si. Tudo o que observe no seu eu, mar revolto ou lago sossegado, é alma."


Aquilino Ribeiro, Abóboras no Telhado - crítica e polémica, Amadora: Livraria Bertrand, 1963, pp. 275-276.


Friday, February 9, 2024

APOLÓNIA

 



"Na tarde calma e fria que circula
por entre os eucaliptos e a distância,
olhando as nuvens quase nada rubras
e a névoa consentida pelos montes,
névoa não subindo por não ser
fumo da vida que trabalha e teima,
e olhando uma verdura fugitiva
que a noite no céu queima tão depressa,
esqueço-me que há gente em cada parte,
gente que, de sempre, sofre e morre,
e agora morre mais ou sofre mais,
esqueço-me que a esperança abandonada,
a não ser de ninguém, é sempre minha,
esqueço-me que os homens a renovam,
que o fumo de seus lares sobe nos ares.
Esqueço-me de ouvir cheirar a Terra,
esqueço-me que vivo… E anoitece."



Jorge de Sena, "Coroa da Terra", in Trinta Anos de Poesia, Porto: Editorial Inova, 1972.

ORGANON


 "Teria razão, mas nem 8 nem 80. A verdade  que se regressou ao português, esta língua tida por muito rica à força do palhagal que a atufa, mas que é em suma o nosso instrumento de comunicação e expressão e há que tocar nele a ária necessária,  se queremos ser gente, como os cegos dos arraiais na sua sanfona, à falta do violino de Kubelick."


Aquilino Ribeiro, Abóboras no Telhado - crítica e polémica, Amadora: Livraria Bertrand, 1963, p. 34. 

Thursday, February 8, 2024

REALIDADE VIVA

 


"O mito, tal como o encontramos numa comunidade selvagem, quer dizer, na sua forma primitiva, não é unicamente uma história contada, mas uma realidade vivida. Não é a natureza da ficção, tal como a lemos hoje em dia num romance, mas é uma realidade viva, que se crê ter acontecido em tempos recuados, e que continua a influenciar o mundo e os destinos humanos. Este mito é para o selvagem o mesmo que, para um cristão, plenamente crente, a história bíblica da Criação, da Queda, da Redenção pelo sacrifício de Cristo na Cruz. Assim como a nossa história sagrada vive no nosso ritual, na nossa moralidade, assim como orienta a nossa fé e controla a nossa conduta, o mesmo se passa com o mito para o selvagem."

 

Bronislaw Malinowski, Magia, Ciência e Religião, trad. Maria Georgina Segurado, Lisboa: Círculo de Leitores, 1990, p. 101. 

Wednesday, February 7, 2024

ANIVERSÁRIO




"As primeiras chuvas
afagam os vidros. Nelas
perdura quanto da terra
receberam: odor de plantas,
tremulina, canto de pássaro.
E, sobretudo, a transparência,
o estremecimento da lágrima.
Limpo e sereno, o dia silencia.
Talvez suspenso de uma pergunta."


Flor Campino, Reflexão dos Dias, Porto: Afrontamento, 2022, p. 79.

O LIMITE

 



"Mas, meu caro senhor, e era aqui que eu queria chegar, para responder à sua pergunta: os dois relojoeiros, que fabricaram as obras-primas de Lubeck e de Estrasburgo, morreram há já séculos, e, no entanto, os seus prodigiosos brinquedos não é por isso que deixam de continuar a indicar, sem jamais se enganarem, a hora, a altura das marés, os signos do Zodíaco e as fases da Lua. E agora, meu caro senhor, vou confiar-lhe o mais íntimo do meu pensamento, o terrível segredo que me desespera. Deus morreu. E nós vivemos no mecanismo que continua a dar-nos tudo o que a sua sabedoria imaginou de maravilhoso, enquanto durou o seu poder criador.
Os fiéis dos templos, das sinagogas, das igrejas, das mesquitas, admiram a sua sabedoria divina, porque vêem as flores da Primavera transformarem-se em frutos no Outono, e porque vêem as neves de Inverno dar lugar ao primeiro germinar do trigo. Veneram, admiram esse Deus, pela sabedoria revelada em cada flor e cada fruto, em cada gota de chuva e em cada raio de sol, mas ignoram a medonha verdade. Deus morreu, e o que acreditam ser a divindade, não passa do terrível mecanismo que subsiste depois da desaparição do seu criador.
Fatigado, Georges Olivier calou-se."



Maurice Sandoz, O Limite, s. trad., Lisboa: Editorial Organizações, 1957, pp. 120-121.

Tuesday, February 6, 2024

ESSÊNCIA

 


"A essência das coisas é a [essência] do todo do nosso mundo, dos primeiros homens até ao fim dos tempos. Só pode ser encontrada se tivermos acesso a um ponto de vista fora do mundo, isto é, se for pressentido um outro universo."


Friedrich Schlegel, Conversa sobre a Poesia, trad. Bruno C. Duarte, Lisboa: Imprensa da Universidade de Lisboa, 2021, p. 143. 

Monday, February 5, 2024

EMOCIONADO

 



"Rabbi encostou-se à parede; pareceu-me que tinha empalidecido singularmente.
- Não esperava de si uma tal pergunta - respondeu-me. - Quando estava na cruz, o povo gritava-me: «Se és filho de Deus por que não desces?» E vem fazer-me uma pergunta inteiramente semelhante. Posso sair daqui no dia que quiser, visto que não tenho a dizer senão que não sou Jesus de Nazaré. Mas, há uma coisa bem mais cobarde que trair os outros, é trair-se a si próprio.
Fiquei extraordinariamente emocionado e para me defender de tamanha inabilidade insisti mais desastradamente:
- Quando estava na cruz e não descia era um ensinamento mortal. Aqui, o seu sacrifício fica ignorado, perde-se. Quem virá a ter conhecimento dele, alguma vez?
- Pensei que um dia alguém me viria ver e me diria: «Mestre, que posso fazer por si. Estou pronto a testemunhar». É o senhor esse homem?
Não esperava tal pergunta e respondi debilmente:
- Não sou livre, não sou para isso suficientemente livre."


Maurice Sandoz, "O Senhor Rabbi" in O Limite, s. trad., Lisboa: Editorial Organizações, 1957, p. 83.

Sunday, February 4, 2024

GAIA

 


"Pela manhã, uma serva da Rainha, chamada Perona e natural de França, foi à fonte, como de costume, buscar água para as mãos. Viu ali o Rei, mas não o reconheceu naqueles andrajos. Então, em árabe, ele pediu um pouco de água para beber, por amor de Deus, pois não conseguia levantar-se. Pegando numa caldeirinha que trazia, a rapariga encheu-a na fonte e entregou-a ao pedinte. Disfarçadamente, D. Ramiro meteu na boca meio camafeu, cuja outra metade estava com a Rainha, e ao beber a água, deixou-o cair lá dentro."


"Lenda de Gaia", in Fernanda Frazão, Lendas Portuguesas, vol. I, Lisboa: Amigos do Livro Editores, s.d., p. 125. 

Saturday, February 3, 2024

SÃO BRÁS

 



"Agricolau, Governador da Capadócia disse a São Brás que se persistisse em não sacrificar aos deuses romanos mandá-lo-ia lançar a um lago; ao que São Brás replicou que entraria no lago por sua própria vontade, e daria testemunha de como Deus pode livrar aqueles que confiam na sua protecção. Em seguida fazendo o sinal da cruz entrou no lago e as águas separaram-se em duas muralhas. São Brás levantou então a voz dizendo: «Venham a mim e provoquem-nos a que os protejam como o meu Deus me protege.» Desafiados desta forma oitenta pagãos aventuraram-se a descer com São Brás no lago, caindo sobre eles instantaneamente as duas muralhas de água e submergindo-os. No entanto São Brás tinha atravessado o lago, sendo tal o esplendor da sua fisionomia, que não havia quem lhe pudesse suportar o brilho."


Eça de Queirós, Dicionário de Milagres, Lisboa: Livraria Ler Editora, 1979, p. 40.

Friday, February 2, 2024

CANDEIAS

 




"Héstia, que cuidas para o soberano Apolo que acerta ao longe
da sua morada sagrada na sacrossanta Pito, 
sempre das tuas tranças pingam gotas fluídas de azeite.
Entra nesta casa, aproxima-te com firmeza
juntamente com Zeus conselheiro. Confia graça ao meu canto."


Hinos Homéricos, trad. José Pedro Moreira, Lisboa: Imprensa da Universidade de Lisboa, 2018, p. 101. 

Thursday, February 1, 2024

SONHADOR

 


"A alma do sonhador, à feição das almas dos crentes e dos místicos, alimentava-se da sua própria crença. Todo o mundo passara dentro dele; e quando a realidade o reclamava, o visionário saía do sonho com o atordoamento de um cego. Entrevista por essas órbitas enevoadas de miragem, a realidade ganhava proporções descomedidas, como sombras enormes provocadas por uma imensa luz obliquante."

Carlos Malheiro Dias, Os Teles de Albergaria, Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, p. 111.