Friday, May 31, 2024

JUÍZO

 



"quando chegar
ao término
o Universo

onde existirão
as coisas

que não existem?"


Alexandra Soares Rodrigues, retábulo das perguntas, Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2024, p. 17.

REFLEXÃO

 



"Está admirado por me ouvir falar assim, não é verdade, mas acredite, nós, mulheres, sempre confinadas aos limites estreitos do lar, reflectimos sobre muitas coisas, e também vemos e sentimos muito. É-nos dado adivinhar algumas coisas, já que as ciências exactas são nossas inimigas juradas. Sabemos ler os olhares e os comportamentos. Nunca dizemos nada, estranhamente, calamos, pois por regra exprimimo-nos mal e de modo inconveniente. As nossas palavras apenas conseguem irritar os homens, assoberbados com os seus negócios, mas nunca os convencem. Assim vivemos, nós mulheres, concordamos com o que fazem à nossa volta e com o que fazem de nós, falamos de trivialidades, o que apenas reforça a suspeita de que somos espíritos pequenos e subalternos, e estamos sempre contentes, é pelo menos o que eu penso."

Robert Walser, O Ajudante, trad. Isabel Castro Silva, Lisboa: Relógio D'Água, 2006, p. 188.

Thursday, May 30, 2024

DEUS ENIM

 



"Deus fez saber, desde a primeira mulher,
que da custódia do homem a mulher se nutriria."



Hildegard von Bingen, Flor Brilhante, introd. e trad. Joaquim Félix de Carvalho e José Tolentino Mendonça, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 187.

Tuesday, May 28, 2024

ANIVERSÁRIO

 



"Que grande a morte. O seu amor instiga
maturação. E dissemina veias
por estarmos a vê-las vir acima
incrementando o dentro da matéria.
Que é fruto, ventre. E, mesmo, às vezes, bilha
a acalentar a douração materna
que o pranto traz. A confirmar quão íntima
a luz exuma a projecção eterna
da sua natureza. Até a vigília
virar concentração, enfim, perpétua,
e o amor da morte abandonar, longínqua,
a passagem do mundo, sempre aberta."


Fernando Echevarría, Uso de Penumbra, Porto: Afrontamento, 1995, p. 160.

Monday, May 27, 2024

GENUINAMENTE

 


"Esta mulher provém de um círculo genuinamente burguês. Foi educada na utilidade e no asseio, nas esferas onde a utilidade e a prudência são os valores mais altos. Teve poucos prazeres românticos na sua vida, mas é por isso mesmo que os ama, que os guarda como um tesouro no fundo da alma."


Robert Walser, O Ajudante, trad. Isabel Castro Silva, Lisboa: Relógio D'Água, 2006, pp. 42-43.

Sunday, May 26, 2024

UNO/TRINO



"Sou Deus. Sei do Mistério e sei de Mim.
As minhas sensações não sei contê-las.
Sou velho professor. Ensino estrelas
No Dia, minha escola de marfim.

A Noite é dessa escola o quadro preto.
Para passar o Tempo e o que fiz
Com a Lua servindo-me de giz
Eu pretendo riscar o quadro preto.

A cor das minhas mãos é a Distância.
Em mim nunca existiu o meu passado.
Sou de Mim catedral e próprio monge.

Às vezes tento ver a minha infância.
Não conheci meus pais. Fui enjeitado.
Encontrou-me o Mistério à beira-longe."


Alfredo Guisado, Tempo de Orfeu, Coimbra: Angelus Novus, 2003. p. 118.

Saturday, May 25, 2024

EM VÉUS PAGÃOS

 



"Quando te vi eu fui o teu voar
E desci Deus pra me encontrar em mim.
Voei-me sobre pontes de marfim
E uma das pontes, Deus, em meu olhar!

Aureolei-me de oiro em sombra fria
E meus voos caíram-me destruídos.
Foram dedos de Deus os meus sentidos.
Meu Corpo andou ao colo de Maria.

Agora durmo Cristo em véus pagãos.
São tapetes de Deus as minhas mãos.
Regresso Ânsia pra alcançar os céus.

Ergo-me mais. Sou o perfil da Dor.
Sobre os meus ombros de Deus olho em redor
E Deus não sabe qual de nós é Deus!"



Alfredo Guisado, Tempo de Orfeu, Coimbra: Angelus Novus, 2003. p. 189.

Thursday, May 23, 2024

SENTIR AS CORES

 




"Sinto as cores, de Noite, terem medo
E acolherem-se à sombra do teu luto.
Eu fui um rei dos Godos, que em Toledo,
O Tejo adormeceu e ainda escuto.

Cercam-se de oiro as salas que habitei,
Oiro-cinza esquecido, oiro dormente.
E em minha Alma, na qual inda sou rei,
Cismo tronos caindo lentamente.

Buscam-me pajens-tristes nos caminhos;
E a minha lenda em sonhos-pergaminhos
Vai escrevendo, em silêncio, o meu cismar.

São outros os domínios que vivi.
Todas as coisas que eu outrora vi
Regressaram mistério ao meu olhar."



Alfredo Guisado, Tempo de Orfeu, Coimbra: Angelus Novus, 2003. p. 156.

Tuesday, May 21, 2024

AVULTA EFÍGIE

 



"Avulta efígie. Madruga
do peso do sono. E anda
a deixar transir-se a alma
na solidão de figura.

Solidão, aonde sobre
o mundo. Tão abstraído
que pulsa com só sentido
singular. E em cada nome.

Ou a inteligência a escuta
de inaudível está erguida.
Enquanto o seu brilho enluta

a ensombração. E a esquina
é lugar onde a evidência
se nutre da sua ausência."


Fernando Echevarría, Uso de Penumbra, Porto: Afrontamento, 1995, p. 108.

Sunday, May 19, 2024

SÍMBOLOS DE QUALQUER COISA

 


" - Pois bem, já estou a imaginar o que terá observado. Sim, é uma coisa horrível, mas, bem vistas as coisas, é também uma história muito antiga, um remoto mistério que se desenrola nos dias de hoje, nas nossas escuras ruas londrinas, em vez de ocorrer entre vinhedos e olivais. Sabemos já o que aconteceu àqueles que se atreveram a encontrar o Grande Deus Pã, e os mais informados sabem que todos os símbolos são símbolos de qualquer coisa, não meras arbitrariedades."


Arthur Machen, O Grande Deus Pã, trad. José Manuel Lopes, Parede: Edições Saída de Emergência, 2007, p. 59. 

Saturday, May 18, 2024

SOB A PAZ DO VÍNCULO

 



"Que a alma aguarda, sob a paz do vínculo,
que lhe toquem o eco para o corpo
vir ao de cima. E, aí, espírito,
ou ânimo em estado luminoso,
segue os meandros do sítio sucessivo
que acende a música. E a que ela só põe cobro.
E onde se inventa o andamento antigo
de quando os membros cumpriam o seu fogo."


Fernando Echevarría, Uso de Penumbra, Porto: Afrontamento, 1995, p. 131.

Friday, May 17, 2024

MOMENTANEIDADE


 

"Tal como a poesia do passado infinito e do futuro infinito, existe também a poesia deste instante imediato, poesia instante. A poesia é o fervilhar do Agora incarnado do antes e do depois. Na vibração da sua momentaneidade, ela suplanta as jóias cristalinas duras como pérolas, os poemas das eternidades. Não procures as qualidades das jóias eternas e imperecíveis. Procura antes a espuma branca do lodo a ferver, procura essa putrescência incipiente que é o desabar dos céus, procura a própria vida, que nunca se interrompe nem termina."


D. H. Lawrence, "Poetry of the Present", in Gencianas Bávaras e outros poemas, versão de João Almeida Flor, Lisboa: Na Regra do Jogo, 1983, p. 15. 

Thursday, May 16, 2024

PRESENTES

 


"No início de março, a infanta portuguesa recebeu três caixas de morcelas, embora se desconheça quem as enviou. Em 11 de janeiro de 1788, Martinho de Melo e Castro lamentou que os frascos de chá idos de Portugal para D. Mariana Vitória tivessem chegado partidos, impedindo o consumo «por temer que se não possam separar as pequenas partículas de vidro que estão misturadas». A nova remessa de chá chegou devidamente acondicionada, em 29 de janeiro. Ou seja, as advertências do ministro foram ouvidas. D. Maria I presenteava também a filha com doces não identificados, alguns destinados a D. Gabriel, hóstias, isto é, um outro doce; chá, um «caixotinho» de chocolate, proveniente de Itália, leques de Macau - alguns para a filha oferecer às cunhadas Maria Luísa e Maria Josefa Carmela - bules, peças de seda de Macau e de tecido de cassa, entre 1785 e 1787, segundo a correspondência da rainha."


Isabel Drummond Braga, D. Pedro Carlos - um Infante de Espanha em Portugal e no Brasil, Lisboa: Temas e Debates, 2023, p. 64. 

Wednesday, May 15, 2024

SENDO AO MUNDO

 



"Está sendo ao mundo. E esse só estar sendo,
como que sorve o espaço. Nos convoca, nos passos não, mas o enigma dentro,
que se subleva desde a mais remota
antiguidade. Qual se todo o tempo
apenas subsistisse nesta hora.
A ser está. O nosso pensamento,
sem nele nós, não é senão à volta
de ver a luz amando este relevo
com a extinção feliz da sua sombra."


Fernando Echevarría, Uso de Penumbra, Porto: Afrontamento, 1995, p. 41.

Tuesday, May 14, 2024

INEXPLICÁVEL

 


"Agora penso que, paradoxalmente, só através das coisas inexplicáveis é que a vida pode ser explicada. Pode considerar-se 'uma coincidência muito estranha' e passar à  frente, como se não houvesse mais nada a dizer, ou como se fosse o fim. Em suma, creio que o único caminho verdadeiro não tem saída."


Arthur Machen, O Terror, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Vega, s.d., p. 118. 

Sunday, May 12, 2024

O GRANDE ANSEIO

 



"Deus é o grande anseio que ainda não encontrou corpo,
mas que deseja a encarnação com um anseio grande e criativo.

E transforma-se por fim num cravo vermelho: Vede! Isso é Deus!
E transforma-se por fim em Helena ou Ninon: qualquer mulher
    encantadora e generosa,
na sua plenitude, em toda a sua beleza, é deus tornado visível,
e qualquer homem livre e sem medo é deus, o verdadeiro deus.

Deus não existe
para além das papoilas e do peixe-voador,
dos homens entoando canções e das mulheres penteando os
    cabelos ao sol.
As coisas belas são deus que veio para passar, como Jesus.
O resto, o desconhecido, é menos que um anseio."


D. H. Lawrence, Os animais evangélicos e outros poemas, trad. Maria de Lourdes Guimarães. Lisboa: Relógio d'Água, 1994, p. 227.

COMPREENDER

 


"Mas o que é o amor prudente? Os nossos métodos foram os dos sábios, mas também os dos teólogos, dos poetas, dos feiticeiros, dos magos e das crianças. No fim de contas, conduzimo-nos como bárbaros, preferindo a invasão à evasão. É que qualquer coisa nos dizia que de facto fazíamos parte das tropas estranhas, dos bandos fantomáticos conduzidos por trombetas, de ultra-sons, coortes transparentes e desordenadas que principiam a irromper sobre a nossa civilização. Nós estamos do lado dos invasores, do lado da vida que chega, do lado da mudança de era e de pensamento. Erro? Loucura? Uma vida de homem só se justifica pelo esforço, mesmo desafortunado, de melhor compreender. E melhor compreender é melhor aderir. Quanto mais eu compreendo, mais amo, pois tudo o que se compreende está certo."


Louis Pawels e Jacques Bergier, O Despertar dos Mágicos, trad. Gina de Freitas, Lisboa: Círculo de Leitores, 1975, pp. 475-476. 

Saturday, May 11, 2024

TEXTURA

 


"Textura deram deslumbrada ao pasmo.
A análise ajustou-se. Com tal brio
no seu rigor, que quanto
do objecto vinha desentranhava o brilho
de estar-se a ver. Mas desde um fundo opaco
que retratava o só volume visto.
Era o negrume de um olhar arcaico
que nem ainda se sabia antigo.
Até que, aos poucos, como que ouro abstracto
foi aquecendo a rotação de sítio
em que o objecto aparecia. Entrando
na atmosfera de um ver já desprendido.
Então foi ver que estremeceu. Os traços
de rotação do objecto no sombrio
fundo se vincam. Ou se estria o pasmo
de um ouro arcaico a deslumbrar o espírito."


Fernando Echevarría, Uso de Penumbra, Porto: Afrontamento, 1995, p. 18.

Friday, May 10, 2024

DIÁFANA LUZ

 



"Os homens, habituando os seus olhos a ver no meio de sombras, recusam-se a admitir que aquela mesma luz que os cega ilumina aquele outro homem a quem não cegou.
Como pode a diáfana luz que nos abre ao sentido do mais alto ser para alguns a espessa treva? Esta sugestiva interrogação gera a sua complementar e não menos sugestiva: como não seria assim?
Que estranha, porém, é essa vereda do pensamento! Pois dir-se-ia que a mesma luz esconde! Assim como na deslumbrante beleza que é a intrínseca harmonia e luminosa união de tudo quanto existe."


José Marinho, Aforismos sobre o que mais importa, Obras de José Marinho, vol. I, Lisboa: IN-CM, 1994, XXVIII, p. 206. 

Thursday, May 9, 2024

DESCASCO

 




"Descasco as imagens
e entrego-as na boca

como quem sabe
o corpo
mais importante
que a roupa"


António Reis, Poemas Quotidianos, Lisboa: Tinta da China, 2017, p. 40.

Wednesday, May 8, 2024

DO AMOR

 



"E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos
Desde o calor de maio aos frios de novembro!"


Cesário Verde, "Nós", in Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 141.

ALDEIA

 



"Anoitece na aldeia
e numa animação de fábula
as pessoas recolhem às casas.

Das chaminés pelos telhados
o fumo já faz parte da noite.

O amarelo das janelas
pontilha o preto.

O vento perdeu-se no bosque
e as crianças, nos cobertores
usufruem do medo.

Pelas imediações da aldeia
os lobos aproximam-se da realidade."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Turquesa, Lisboa: INCM, 2019, p. 231.

Monday, May 6, 2024

GEMUNDE

 




"Meu amigo, meu amigo, são palavras, um mundo só de palavras, tu bem sabes, eu bem sei, nós bem sabemos, são palavras, as palavras vivem nossa vida, vivemos nossa vida com palavras, para palavras vivemos, somos palavras, puros nomes, meu amigo, já reparaste, a nossa cabeça, a nossa vida, meu Deus, só palavras, já viste que nos devoram palavras, que palavras nos espreitam? Meu amigo, levanta-te, olha fora, sonda as paredes, apalpa o ar, estamos sós, diz, estamos sós, tranquilos, seguros, não há ninguém, garantes, tens a certeza? Mas as palavras, as palavras somos nós, as palavras decidem nossa vida, vivem nossa vida, matam nossa vida, estão armadas, pesadas, limadas, perfumadas, farpadas, esvaziadas, calculadas, usadas, mentidas, traídas, pervertidas, desconhecidas, proibidas, obrigadas.
Nós, meu amigo, nós, tu, eu, nós, sufocamos entre palavras, delas vivemos, delas morremos, nada podemos, nada somos capazes, não ousamos, não lutamos, não tentamos, com elas nada fazemos, nada com elas nasce por nós."


Maria Aliete Galhoz, Não Choreis, Meus Olhos, Lisboa: Edições Ática, 1971, p. 35.

Sunday, May 5, 2024

MÃES

 


"Ali, arde a substância onde Ana está ensinando a ler a Myriam, Ana sentada numa cadeira, com o livro aberto no colo, Myriam de pé, a olhar um dos primeiros textos, «que é um cavalo que vai saltar». Está sendo beijada na boca pelas letras, e inclina a cabeça para trás, pois a seta da clemência atravessou-lhe o vestido. «Quem for clemente, lê». Se a linguagem, segundo diz Ana, for aprendida na visão, ela, no fim, tirará da estante ardente a chave de leitura, e metê-la-á no bolso de Myriam."


Maria Gabriela Llansol, Um Beijo Dado Mais Tarde, Lisboa: Assírio & Alvim, 2016, p. 70. 

Saturday, May 4, 2024

RECORDAR

 




"Não esqueço os mortos

Não esqueço os heróis

Não esqueço
o luto
das famílias

todos silenciosos

Denuncio
publicamente
a nossa cobardia

e quem mente"


António Reis, Poemas Quotidianos, Lisboa: Tinta da China, 2017, p. 62.

Thursday, May 2, 2024

MATERIAIS POÉTICOS

 


"Há tanta poesia, e, no entanto, nada é mais raro do que um poema! É isso que faz a abundância de esforços, estudos, fragmentos, tendências, ruínas e materiais poéticos."


Friedrich Schlegel, Conversa sobre a Poesia, trad. Bruno C. Duarte, Lisboa: Imprensa da Universidade de Lisboa, 2021, p. 161. 

Wednesday, May 1, 2024

SAGRADO

 


"Sagrada é a aventura indefinidamente recomeçada, e no entanto indefinidamente progressiva, da inteligência sobre a Terra. E sagrado é o olhar que Deus lança sobre essa aventura, o olhar sob o qual se encontra suspensa essa aventura."


Louis Pawels e Jacques Bergier, O Despertar dos Mágicos, trad. Gina de Freitas, Lisboa: Círculo de Leitores, 1975, p. 196.