Wednesday, July 31, 2024

ANJOS

 


"Não tenho só um anjo
com asa estremecida:
embalam-me, tal como
ao mar as duas margens,
o Anjo que dá o gozo
e o que dá a agonia;
o de asas vacilantes
e o das asas fixas.

Eu sei, quando amanhece,
qual vai guiar-me o dia,
se o que tem cor de chama
ou o da cor da cinza
e entrego-me como alga
às ondas, resignada.

Só uma vez voaram
com as asas unidas;
no dia do amor,
no da Epifania.

untaram-se só numa
as asas inimigas
e ataram o nó
entre a morte e a vida!"



Gabriela Mistral, Antologia Poética, trad. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Teorema, 2002, p. 51.

PEQUENAS COISAS

 



"Viciei os olhos em pequenas coisas
desviei-os para longe e estendi a mão
na direcção de cinzas. O mundo desfaz-se
de pequenas coisas em pequenas coisas
os olhos viciados numa laçada
de irrealidade - ah pudesse haver sequer
uma borboleta cega chamando nas vidraças."


Carlos Poças Falcão, Coração Alcantilado, Guimarães: Opera Omnia, 2007, p. 35.

Monday, July 29, 2024

PROTESTOS

 


"Os dedos fortes dos deuses nocturnos batem nas persianas: trazem-nos os protestos dos astros."


Adelino Ínsua, Vocação de Pomar, Porto: ed. do autor, 1979.

Sunday, July 28, 2024

COMO UMA SÓ FLOR

 



"Dá-me essa mão e dançaremos;
dá-me essa mão e amar-me-ás.
Como uma só flor nós seremos,
como uma flor e nada mais.

O mesmo verso cantaremos
e ao mesmo ritmo dançarás.
Como uma espiga ondularemos,
como uma espiga e nada mais.

Chamas-te Rosa e eu Esperança;
mas o teu nome esquecerás,
porque seremos uma dança
sobre a colina e nada mais."



Gabriela Mistral, Antologia Poética, trad. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Teorema, 2002, p. 33.

Friday, July 26, 2024

NA PORTA




"Penso na porta onde deixei
passos alegres que não tenho
e nesse umbral vejo uma chaga
cheia de musgo e de silêncio."



Gabriela Mistral, Antologia Poética, trad. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Teorema, 2002, p. 54.

Thursday, July 25, 2024

SANCTÏAGO

 




"Si tú no li dissiesses que Sanctïago eras, 
tú no li demostrasses señal de mis veneras, 
non dañarié su cuerpo con sus mismes tiseras
nin yazdrié como yaze fuera por las carreras. 

Prisi muy grand superbia de la vuestra partida, 
tengo que la mi forma es de vós escarnida, 
matastes mi romeo con sus mismes tiseras
nin yazdrié como yaze fuera por las carreras."



Gonzalo de Berceo, Milagres de Nuestra Señora, ed. Vicente Beltrán, De Bolsillo/Área, 2002, p. 83. 

Tuesday, July 23, 2024

COROA

 



"A coroa do que ri, esta coroa de rosas, eu próprio ma coloquei a cabeça, santifiquei eu próprio o meu riso. Não encontrei ninguém que hoje fosse suficientemente forte para isso.
Zaratustra, o dançarino, Zaratustra, o leve, o que faz sinal batendo as asas, pronto para o voo, saudando todos os pássaros, pronto e disponível, divinamente frívolo:
Zaratustra, que diz a verdade, Zaratustra, que ri a verdade, nem impaciente nem absoluto, alguém que ama os saltos e os afastamentos: a mim próprio coloquei esta coroa."


Friedrich Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, IV, trad. M. de Campos,2.ª ed., Mem Martins: Publicações Europa-América, 1988, p. 294.

Monday, July 22, 2024

MADALENA

 


"A corte dos celestes moradores
Da virtude da cruz hoje se espante,
Que entra uma pecadora triunfante
A dar posse da gloria a pecadores.

Quem das lagrimas fez conquistadores,
Bandeiras da vitoria no ceo plante;
E a gozar dos tesoures se levante,
De que os pés de Jesus foram penhores.

Dele tira o remedio eficaz,
Que o ceo, a terra, a vida, a morte, a culpa,
Abre, apura, reforma, vence, apaga.

Alquimia, que da ofensa fez desculpa,
Diluvio, em que se salva quem se alaga,
São milagres de amor, que só Deos faz."


Frei Agostinho da Cruz, Sonetos e Elegias, ed. António Gil Rafael, Lisboa: Hiena Editora, 1994, p. 142.

Sunday, July 21, 2024

SALVAÇÃO

 



" - Compreendo muito bem. Também acho que se deve amar a vida acima de tudo.
- Amar a vida mais do que o sentido da vida?
- Certamente. Amá-la antes de raciocinar, sem lógica, como tu dizes. Só então se compreenderá o sentido. Eis o que entrevejo há muito tempo. Metade da tua missão já está realizada. Ivan: amas a vida. Ocupa-te da segunda parte, e encontrarás a salvação.
- Tens muita pressa em me salvar! Em que consiste essa segunda parte?
- Ressuscitar os teus mortos, que talvez ainda estejam vivos. Passa-me o chá, Ivan. Agrada-me esta nossa conversa..."



Fedor Dostoievski, Os irmãos Karamazov, vol. I, trad. Maria Franco rev. M. J. Meco, Lisboa: Círculo de Leitores, s.d., p. 243.

Saturday, July 20, 2024

MANIFESTO MÍNIMO

 




"Neste humanismo abafa-se - e não sem um tremor
armamo-nos dos verbos de um programa insubmisso:
calar e apagar, desconectar, desaparecer.
Manda a democracia que falemos? Nós calamos.
Exige o espectáculo mais brilho? Apagamo-nos.
Devemos estar em rede e ao serviço? Desligamo-nos.
A Coisa Absurda chama-nos? Ah, não comparecemos!


Carlos Poças Falcão, "Sombra Silêncio", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 499.

Friday, July 19, 2024

FOLHAS

 



"Recorda-te dos bosques de Academos
da sua arte antiga.
Mas hoje a suspeição não te permite
argumentar entre os acantos
eternizar por folhas de hera, concluir
junto aos abetos, subindo entre veredas
de sombras com as sombras pelas sombras.

Estás contaminado por saberes funestos:
que todo te agitas num vazio de electrões
e sem sentido arde qualquer coisa de passagem."



Carlos Poças Falcão, "Pequeno Livro Azul"(31), in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 386.

Thursday, July 18, 2024

DOS MILAGRES

 



" - Não perdi a razão, descansa - proferiu este com olhar fixo e quase solene. - Sei o que digo; creio nos milagres.
- Nos milagres?
- Nos milagres da Providência. Deus conhece o que se passa no meu coração, vê o meu desespero. Não deixará realizar-se semelhante horror. Creio nos milagres, Aliocha. Vai lá..."


Fedor Dostoievski, Os irmãos Karamazov, vol. I, trad. Maria Franco rev. M. J. Meco, Lisboa: Círculo de Leitores, s.d., p. 133.

Tuesday, July 16, 2024

DUELO

 


"Nós, Karamazov, somos todos assim. O insecto vive em ti, que és um anjo, e desencadeia tempestades. Porque a volúpia é uma tempestade, ou mais do que isso. A beleza é uma coisa terrível e assustadora. Terrível por ser indefinível, e não se pode defini-la porque Deus criou enigmas. Os extremos tocam-se, as contradições vivem a par. Sou pouco instruído, irmão, mas penso muito nestas coisas. Quantos mistérios! Por exemplo, a beleza. Não suporto que um homem comece pelo ideal da Madona e acabe no de Sodoma. Mas muito pior é trazer no coração o ideal de Sodoma e não repudiar o da Madona, sentindo por este o mesmo entusiasmo dos seus anos de inocência. Não, o espírito humano é muito vasto, gostaria de o reduzir. Como entendê-lo? O coração descobre a beleza na própria vergonha, no ideal de Sodoma, que é o da grande maioria. Percebes este mistério? É o duelo do Demónio e de Deus, sendo o coração humano o campo de batalha... Mas entremos no assunto."


Fedor Dostoievski, Os irmãos Karamazov, vol. I, trad. Maria Franco rev. M. J. Meco, Lisboa: Círculo de Leitores, s.d., p. 119. 

Monday, July 15, 2024

ANIVERSÁRIO


 



"Não é verdade
que Deus nos queira mal

mas nos seus caminhos
sempre são pisadas
sob amor
algumas ervas."


Carlos Poças Falcão, "Pequeno Livro Azul"(31), in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 372.

Sunday, July 14, 2024

A ARTE

 




"Faço descobertas que levam ao silêncio:
o esculpir das folhas, o burilar dos ramos, 
o canto do canteiro que lavra as cantarias.
Basta abrir rosáceas para que as pedras fiquem vivas
e o tempo abrase um pouco o espírito nos veios, 
o gesto nas matérias. Quando a mão se petrifica
alcança a maior arte, a arte do cantor
que se decanta. Talhar então as rosas
nessa textura branca, lavrar então os frisos
na petrificação: e fica-se a brilhar
da transparência encastoada - palavra
na palavra, a obra à mão, a face na portada."


Carlos Poças Falcão, "Movimento e Repouso", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 230.

EXISTÊNCIA ESCURA

 



"Já nada mais serei senão um homem:
engano por engano, esse me acalma.
Entretanto visto-me, abro o gavetão,
retiro de uma sombra roupa humana.
Forros, paramentos, a igualdade
do peito das camisas, essa falha
de qualquer filosofia. Aos pés da cama o sol
e terra nos sapatos: assim é o meu quarto,
lençóis ainda quentes, um modo de trocar
de temperatura. Ou a costura exacta
de outra respiração - fios, alinhavos,
pespontos de luz numa existência escura."


Carlos Poças Falcão, "Movimento e Repouso", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 215.

Saturday, July 13, 2024

JOELHOS

 



" - É a propósito de Diderot que Vossa Reverência diz isso?
- Não, não é a propósito de Diderot. Em especial, não minta a si mesmo. Quem mente a si mesmo e escuta a própria mentira acaba por não discernir a verdade, e perde o respeito por si e pelos outros. Não respeitando ninguém, deixa de amar, e para se ocupar e distrair, à falta de amor, abandona-se às paixões e aos prazeres grosseiros. Vai até à bestialidade dos vícios, e tudo originado pela mentira contínua. O que mente a si mesmo pode ser o primeiro a ultrajar-se. Às vezes sentimos certo deleite em nos insultarmos, não é assim? Um indivíduo sabe que ninguém o ofendeu, mas que ele próprio é que forjou uma ofensa, deturpando o sentido duma palavra, fazendo dum montículo uma montanha. Sabe-o, e no entanto é o primeiro a insultar-se até experimentar com isso grande satisfação; e por aí chega ao verdadeiro ódio... Mas não esteja de joelhos, vá sentar-se. Também essa atitude é falsa..."


Fedor Dostoievski, Os irmãos Karamazov, vol. I, trad. Maria Franco rev. M. J. Meco, Lisboa: Círculo de Leitores, s.d., p. 50. 

Friday, July 12, 2024

BRANDA



"Um movimento de incerteza move a alma:
posição ou velocidade, a voz as perde
por excessiva luz, ou porque é branda
a existência. Não pode ser predito
o movimento e mesmo o seu repouso
parece errar à morte, por decaimento.
Sobram os vestígios, as auras e os rastros, 
sistemas de ilusão. Memórias que desviam 
então todo o fulgor, aparecendo o mundo
sob o poder do tempo, cego de experiências.
Mas há conhecimento quando por exactidão
o exterior da terra visita a pedra oculta."


Carlos Poças Falcão, "Movimento e Repouso", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 219. 

Thursday, July 11, 2024

BENEDICTUS

 



"Perdida assim a ferramenta, o godo foi, a tremer, à procura do monge Mauro; contou-lhe o prejuízo que causara e penitenciou-se da culpa. Mauro tratou logo de comunicar o sucedido ao servo de Deus Bento. E Bento, homem de Deus, ouvida a narração, foi ao local, pegou da mão do godo no cabo e meteu-o na água. Imediatamente, o ferro veio à tona e se encaixou no cabo. E sem mais, Bento entregou-o ao godo com estas palavras:
- Aí tens! Trabalha, e não estejas triste!"


São Gregório Magno, Vida de S. Bento - II Livro dos Diálogos de S. Gregório, IX, Porto/Mosteiro de São Bento da Vitória: Edições Ora & Labora, 1993, p. 75.

Wednesday, July 10, 2024

NOS DIAS DE CHUVA

 



"Nos dias de chuva não é tão simples ver
a orientação dos cumes, os movimentos altos
que se manifestam numa incerteza estranha.
Banha-nos a água, em sossego, como plantas.
Países inteiros deixam-se molhar, assentem
na precipitação. Mas tudo desconhecem
dos caules que estremecem, das ramificações.
Apenas ficam escuros, trabalham, ficam escuros.
Durante as estações tanta coisa quer morrer!
Um aguaceiro, porém, encanta as folhas,
perfuma as argilas, e um dia é consumado
para exemplo da alma, sem sombras, mas difuso."


Carlos Poças Falcão, "Movimento e Repouso", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 217.

Monday, July 8, 2024

SOBRE A MESA

 



"Disponho sobre a mesa os objectos. Eles sonham
uma fronte, cantam a voz que os nomeia:
frutos, água, o sal cujo fulgor é semelhante
a uma estrela. Agora é o silêncio convocado
para estas raridades: um traço de luz, uma corrente
soprada sobre o mundo. A mesa assenta
quatro colunas de freixo sobre a terra e as maravilhas
vêm ao meu rosto, sonho aqueles ritmos
talhados, aqueles nomes transformados
num assombro. E a ordem alastra sobre a mesa
como uma fragrância, um alimento.
Há uma força que não desliga a voz,
os elementos, esses objectos que me purificam.
E verto agora o vinho e distribuo o pão
segundo as direcções: esta é uma casa
onde vou dormir e acordar, é uma estância
junto dos segredos. Os números invadem
a tranquilidade com a sua permanência
tranquila. Os olhos pousam. As mãos
não fendem o ar. Porque o mundo está disposto
como uma palavra sagrada."


Carlos Poças Falcão, "Rotações", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 156.

Sunday, July 7, 2024

CLEMENTE

 


"Todos os caracteres nobres não adquirem, sem doloroso aprendizado, a desconsoladora ciência que se chama cepticismo. Cada ilusão que se desvanece é um golpe fundo no mais sensível da alma, e os conflitos da vida social deixam feridas que só lentamente cicatrizam."


Júlio Dinis, Os Fidalgos da Casa Mourisca, Porto: Livraria Civilização, 1972, p. 271. 

Saturday, July 6, 2024

MORITUROS

 


"Eternidade:
os morituros te saúdam.

Valeu a pena farejar-te
na traça dos livros
e nos chamados instantes inesquecíveis.

Agónico
Em êxtase
em pânico
em paz
o mundo-de-cada-um dilata-se até às lindes
do acabamento perfeito.
Eternidade:
existe a palavra,
deixa-se possuir, na treva tensa.

Incomunicável
o que deciframos de ti
e nem a nós mesmos confessamos.

Teu sorriso não era de fraude.
Não cintilas como é costume dos astros.
Não és responsável pelo que bordam em tua corola
os passageiros da presiganga.

Eternidade,
os morituros te beijaram."


Carlos Drummond de Andrade, 65 Anos de Poesia, 2.ª ed., org. Arnaldo Saraiva, Lisboa: Edições «O Jornal», 1989, p. 188.

Friday, July 5, 2024

ÁRVORES

 



"Há sempre a laranjeira no quintal.
Ali a verde salsa. Além a hortelã.
Ao fundo o limoeiro. E um pardal.
Chove lentamente. Do caleiro
O marulhar da água. Sobre a casa
a sonolência. O gato a ronronar.
Abra-se a janela para me maravilhar.
Ainda sou pequeno. Estou ainda a acumular
tardes como essa, líquidas e verdes.
Passem muitos anos para aqui as inventar."


Carlos Poças Falcão, "O Número Perfeito", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 49.

Thursday, July 4, 2024

ESMERILHADA

 



"O padre apelou para o fidalgo, que nisto porém decidiu a favor do filho.
Os convidados para o jantar eram todos da mais genuína fidalguia da província. Por muitas daquelas veias andava glóbulo de sangue, que já pertencera a Fuas Roupinho ou a Egas Moniz e que por um mistério fisiológico, que só se dá naquela ermerilhada casta, conseguira transmitir-se inteiro de veias para veias, através de vinte gerações, com o fim providencial de manter inabaláveis os brios da raça."


Júlio Dinis, Os Fidalgos da Casa Mourisca, Porto: Livraria Civilização, 1972, p. 171.

Tuesday, July 2, 2024

NAS CASAS

 




"Hei-de entrar nas casas
também

como o silêncio

A ver os retratos dos mortos
nas paredes
um bombeiro um menino

A ver os monogramas bordados nos lençóis

os vestidos virados
os vestidos tingidos
os diplomas de honra
as redomas

E a caderneta de Socorros Mútuos
e Fúnebres

em atraso"



António Reis, Poemas Quotidianos, Lisboa: Tinta da China, 2017, p. 35.

Monday, July 1, 2024

RANGIDO (para a memória de Ismaïl Kadaré)

 



"A cada rangido da porta, Mark-Alem estremecia até à medula dos ossos.
- Os sonhos do primeiro período de servidão... - disse o arquivista apontando para as estantes correspondentes -, ou, como também se lhes chama, os sonhos da primeira servidão, a fim de os distinguir dos sonhos posteriores, ou seja, do cativeiro profundo. De facto, são muito diferentes uns dos outros. É tal qual como os primeiros amores, que diferem dos seguintes. E daqui até ao fundo desta sala são classificadas as pastas dos grandes delírios."


Ismaïl Kadaré, O Palácio dos Sonhos, trad. Gemeniano Cascais Franco, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992, p. 122.

CONTEMPLADORES

 



"Jorge sorria ao ouvir o irmão, e tornou placidamente:
- Que homem este! A poesia precisa de ter quem a entenda e quem a faça; e olha que nem sempre os que a entendem a fazem, nem os que a fazem a entendem. Esta pobre gente do campo é uma parte integrante dele; não o contemplam, contemplam-no. Que querias tu? Gostavas talvez mais de que em vez dessa gente indiferente, que trabalha, estivessem por aí os montes, os vales e as ribeiras povoadas de poetas contempladores como tu? Deves confessar que seria um campo bem ridículo esse. Se eu até, para que te diga a verdade, estou persuadido de que não encontraria encantos nos lugares muito visitados, que há por as quatro partes do mundo, onde, a cada momento, apreciadores ingleses, franceses, russos e alemães passeiam, soltando exclamações poliglotas, e onde o nosso entusiasmo nos é prescrito a páginas tantas do Guia do Viajante. O que torna os lavradores poéticos é a inconsciência com que eles o são."



Júlio Dinis, Os Fidalgos da Casa Mourisca, Porto: Livraria Civilização, 1972, p. 21.