Monday, September 30, 2024

GUARDAR SILÊNCIO

 



"Depois da pequena nenhuma alegria
dos emails recebidos,
plenos de palavras fechadas
com trinco,

ergui-me muitas vezes,
num tempo duvidoso, lamacento,
e as janelas da casa abri;

mas sob o traçado da folha de papel
devo guardar silêncio
de paisagens submersas,
de noites acesas pelo clamor dos
cigarros
esmagados na mesa?"



Jorge Gomes Miranda, Nova Identidade, Lisboa: Tinta da China, 2021, p. 52.

LÂMPADA

 



"Não sou fio de Ariadne,
estrela de David,
escada de Jacob ou
sombra de Virgílio.
Todavia, irmãos humanos,
dificilmente encontrareis
quem vos queira tão bem,
guiando-vos pelo dédalo do quarto.

Ainda que um simples gesto apague
o meu rasto no mundo,
o dia em que eu nasci permaneça
na memória da noite,
na solidão das janelas,
no abraços dos amantes."



Jorge Gomes Miranda, Nova Identidade, Lisboa: Tinta da China, 2021, p. 260.

Sunday, September 29, 2024

BATALHA

 



"Pedi-lhe que recitasse para mim. Miguel e os
anjos batalhavam o dragão. Eu vi subir
o mar sobre a areia do mar.
Veio semelhante ao leopardo e o
dragão deu-lhe o seu poder.
A serpente lançou para longe a ponta das
estrelas.
Varria ramos trémulos, vozes de crianças,
anjos feitos céu e folhagem. O rumor de gente que
passava. Tombou entre as penas do sono
move as folhas derrama caridade ao sombrio
passeante restos de coisas algum cão perdido."



João Miguel Fernandes Jorge, "Tronos e Dominações", in Obra Poética, vol. 6, Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 63.

ARCANJO

 




"Tinha a vida do mar. Perdiam-se as naus
pelo brilho da balança
nem calma ou lágrimas limpavam os seus olhos.
Bebeu café quente nas areias do deserto
Mojave. O rosto era semelhante à noite.
A porta tinha vários fechos. O tempo foi
destruindo uns e colocando novos.
A espada tornava à noite."



João Miguel Fernandes Jorge, "Tronos e Dominações", in Obra Poética, vol. 6, Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 60.

Saturday, September 28, 2024

TRIUMFAES

 



"Vês, na atalaia d' essa antiga fortaleza,
Aquele veterano, inválido, alquebrado,
Que, n'um sonho, revive as glórias do passado,
As batalhas triumfaes de homerica grandeza?

Pondo-lhe a fronte e o olhar reluz-lhe sem viveza;
Mas, se vê um pendão, que passa desfraldado,
Ou escuta um clarim, o trémulo soldado
Ergue a cabeça e o torso apruma com firmeza.

É como o velho herói meu velho coração!
Já fraco e sem ardor, depois de tanto amar,
Só vive de saudade e de recordação...

Mas, se passas por mim, no teu gracioso porte,
E, n'um claro sorrir, me envolve o teu olhar,
Logo o sinto, cá dentro, a palpitar mais forte!"



Luís de Magalhães, Antologia Poética, selec. José Valle de Figueiredo, Maia: Edição da Câmara Municipal da Maia, 1998, p. 209.

Friday, September 27, 2024

A FORÇA DE UM MUNDO VIVO (para a memória de Maggie Smith)

 




"Nem o vestido mais leve
substitui a frescura da madrugada.

O fogo cresceu à nossa volta,
e a macieira não lhe resistiu.

A casa manteve-se alta por dentro das flamas.
Os cães aflitos uivaram as primeiras noites.

E recordo: estranhos em casa,
rodeados por labaredas e desastres.

Mas serve-me o vestido
para lembrar a brisa, os lugares.

Teremos de reaprender a plantar,
a reanimar a paixão pelos vales,
a chamar de novo para cá os tordos.

Não se possui a terra. Habita-se nela.
Repara, dou-te sementes para recomeçar.
Esta é a força de um mundo vivo."


Elisabete Marques, Estranhos em Casa, Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 58.

IDEIA ESTÉTICA

 


"Atrás do símbolo o que é que está? Coisa nenhuma, em rigor. Antes, um estiramento do desejo, um querer dizer que não se fixa em nenhum pensamento determinado, mas que se vaza numa imagem originária, pairante, diz Kant, e de que podemos seguir os vestígios da sua irradiação na obra de arte e, também, o que não é demais sublinhar, nos conceitos filosóficos, que devem ser, assim, considerados formas simbólicas. No caso da obra de arte, essa imagem pairante é designada por ideia estética."


Maria Filomena Molder, As Nuvens e o Vaso Sagrado, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 17. 

Tuesday, September 24, 2024

QUARE ANIMA

 



"Por que razão a alma pode muitas vezes ser enviada da amada ao amado e do amado à amada?
É porque, segundo o testemunho de Séneca, «a alma encontra-se mais verdadeiramente onde ama do que no corpo que anima."


Anónimo de Erfurt, Tratado do Amor Verdadeiro - Tratactus de Vero Amore, trad. e ed. Sérgio Guimarães de Sousa e Luciana Braga, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2021, p. 41.

Sunday, September 22, 2024

EQUINÓCIO

 



"Hora-Abandono. Um desbotar de seda. 
Hora em que a Paisagem, de cansaço
Se encosta no luar que lhe dá o braço
E as árvores choram folhas na alameda.

Nódoa sem medo. É um passar a mão
Pelas franjas dum quieto reposteiro
Numa sala fechada. Cavaleiro
Que de falar na Cruz é mais pagão.

É como se a um menino se entregasse
A Paisagem doente pra brincar
E a desfolhá-la toda começasse.

Mão nervosa que aperte e que não cesse,
Boca que se entreabrisse pra falar
E que um gesto de Deus a emudecesse."



Alfredo Guisado, Tempo de Orfeu, Coimbra: Angelus Novus, 2003, p. 131. 

LAUTO

 




"Servia-se leitão assado, cujos tassalhos fumegantes exalavam um delicioso aroma. Duarte Vilares, que fora o primeiro a provar o acepipe, declarou sinceramente estar ali um manjar digno dos deuses e que, de facto, não podia morrer um país onde se preparavam tão saborosas iguarias. Só são grandes e duradoiros os povos que comem bem. A superioridade da Inglaterra, por exemplo, residia, não nas qualidades morais dos seus filhos, mas no «roastbeef» e no «jambon de York». A Itália fora batida na Abissínia porque as suas tropas de alimentavam a macarrão; e na alimentação depressiva dos chins, unicamente constituída por grãos de arroz, estava o segredo da vitória japonesa. Portugal vencera sempre, no continente, na Índia e no Brasil, porque levava no seu arsenal de guerra os grandes manjares suculentos, desde a orelheira de porco ao bacalhau com todos os matadores...
- E a derrota de Alcácer Quibir? - interrogou Énio Marinho.
- Foi a consequência de uma debilidade momentânea. Nada de aquilo teria sucedido se os soldados em vez de dez mil guitarras, tivessem levado dez mil farnéis."


Campos Monteiro, As Duas Paixões de Sabino Arruda, 2.ª edição, Porto: Livraria Figueirinhas, 1961, p. 175.

Saturday, September 21, 2024

EVA CASADA

 


"Os que são desta opinião devem repensar o valor daquele mesmo vocábulo: na verdade, o que é que significa 'mulher', logo nas primeiras páginas da Sagrada Escritura? Concluem, efectivamente, que representa o nome do sexo e não o da divisão do sexo. Visto que Deus a chamou esposa e mulher ainda antes de a mostrar ao homem, nela reside o sexo em geral e a divisão do sexo em especial. Eva recebeu o nome de mulher quando ainda solteira; assim, esta palavra tornou-se comum também às que ainda são virgens. Esta conclusão não é de admirar, uma vez que o apóstolo é inteiramente movido pelo mesmo espírito de toda a Sagrada Escritura em que figura também o Génesis. Usa a mesma palavra, quer se refira a Eva solteira, quer às donzelas."


Tertuliano, A Oração (De Oratione), trad. João Matos de Figueiredo, Estoril: Escola Salesiana, 2008, pp. 40-41. 

Friday, September 20, 2024

TEMPESTADE NA TERRA

 


 

"Qual o homem capaz de dizer que me conduz na minha viagem, quando surjo em toda a minha força, colérica e raivosa, quando faço ouvir o meu poder? Por vezes desloco-me maldosamente através da terra, queimo o património, destruo as casas; o fumo eleva-se, cinzento, por cima dos telhados: há barulho na terra, a angústia mortal dos homens. Quando repleta da água enviada pelos poderes do alto, agito a floresta e os prados floridos; quando derrubo árvores para prosseguir na minha vida errante, carrego nas minhas costas o que outrora cobria as formas dos habitantes da terra, carne e espírito em conjunto com a água. Dizei quem sou, ou como sou chamada, eu carrego estes fardos."


A Ruína e Outros Textos (poesia anglo-saxónica medieval), ed. e trad. Maria Inês Figueira, Lisboa: Tempus Editores, 1994, p. 46. 

A VIDA

 


"Decerto que até ali tinham sofrido a miúdo, algumas vezes chorado; mas tinham-se estreitado, confortado num amparo mútuo: nem um faltara ainda à noite ao benéfico abraço que fazia esquecer tudo. E afinal partia a melhor de todas, a morte vinha dizer que não havia felicidade absoluta para ninguém, que os mais valentes, os mais ditosos não triunfavam nunca a plenitude da sua esperança. A vida não existia sem a morte. Em dada ocasião pagavam a sua dívida de miséria humana, tanto mais caro quano maior era a porção de vida talhada, criando muito para viver muito."


Emílio Zola, Fecundidade, vol. II, trad. Daniel de Brito, Lisboa: Guimarães Editores, s.d., p. 193. 

Tuesday, September 17, 2024

FOGOS

 


"Comungo luz ao sol-poente em frisos de oiro...
Todo o meu Ser regressa a mim para voar...
Abranjo-me de mim. Rezo-me em sombra, a arfar
No meu olhar teu riso enferma em rosas de oiro.

Nos meus braços em cruz, perdido de ânsia expiro...
E quem encerrará meus olhos fitos de longe?
E a minha alma divagará em monge
Na voz doce, febril, das fontes que deliro...

Desce por mim a Tarde. Enluto o teu olhar. 
Tudo perdi. Sou claustro. Ardo em meu Ser a orar...
E o meu olhar abraça um horizonte em calma...

Tarde! Roxa presença. Enroxecendo ensombra...
Virgem do meu Sonhar, freira dos véus de sombra, 
Velhinha que teceu a ideia da minha Alma!"


Alfredo Guisado, Tempo de Orfeu, Coimbra: Angelus Novus, 2003. p. 147.

Monday, September 16, 2024

PROSÓDIA

 


"Fora da Revolução Francesa, não conhecia coisa alguma. Bastava, todavia. Pena era que desse silabadas, trocando o acento tónico de muitas palavras que lia e nunca ouvira pronunciar. Mas os seus ouvintes do Centro não eram mais fortes em Prosódia. Por isso o aplaudiram sinceramente o acolhiam com palmas vibrantes sempre que ele subia à tribuna, o interrompiam de quando em quando com «bravos» entusiásticos, e lhe entreteciam cá fora, nos comentários dos cafés, uma sólida reputação de Demóstenes popular."


Campos Monteiro, As Duas Paixões de Sabino Arruda, 2.ª edição, Porto: Livraria Figueirinhas, 1961, p. 94.

Sunday, September 15, 2024

LAMENTO

 



"Há uma lamentação nas coisas imperfeitas
como se amassem, como se recordassem.
Tudo pede um deus. E o lamento
é a própria imperfeição. A terra é fulgurante, ~
macera as criaturas, dá-lhes alimento,
venenos, temperaturas. E sobre os arenitos,
depõe restos de chuvas, as erosões gravadas
dos apagamentos. A dor deve doer
e os animais agitam-se, movem a cabeça
ao mais leve chamamento. Mas não há chamamento.
Apenas o sussurro de regresso ao horizonte:
um álamo negro, o deus, a voz humana."


Carlos Poças Falcão, "Movimento e Repouso", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 211.

DORES

 




"De estar aqui no mais frágil mundo
peço a rectidão, o rosto bem talhado
de uma presença austera. Espero aquela voz
que se resguarda, que tende a não falar
até um dia, de dia, para que um dia."



Carlos Poças Falcão, "Sombra Silêncio", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 469.

Friday, September 13, 2024

EVOLUÇÃO

 




" Acrescentou:
- Mas a normal evolução corre perigo. Certos loucos tentam salvar o ambiente físico e domesticar as doenças, outros querem fazer do homem um ser livre, autónomo! Programada há muito, a evolução não precisa de liberdade, a liberdade é uma doença, um resultado do excesso de oxigénio e da falta de radiações atómicas. E poderíamos até falar do homem como acidente infeliz da evolução, se não devêssemos antes considerá-lo um instrumento essencial. utilíssimo para criar o novo ambiente físico, o habitat do novo primata. Donde resulta um grande problema: a natureza utilizou o homem para corrigir o ambiente, degradá-lo. Mas pergunto: porque não criou logo de início um ambiente poluído, poupando o ingrato artifício de recorrer ao homem? Enfim, aparentemente a natureza desconhece o princípio da economia... - Aqui a condenação e o desgosto mostravam-se evidentes."


Augusto Abelaira, O Triunfo da Morte, Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981, pp. 103-104.

Thursday, September 12, 2024

CACTOS

 



"Espantas-te, querida amiga? Não acreditas? Mas acreditas naquele cacto, ali junto à janela embora te esqueças de o regar de vez em quando. E que vou levantar-me, desenferrujar um pouco as pernas... Queres ouvir, acredites ou não, o que diziam os outros oradores? Interessa-te?"


Augusto Abelaira, O Triunfo da Morte, Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981, p. 72. 

Monday, September 9, 2024

SOL

 


"Mas, se acreditares, só te peço uma coisa, não vejas nestes factos qualquer carácter simbólico, qualquer sentido para além deles. Os factos, nada mais querem significar, recuso-me a considerá-los substitutos de outra coisa, recuso-me a concluir que falar em A é uma forma de dizer B, que dizer pombas exprime paz. Um octógono é um octógono, não designa a eternidade. Um quadrado é um quadrado, não manifesta um sinal da terra. Um círculo é um círculo, não simboliza o céu. Por muito que isto pese a Carlos Magno e às suas pretensões de exprimir a missão do rei neste mundo através das igrejas de planta central. Das igrejas de planta central!
No presente texto diz-se somente o que se diz. Nada mais. Não vejam nele uma alegoria. Quando muito, uma alegoria que nada alegoriza. 
Já vai sendo tempo, julgo eu, de pôr de lado a ideia de que as coisas em vez de se designarem a si próprias, significam não sei quê. E Alberto Caeiro sabia-o. E também as palavras só se designam a si próprias, claro."


Augusto Abelaira, O Triunfo da Morte, Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981, pp. 53-54. 

Sunday, September 8, 2024

SEDE

 


"Pois quando acabamos de beber, todos os homens bons e honrados são nossos irmãos e todas as mulheres simpáticas nossas irmãs  - e não existe nenhuma diferença entre camponeses e comerciantes, judeus e cristãos; e ai daquele que afirmar o contrário!"


Joseph Roth, O Leviatã, trad. Álvaro Gonçalves, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 35. 

A GRANDE FESTA

 


"Prosseguindo. A nossa vida divide-se praticamente entre produção e consumo... O consumo na maior parte dos casos representa pouco, simples forma de preencher o tempo vazio, desprovido de substância, realidade artificialmente cronometrada  que desse modo deixou de ser um tecido espesso para se transformar numa série numérica, um nada pontuado por alguns acontecimentos cíclicos: as refeições, por exemplo. Mas há outra coisa: a intensidade, fazer da vida um prazer, uma grande festa. Devo confessar, todavia, que não nasci com grande vocação para a festa, a festa intuímo-la directamente com o tempo ou então transforma-se num simples ornamento sobreposto."


Augusto Abelaira, O Triunfo da Morte, Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981, p. 19. 

Friday, September 6, 2024

XISTO

 



"Certo ouro que há no tijolo.
Talvez o sol fundo,
mascavo, mastigado
em água e lenha
até que esteja doméstico.

Condiz com diamantes, rubis,
embora não vá em pulseiras
ou anéis e passe ao largo
de vitrines, cofres,
mantendo sempre o áspero,

seja em barracos, palácios,
ou na origem de
uma estranha mística:
se o homem veio do barro,
a alma é lama."



Eucanaã Ferraz, Desassombro, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2001, p. 104.

Thursday, September 5, 2024

A MEMÓRIA

 

´

"Com uma palavra
encontrada por acaso no meio do
frio das vozes técnicas

ou com um simples aceno
semelhante a um frasco
de compota caseira

reparar a memória
da água ferida
pelo derrame."


Jorge Gomes Miranda, Nova Identidade, Lisboa: Tinta da China, 2021, p. 314.

Tuesday, September 3, 2024

ANIVERSÁRIO

 




"No que diz respeito a Nissen Piczenik, que na altura igualmente foi ao fundo, não se pode dizer que se tenha simplesmente afogado como os outros. Pelo contrário -, e isto pode ser contado em boa consciência - regressara aos corais, ao fundo do Oceano, onde se enrosca o poderoso Leviatã.
E se quisermos acreditar no relato de um homem, que - como se costuma dizer - por um milagre escapou na altura à morte, então temos que comunicar que Nissen Piczenik, muito antes de os barcos salva-vidas estarem cheios, se atirou ao mar para junto dos seus corais, dos seus corais autênticos."



Joseph Roth, O Leviatã, trad. Álvaro Gonçalves, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p.75.

Monday, September 2, 2024

VASTA PLANÍCIE

 



"Durante o período de férias que o jovem foi autorizado a gozar em Progrody, o comerciante de corais quase não se afastou dele. O jovem achava estranhas as perguntas que o mais velho lhe fazia, como por exemplo:
«Pode-se ver o fundo do mar com o telescópio?»
«Não» - dizia o marinheiro - «com o telescópio vê-se apenas ao longe e não o fundo.»
«Pode um indivíduo» - continuava Nissen Piczenik a perguntar - «deixar-se cair até ao fundo do mar quando se é marinheiro?»
«Não» - dizia o jovem Komrower - «só quando se afoga é que se vai ao fundo do mar.»
«O capitão também não pode?»
«Também o capitão não pode.»
«Já viste alguma vez um mergulhador?»
«De vez em quando» - dizia o marinheiro.
«Os animais e as plantas do mar vêm às vezes à tona da água?»
«Apenas os peixes e as baleias, que na realidade não são peixes.»
«Descreve-me o mar» - dizia Nissen Piczenik.
«É uma imensidão de água» - dizia o marinheiro Komrower.
«E é tão vasto como um campo extenso, uma vasta planície por exemplo, em que não se vislumbra uma única casa?»
«É assim tão vasto - e ainda mais!» - dizia o jovem marinheiro."


Joseph Roth, O Leviatã, trad. Álvaro Gonçalves, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, pp. 37-38.

Sunday, September 1, 2024

PALÁCIO DE CRISTAL

 


"Os pés descalços, calejados, produziam rufos abafados e alegres nas tábuas ocas do estrado de madeira e no corredor vasto e frio da velha casa onde o comerciante vivia. O corredor abobadado conduzia a um átrio recatado, onde, entre pedras da calçada irregulares, vicejava musgo suave e, nas estações mais quentes, crescia erva espontânea. Aqui, as galinhas de Piczenik, encabeçadas pelos galos, de garbosas cristas vermelhas, como os corais mais vermelhos, iam amigavelmente ao encontro das camponesas."


Joseph Roth, O Leviatã, trad. Álvaro Gonçalves, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, pp. 23-24.