Saturday, January 31, 2009

MODIFICAÇÃO DE PALAVRAS

"Nenhuma das fontes mais antigas menciona se um golem é dotado de palavra ou não. Mas este autómato possuía o dom da memória e, sem reflectir, obedecia a todas as ordens mecanicamente, desde que estas fossem dadas a intervalos regulares. Caso contrário, o golem podia perder as estribeiras.
Os golens também cresciam, todos os dias, mais uns centímetros: aspirando, segundo parece, a alcançar a estatura gigantesca do Adão cósmico - e poder, assim, esmagar o seu criador e dominar o mundo.
- O tamanho dos golens - afirmou Utz - não tinha limite. Eram altamente perigosos.
Contava-se que os golens usavam uma tira de metal, chamada shem, à volta da testa ou debaixo da língua. O shem tinha inscrita a palavra hebraica emeth, a verdade divina. Quando um rabino queria destruir o golem por ele criado, apagava a primeira letra de modo a que emeth se lesse meth, 'morte', e o golem dissolvia-se.
- Estou a perceber - disse eu. - O shem era uma espécie de bateria?
- Pois.
- Sem a qual a máquina não funcionava.
- Também.
- E o rabino Loew...?
- Queria ter um servo. Era um bom homem de negócios. Queria um criado sem ter de pagar um salário.
- E que não lhe respondesse mal."


Bruce Chatwin, Utz, trad. José Luís Luna. Lisboa: Quetzal Editores, 1991, pp. 39-40.

Thursday, January 29, 2009

BATER À PORTA E NÃO ENTRAR



"Toda a vez que a dor te bater à porta, lembra-te disto: não é vergonha nenhuma, a dor não lesa a inteligência que me governa; a dor não a corrompe na sua dimensão racional, nem na sua dimensão social."


Marco Aurélio, Pensamentos, VII-64, trad. João Maia. Lisboa: Editorial Verbo, 1971, p. 91.

Wednesday, January 21, 2009

SEBASTIANUS REX



"A noite desce ainda somos jovens
Morrer é deixar isto a este lado
De nada serve já
o diálogo com vozes silêncios
na praia a nosso lado
Amanhã molharemos
o corpo noutro dia e beberemos
na bica costumada
onde poderá subitamente correr
uma canção conhecida

Cada dia mais morte que morte
haverá para nós no fim dos dias?"


Ruy Belo, Aquele Grande Rio Eufrates, 5ª edição, Lisboa: Editorial Presença, 1996, p. 100.

Monday, January 19, 2009

NO ANIVERSÁRIO DE POE

"There are some qualities - some incorporated things,
that have a double life, which thus is made
a type of that twin entity which springs
From matter and light, evinced in solid and shade,
There is a twofold Silence - sea and shore -
Body and soul. One dwells in lonely places,
Newly with grass o'ergrown; some solemn graces,
Some human memories and tearful lore,
Render him terrorless: his name's "No More."
He is the corporate Silence: dread him not!
No power hath he of evil in himself;
But should some urgent fate (untimely lot!)
Bring thee to meet his shadow (nameless elf,
That haunteth the lone regions where hath trod
No foot of man), commend thyself to God!"

Edgar Allan Poe, Poems and Essays, London: Everyman's Library, 1969, p. 21

Friday, January 16, 2009

A CIDADE CORROMPE A LUZ INCLINA (SONY STYLE)

"Um mancebo pálido e triste abeirou-se de mim: - Vês a noite cair? Daqui a pouco as ruas vão brilhar do frémito luminoso dos desejos das multidões. A cobiça e a luxúria porão brasas nas almas que incendiarão os olhos. As mulheres mostrarão nos bailes e nos teatros o maculado esplendor dos seios perfumados. Nos mostradores das lojas, à luz das lâmpadas eléctricas, as jóias farão percorrer nas mãos desejos de roubo. A Besta ergue-se - olha como se ilumina a cidade! Vês um clarão que nasce, sobe e se perde no Céu? Julgas que é dos candeeiros? Não, é das almas! é toda debruada de vermelho como as chamas dos incêndios. Como é bela a cidade quando é culpada!"


Henrique de Vasconcelos, "Tibidabo", in Flirts, Aveiro: Estante Editora, 1991, p. 160.

Tuesday, January 13, 2009

FÁBRICA DE NUVENS 1



"Como Orfeu, toco
a morte nas cordas da vida
e à beleza do mundo
e dos teus olhos que regem o céu
só sei dizer trevas.

Não te esqueças que também tu, subitamente,
naquela manhã, quando o teu leito
estava ainda húmido de orvalho e o cravo
dormia no teu coração,
viste o rio negro
passar por ti.

Com a corda do silêncio
tensa sobre a onda de sangue,
dedilhei o teu coração vibrante.
A tua madeixa transformou-se
na cabeleira de sombras da noite,
os flocos negros da escuridão
nevavam sobre o teu rosto.

E eu não te pertenço.
Ambos nos lamentamos agora.

Mas, como Orfeu, sei
a vida ao lado da morte,
e revejo-me no azul
dos teus olhos fechados para sempre."

Ingeborg Bachmann, O Tempo Aprazado, trad. João Barrento e Judite Berkemeier, Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, pp. 27-29.

Sunday, January 11, 2009

CAMINHOS JÁ ANTIGOS



"«Por quem sois -hão-de berrar-nos -, então não nos podemos revoltar: é como dois mais dois serem quatro! A natureza não nos pede a opinião; está-se nas tintas para o que queremos, e que estejamos ou não de acordo com as suas leis. Então, somos obrigados a tomá-la tal como é, tanto a ela como, consequentemente, aos seus resultados. A parede é, pois, uma parede, etc.» Mas eu, meu Deus, será que não me estou nas tintas para as leis da natureza e da aritmética, se, por uma ou outra razão, esses «dois mais dois são quatro» calharem não me agradar? Claro que não vou furar a parede com a testa se não tiver realmente força para a furar, mas o facto, por si só, de a parede ser de pedra e eu ser tão frágil não é razão para me submeter."


Fiódor Dostoiévski, Cadernos do Subterrâneo, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra. Lisboa: Biblioteca Editores Independentes, 2007, p. 26.

Friday, January 9, 2009

esplendorosa borboleta de sangue



"todos os monstros têm o teu
nome, de mais ou menos bocas, grandes ou
pequenas milhares de patas, sangue jorrando ou
líquenes desfeitos, todos os monstros têm
o teu nome e por ofício perseguem-me. entram
por mim no soalheiro mundo
dos homens, usam a minha incúria

eu sou
uma esplendorosa borboleta de sangue. um
ser que voa no coração

e cada monstro virá dizer que me ama e
saberá convencer-me a suportar os seus
tentáculos, a apreciar até os beijos nos
orifícios mucosos por onde expele a
língua e será capaz de me fazer querer o
esbracejar nocturno dos seus gestos

e eu direi o teu nome e nunca me
enganarei"


valter hugo mãe, folclore íntimo - poesia reunida. Maia: Cosmorama Edições, 2008, p. 16.

Sunday, January 4, 2009

DIA DE HOJE



"Hoje é domingo? Não e sim.
Para ser dia que se vive
mergulho as mãos em mim
e tiro todos os domingos que tive."


Luís Veiga Leitão, "Noite de Pedra" in Longo Caminho Breve - Poesias Escolhidas, selecç. Fernando Guimarães. Lisboa: IN-CM, 1985, p. 60.

Thursday, January 1, 2009

O QUE SEJA UM INÍCIO


"Esta luz súbita
que nasce das raízes
onde o implacável vive

Homens
tímidos passageiros
eu rangerei os dentes
até à violência extrema
em que a paz me aniquilará"


António Ramos Rosa, "Poemas Nus", in Obra Poética, vol. I. Lisboa: Fora do Texto, 1989, p. 45.