"Os dias e as noites adqüirem uma nitidez deslumbrante. As horas regressam à sua etimologia e constituem, de facto, de fato novo, orações."
"Os dias e as noites adqüirem uma nitidez deslumbrante. As horas regressam à sua etimologia e constituem, de facto, de fato novo, orações."
"Encontrámos, assim, uma primeira resposta, ainda bastante genérica, para as duas questões atrás expostas: no fundo, o «amor» é uma única realidade, embora com distintas dimensões; caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais. Mas, quando as duas dimensões se separam completamente uma da outra, surge uma caricatura ou, de qualquer modo, uma forma redutiva do amor. E vimos sinteticamente também que a fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto àquele fenómeno humano originário que é o amor, mas aceita o homem por inteiro, intervindo na sua busca de amor para purificá-la, desvendando-lhe ao mesmo tempo novas dimensões. Esta novidade da fé bíblica manifesta-se sobretudo em dois pontos que merecem ser sublinhados: a imagem de Deus e a imagem do homem."
Bento XVI, Deus Caritas Est, s. tr., Lisboa: Rei dos Livros, 2007, p. 8.
"Aqui chegados, não é um passo demasiado arriscado que nos leva ao sentimento, muitas vezes expresso na crítica e na filosofia contemporâneas, de que é a linguagem que usa o Homem, e não o Homem que usa a linguagem. Isto não significa que o Homem se encontra subjugado a uma das suas invenções, como nas histórias de ficção científica sobre computadores malignos e robôs que se autorreproduzem. Significa antes que o Homem nasce da palavra tal como nasce da natureza, e que, porque ele é condicionado pela natureza e descobre nela a concepção da necessidade, a primeira coisa que ele descobre na comunidade da palavra é a sua carta de alforria."
Northrop Frye, O Código dos Códigos - a Bíblia e a Literatura, trad. Judite Jóia, Lisboa: Edições 70, 2021, p. 48.
"«3. Ai de mim, a quem fui assemelhada? Não fui assemelhada a estas águas, porque também estas águas são férteis diante de Ti, Senhor. Ai de mim, a quem fui assemelhada? Não fui assemelhada a esta terra, porque também esta terra produz os frutos dela na altura certa e Te bendiz, Senhor.»"
"Evangelho de Tiago", in Evangelhos Apócrifos Gregos e Latinos, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2022, p. 25.
"Salieron del goteroso Pazo cuando ya anochecía, y sin que le comunicasen, sin que ellos mismos pudiesen acaso darse cuenta de ello, callaron todo el camino porque les oprimía la tristeza inexplicable de las cosas que se van."
Emilia Pardo Bazán, Los Pazos de Ulloa, Barcelona: Penguin Clásicos, 2015, p. 198.
"A passagem mais bela do Evangelho de Filipe diz-nos o seguinte: «Luz e trevas, vida e morte, direitos e esquerdos são irmãos e não se podem separar. Por isso, os bons não são bons; os maus não são maus; a vida não é vida; e a morte não é morte. Cada uma se dissolverá na sua natureza original; mas aquilo que é superior ao mundo não pode ser dissolvido, pois é eterno»"
"Revelou-me o Senhor o que a alma deve dizer quando chegar ao céu e como responder a cada uma das virtudes lá de cima - «Que me conheci a mim mesma» - diz - «e reuni-me a mim mesma a partir de toda a parte; e não semeei filhos para o príncipe, mas arranquei as raízes dele e reuni os membros dispersos; e sei quem tu és. É que eu sou.» - diz - «do número dos celestes.»"
"Fragmento em grego do Evangelho de Filipe", in Evangelhos Apócrifos Gregos e Latinos, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2022, p. 479.
"nesta outra, a superfície do mar sob a intensa reverberação da luz do sol que está por cima e se não vê também, aparece unida e apenas vibrante de cinco mil faíscas próximas umas das outras. no canto direito da fotografia, tu ergues-te, tu olhas (e eu nasço);"
Manuel Gusmão, dois sóis, a rosa - a arquitectura do mundo, Lisboa: Caminho, 1990, p. 79.
"Menino da mangedoura
não vi a estrela dos magos
mas os pastores me contaram
o teu recado
Venho do tempo da angústia
por caminhos vigiados
olhar o puro contorno
da tua face
Passei o denso limite
dos campos razos
e colhi húmidas flores
escarlates
molhadas do sangue novo
dos mortos por desagravo
à beira dos horizontes
desencontrados
Trago vestígios de lama
e largas nódoas de sal
e o eco solto na treva
de cada frase
Menino, dá-me guarida
porque te quero louvar"
Glória de Sant'Anna, Amaranto - Poesia 1951-1983, Lisboa: INCM, 1988, p. 218.
"A imaginação está sempre ligada a um desejo, quer dizer, a um valor. Só o desejo sem objecto é vazio de imaginação. Há presença real de Deus em todas as coisas que a imaginação não dissimula. O belo captura o desejo em nós e esvazia-o de objecto ao dar-lhe um objecto presente, proibindo-o, deste modo, de se dirigir para o futuro."
"Afirma a Baronesa de Staël, com razão, que amor verdadeiro e alegre não cabe neste mundo. Aos que levianamente a contradissessem, responderíamos com palavras também dela: - que há mais gente habilitada a entender Newton, que para tratar a fundo desta paixão."
António Feliciano de Castilho, A Chave do Enigma, Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1903, p. 85.
"Compunha eu tudo isto como as árvores ora murmuram, ora rugem, ora gemem varrendo o pó com as ramas, segundo passam por elas os zéfiros ou os furacões. Toda a diferença era: que a mim, as bonanças e as tempestades não me vinham de fora, formavam-se umas e outras inesperadamente na fantasia."
António Feliciano de Castilho, A Chave do Enigma, Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1903, p. 84.
"Creio que nos amávamos; mais que no sentido da amizade; mais até que no sentido do amor; no sentido do paraíso terreal, quando a humanidade vinha despontando resplandecente de inocência!"
António Feliciano de Castilho, A Chave do Enigma, Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1903, p. 20.
Florbela Espanca, Sonetos Completos, 8.ª ed., Coimbra: Livraria Gonçalves, 1950, p. 78.
Daniel Maia-Pinto Rodrigues, O Afastamento Está Ali Sentado, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 109.
"Os ricos não precisam de matar para encher a pança. Fazem os outros trabalhar, como eles dizem. Não praticam pessoalmente o mal, os ricos. Pagam. E tudo é feito para lhes agradar, e todos ficam muito contentes. Enquanto as mulheres deles são belas, as dos pobres são grosseiras. É um resultado que dura há séculos, modos de vestir à parte. Belas e graciosas, bem alimentadas, bem lavadas. Desde que a vida é vida, só a isto chegou."
Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao Fim da Noite, trad. Aníbal Fernandes, 6.ª ed., Lisboa: Ulisseia, 2014, p. 307.
"Quando deparamos com coisas: formas espaciais e cores, movimentos e destinos, o exterior e o interior da vida sob a forma da realidade, passam a associar-se a elas certas impressões e reverberações no sentir cujo tom particular nos diz que estamos em face da realidade - um tom particular nos diz que estamos em face da realidade - um tom que não emana dos conteúdos puros e qualidades das coisas que nos impressionam, mas sim do facto de serem reais."
Zeferino Silva, Bosque de Romãzeiras, Hexágono, 2019, p. 83.
"A vontade de Deus. Como conhecê-la? Se nos silenciarmos, se calarmos todos os desejos, todas as opiniões e se pensarmos com amor, com toda a alma e sem palavras: «Seja feita a vossa vontade», o que sentiremos dever fazer de seguida, sem hesitações (mesmo que, sob certos pontos de vista, possa constituir um erro), é a vontade de Deus. Pois se lhe pedirmos pão, não nos dará pedras."
Simone Weil, A Gravidade e a Graça, trad. Dóris Graça Dias, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 51.
António Gancho, O Ar da Manhã, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 140.
"Viver com as imagens é a nossa arte de viver. Reparem, sem o seu fulgor não saímos da simetria. E nesta nada vemos. Vamos presumir uma saída. Veremos o que o nosso sexo sonha. E este sonha apenas a parte da simetria que lhe cabe. A outra parte pertence à imagem que vai tomando vida. Avançam para ela e ela avança sobre nós. Esse movimento torna-nos obsessivos e inconstantes. Não podemos viver sem ele, mas a imagem não se mantém fixa. O fulgor desloca-se. Não podemos desejar o novo e querê-lo sem surpresa. Começa a irradiar do sexo e alteia-se. Do aqui evolui, difunde-se por todo o há que possamos admitir."
Maria Gabriela Llansol, Onde Vais, Drama-Poesia?, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 34.
"Tudo podia continuar. A guerra queimara uns, aquecera outros, tal como o fogo tortura ou conforta se estivermos dentro dele ou à sua frente. Temos de nos desenrascar, e acabou-se. Bem dizia Lola que eu estava muito mudado. A vida é uma coisa que nos torce e esmaga a face. Também a sua conta. A miséria é gigante, serve-se do nosso rosto como uma esfregona para limpar a sujidade do mundo. Mas ainda assim lá continua."
Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao Fim da Noite, trad. Aníbal Fernandes, 6.ª ed., Lisboa: Ulisseia, 2014, p. 209.
"A ideia da inocência olha em duas direcções. Ao recusar a participação numa conspiração, ficamos dela inocentados. Mas permanecer inocente pode ser também permanecer ignorante. A questão não está em escolher entre a inocência e o conhecimento (ou entre o natural e o cultural), mas antes numa escolha entre uma abordagem completa da arte que tente relacioná-la com todos os aspectos relevantes da experiência e a abordagem esotérica de um punhado de especialistas que formam um sacerdócio devotado nostalgicamente a uma classe privilegiada no seu declínio. (Declínio, não diante do proletariado, mas ante o novo poder das empresas e do Estado.) A verdadeira questão será: a quem deve pertencer o poder da arte do passado? Àqueles que conseguem aplicá-lo às suas próprias vidas ou a uma hierarquia cultural de especialistas de relíquias?"
John Berger, Modos de Ver, trad. Jorge Leandro Rosa, Lisboa: Antígona, 2018, pp. 45-46.
"Contudo, para ver que vem antes das palavras, e que nunca pode ser propriamente reproduzido, não é uma questão de uma reacção mecânica aos estímulos (Pode apenas ser pensado desse modo se isolarmos a pequena parte do processo que diz apenas respeito à retina.) Só vemos aquilo para que olhamos. Olhar é um acto de escolha. Desse acto resulta que o que vemos é posto ao nosso alcance, embora não necessariamente ao alcance da mão."
"Mas nos confins da cidade, onde ouvi dizer que começa a natureza, ela própria não está lá, e sim a natureza-antologia. Suponho que também sobre a natureza muito já tenha sido impresso para que ela possa continuar sendo o que costumava ser. No lugar da natureza difunde-se no arrabalde das cidades a natureza-conceito, o conceito de natureza. Uma mulher que, na orla da floresta, protege a vista com o guarda-chuva trazido para qualquer eventualidade, observando o horizonte, topa com certa mancha que tem a impressão de conhecer de algum quadro e exclama: "Parece uma pintura!". Trata-se de uma subordinação a um conceito rígido, circunscrito e bem definido de natureza como modelo pictórico. Subordinação, aliás, não tão rara; nossa relação com a natureza tornou-se falsa. Pois adquiriu um propósito. A tarefa que lhe cabe é a nossa diversão. Já não existe por si própria. É função de um objetivo. No verão fornece bosques onde podemos cochilar, lagos para remar, campos para nos bronzearmos, poentes para nos encantar, montanhas para o turismo e belezas naturais para atrair excursões de estrangeiros. Reduziu-se às páginas de um Baedeker."
Joseph Roth, Berlim, trad. José Marcos Macedo, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 15-16.
"É preciso esboçar o quadro como se estivesse o tempo coberto, sem sol e sem sombras pronunciadas. Não existem, verdadeiramente, nem tons claros nem sombras. Para cada objecto existe uma massa colorida, reflectida de todos os lados e maneiras diferentes. Imaginemos nesta cena que se passa ao ar livre, e numa atmosfera parda, um raio de sol que ilumine subitamente os objectos: teremos então tons claros e sombras, no sentido usual, que serão todavia puramente acidentais. A verdade profunda de tudo isto - que para alguns pode parecer singular - é a harmonia da cor na pintura. Coisa estranha!, mesmo entre os coloristas esta propriedade foi compreendida por bem poucos pintores!"
"Estamos fartos até ao tédio de ouvir dizer que o homem é bom, que o homem é mau. O homem não é bom nem mau de seu natural: é aquilo que o fazem ser; é o que realmente deve ser neste mundo, segundo a organização deste mundo, organização viciosa, aleijada, falsa, pecaminosa, quer o defeito começasse no paraíso terreal, quer nos multiplicados infernos que as idades se foram inventando através das civilizações."
Camilo Castelo Branco, Carlota Ângela, 7.ª ed., Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1924, p. 204.