Saturday, December 31, 2022

FINDA

 



"Os dias e as noites adqüirem uma nitidez deslumbrante. As horas regressam à sua etimologia e constituem, de facto, de fato novo, orações."



António Barahona, Raspar o Fundo da Gaveta e Enfunar uma Gávea, Lisboa: Averno, 2011, p. 162.

O SOMBRIO FOGO

 




"O roubador de água

repousa contra o muro do outono
o voo do oiro
o sombrio fogo

hesita
repousa sobre a terra
muro de deus
prata do vento inclinando do azul

a noite
cercado voo de corvos."


João Miguel Fernandes Jorge, "O Roubador de Água", in Obra Poética, 2ª ed., vol. 4, Lisboa: Editoral Presença, 1994, p. 260. 

AMONTOADOR DE NUVENS

 



"Amontoador de nuvens e de versos,
amante sem emenda e muito sério,
insensato e vidente, vítima d'assédio
de vis sons controversos.

Suspenso por um fio de saliva cósmica,
qual onda de bondade a invadir-me o corpo
se, taciturno e flébil, só recordo
tua beleza áulica.


Os sons passam, de vis, a ser ciência;
com surdas vibrações, vozes toantes,
e os livros, que palpitam nas estantes,
lêem-se à transparência.

Nesse momento fixo bem tua figura,
amontôo mais nuvens do cachimbo
e mais versos com fôrça d'exorcismo
e d'erotismo em fúria."



António Barahona, Raspar o Fundo da Gaveta e Enfunar uma Gávea, Lisboa: Averno, 2011, p. 63.

DESCIDA

 



"Soberbo guindaste
o que te traz das estrelas.
Desce agora por entre a noite,
meu amor, desce agora pelo luar.
Que eu, para te receber
já estou a acender bosques
no céu distante da infância.

Aproveitemos os clarões de magnésio,
não tarda que o rio
estreite as águas verdes,
não tarda que as aves todas
berrem doidas pelas margens."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Turquesa, Lisboa: INCM, 2019, p. 235.

TEOFANIA

 



"eu farei este rito, e depois partirei.
Partirei na minha obra e no meu trabalho
pelo contacto cada vez mais profundo
com as figuras da teofania que me foi dada, do
mesmo modo que a substância e o destino."


Maria Gabriela Llansol, Contos do Mal Errante, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 253.

DO AMOR (para a memória do Papa Bento XVI)

 


"Encontrámos, assim, uma primeira resposta, ainda bastante genérica, para as duas questões atrás expostas: no fundo, o «amor» é uma única realidade, embora com distintas dimensões; caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais. Mas, quando as duas dimensões se separam completamente uma da outra, surge uma caricatura ou, de qualquer modo, uma forma redutiva do amor. E vimos sinteticamente também que a fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto àquele fenómeno humano originário que é o amor, mas aceita o homem por inteiro, intervindo na sua busca de amor para purificá-la, desvendando-lhe ao mesmo tempo novas dimensões. Esta novidade da fé bíblica manifesta-se sobretudo em dois pontos que merecem ser sublinhados: a imagem de Deus e a imagem do homem."

 

Bento XVI, Deus Caritas Est, s. tr., Lisboa: Rei dos Livros, 2007, p. 8. 

Friday, December 30, 2022

SUBJUGAÇÃO



"Aqui chegados, não é um passo demasiado arriscado que nos leva ao sentimento, muitas vezes expresso na crítica e na filosofia contemporâneas, de que é a linguagem que usa o Homem, e não o Homem que usa a linguagem. Isto não significa que o Homem se encontra subjugado a uma das suas invenções, como nas histórias de ficção científica sobre computadores malignos e robôs que se autorreproduzem. Significa antes que o Homem nasce da palavra tal como nasce da natureza, e que, porque ele é condicionado pela natureza e descobre nela a concepção da necessidade, a primeira coisa que ele descobre na comunidade da palavra é a sua carta de alforria."

 

Northrop Frye, O Código dos Códigos - a Bíblia e a Literatura, trad. Judite Jóia, Lisboa: Edições 70, 2021, p. 48. 

 

Thursday, December 29, 2022

FÉRTIL

 


"«3. Ai de mim, a quem fui assemelhada? Não fui assemelhada a estas águas, porque também estas águas são férteis diante de Ti, Senhor. Ai de mim, a quem fui assemelhada? Não fui assemelhada a esta terra, porque também esta terra produz os frutos dela na altura certa e Te bendiz, Senhor.»"

 

"Evangelho de Tiago", in Evangelhos Apócrifos Gregos e Latinos, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2022, p. 25. 

Wednesday, December 28, 2022

PASSOS

 


"Salieron del goteroso Pazo cuando ya anochecía, y sin que le comunicasen, sin que ellos mismos pudiesen acaso darse cuenta de ello, callaron todo el camino porque les oprimía la tristeza inexplicable de las cosas que se van."


Emilia Pardo Bazán, Los Pazos de Ulloa, Barcelona: Penguin Clásicos, 2015, p. 198. 

A BELEZA

 



"A passagem mais bela do Evangelho de Filipe diz-nos o seguinte: «Luz e trevas, vida e morte, direitos e esquerdos são irmãos e não se podem separar. Por isso, os bons não são bons; os maus não são maus; a vida não é vida; e a morte não é morte. Cada uma se dissolverá na sua natureza original; mas aquilo que é superior ao mundo não pode ser dissolvido, pois é eterno»"


Evangelhos Apócrifos Gregos e Latinos, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2022, p. 646.


Tuesday, December 27, 2022

INOCENTES

 


"Revelou-me o Senhor o que a alma deve dizer quando chegar ao céu e como responder a cada uma das virtudes lá de cima - «Que me conheci a mim mesma» - diz - «e reuni-me a mim mesma a partir de toda a parte; e não semeei filhos para o príncipe, mas arranquei as raízes dele e reuni os membros dispersos; e sei quem tu és. É que eu sou.» - diz - «do número dos celestes.»"


"Fragmento em grego do Evangelho de Filipe", in Evangelhos Apócrifos Gregos e Latinos, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2022, p. 479. 

Monday, December 26, 2022

REVERBERAÇÃO

 



"nesta outra, a superfície do mar sob a intensa reverberação da luz do sol que está por cima e se não vê também, aparece unida e apenas vibrante de cinco mil faíscas próximas umas das outras. no canto direito da fotografia, tu ergues-te, tu olhas (e eu nasço);"

Manuel Gusmão, dois sóis, a rosa - a arquitectura do mundo, Lisboa: Caminho, 1990, p. 79. 

Sunday, December 25, 2022

GUARIDA

 



"Menino da mangedoura
não vi a estrela dos magos
mas os pastores me contaram
o teu recado

Venho do tempo da angústia
por caminhos vigiados
olhar o puro contorno
da tua face

Passei o denso limite
dos campos razos
e colhi húmidas flores
escarlates

molhadas do sangue novo
dos mortos por desagravo
à beira dos horizontes
desencontrados

Trago vestígios de lama
e largas nódoas de sal
e o eco solto na treva
de cada frase

Menino, dá-me guarida
porque te quero louvar"


Glória de Sant'Anna,  Amaranto - Poesia 1951-1983, Lisboa: INCM, 1988, p. 218. 

GRUTA

 



"1. E encontrou ali uma gruta e levou-a lá para dentro. E pôs à disposição dela os filhos dele e, saindo, procurou uma parteira hebreia da região de Belém.

2. Eu, José, caminhava e não caminhava. E olhei para cima, para o ar; e vi o ar espantado. E olhei para cima, para a abóbada do céu: e vi-a parada; e as aves do céu descansavam. E olhei para a terra: e vi uma tigela no chão e trabalhadores reclinados; e as mãos deles estavam na tigela. E os que mastigavam não mastigavam; e os que levantavam <comida> não <a> levantavam; e os que <a> levavam à boca deles não <a> levavam; mas os rostos de todos olhavam para cima.

3. Eu vi ovelhas a serem apascentadas; e as ovelhas estavam paradas. E o pastor levantou a mão para lhes bater com o bastão; e a mão dele ficou parada em cima. E olhei para a torrente do rio; e vi as bocas dos cabritos paradas e sem beberem. E todas as coisas, de repente, voltaram ao seu curso."


"Evangelho de Tiago", XVIII, in Evangelhos Apócrifos Gregos e Latinos, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2022, p. 57.

Saturday, December 24, 2022

NATIVIDADE



"Nasceu.
Foi numa cama de folhelho
entre lençóis de estopa suja
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das parede
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos Reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroas de espinhos
mas coroa de baionetas
postas até ao fundo
do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo."


Os Poemas de Álvaro Feijó, Castelo Branco: evoramons, 2005, p. 118.

FERMOSURA ESTREMADA

 



"Nossa Senhora

Ó fermosura estremada,
minha glória, meu prazer,
ó grandeza sublimada
que não tenho em que envolver
vossa carne delicada.
Tão pobre naceis sem nada,
pequeno, manso cordeiro,
que levo grande marteiro
por ver-vos em tal pousada
sem ter pano nem cueiro."


Baltasar Dias, Auto do Nascimento de Nosso Señor Jesu Christo, in Autos, Romances e Trovas, ed. Alberto Figueira Gomes, Lisboa: IN-CM, 1985, p. 76.

Friday, December 23, 2022

À BELEZA

 



"Não tens corpo, nem pátria, nem família
Nem te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi."


Miguel Torga, Odes, 4.ª ed., Coimbra: 1977, p. 65. 

Thursday, December 22, 2022

RESTITUIR

 


"E haver quem deplore a vida como breve, quando nela cabem destas imensidades! Grande ingratidão! Profundíssimo desconhecimento!
«Delícias são, mas delícias que passam!», vocifera um incontentado. Oh, que não passam! Quando se cuidam idas, no-las vem restituir a saudade. As próprias lágrimas, com que então as acolhemos, no-las reverdecem; outra vez as gozamos, porventura mais formosas que no seu primeiro ser; e mais formosas e mais queridas sempre, de aparição em reaparição. Negue-o quem quiser; não se lhe inveja a filosofia. Eu por mim sei que tudo isto é muito verdade."


António Feliciano de Castilho, A Chave do Enigma, Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1903, p. 92.

Wednesday, December 21, 2022

ANIVERSÁRIO

 


"Atingido,
o aparelho inclinou as grandes asas mortas
e tombou sobre a Terra, adormecido
na grande rigidez das coisas mortas.

Da viagem ao Sol
trouxera uma centelha
que no verde crisol
da pradaria imensa
de novo se inflamou em chama azul-vermelha.

E o vento, sem detença,
levou aos quatro cantos do universo
a cinza que restara.

É que o vento é senhor de uma loucura imensa,
porque o vento não pára.

...................................................................................

Quando a gente perder
do nosso sonho tudo,
venha a chama que despe
os corpos de veludo...

Que venha o vento agreste
e leve o que ficar em seus assomos.

Que nem a cinza reste
daquilo que nós fomos."


Os Poemas de Álvaro Feijó, Castelo Branco: evoramons, 2005, pp. 26-27.

Tuesday, December 20, 2022

VISÃO INSISTENTE

 



"Eu tenho da vida uma sensação doente, 
desarmonias moles, franjas espinais, 
um rumor absurdo da visão insistente
de aranhas, répteis, moluscos, viscos animais. 

Prendo as minhas impressões a um candeeiro.
A luz agarra-me, flutuo indecisamente
com alterações eléctricas, quebras de corrente, 
e acendo uma vela, respiro fumo, um cheiro

a cera, a mortos, ao nevoeiro de velhos portos.
Ouço, ao longe, o motor de pesados cargueiros
ancorados no rio, instáveis, os mastros tortos, 

e deito-me no sofá, com pulsações; salgueiros, 
plátanos, pálidos abetos à neve, orquídeas, 
a minhas respiração frágil como um busto de Fídias."



Nuno Júdice, Obra Poética (1972-1985). Lisboa: Quetzal Editores, 1991, p. 268. 

Monday, December 19, 2022

PRESENÇA REAL

 


"A imaginação está sempre ligada a um desejo, quer dizer, a um valor. Só o desejo sem objecto é vazio de imaginação. Há presença real de Deus em todas as coisas que a imaginação não dissimula. O belo captura o desejo em nós e esvazia-o de objecto ao dar-lhe um objecto presente, proibindo-o, deste modo, de se dirigir para o futuro."


Simone Weil, A Gravidade e a Graça, trad. Dóris Graça Dias, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 68.

Sunday, December 18, 2022

HABILITAÇÃO

 


"Afirma a Baronesa de Staël, com razão, que amor verdadeiro e alegre não cabe neste mundo. Aos que levianamente a contradissessem, responderíamos com palavras também dela: - que há mais gente habilitada a entender Newton, que para tratar a fundo desta paixão."


António Feliciano de Castilho, A Chave do Enigma, Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1903, p. 85. 

Saturday, December 17, 2022

BONANÇAS

 


"Compunha eu tudo isto como as árvores ora murmuram, ora rugem, ora gemem varrendo o pó com as ramas, segundo passam por elas os zéfiros ou os furacões. Toda a diferença era: que a mim, as bonanças e as tempestades não me vinham de fora, formavam-se umas e outras inesperadamente na fantasia."

 

António Feliciano de Castilho, A Chave do Enigma, Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1903, p. 84. 

Wednesday, December 14, 2022

ESPIRITUAL

 


"As abóbadas de um claustro encobrem tesoiros de sensibilidade inapreciáveis, inexauríveis, e bem mal avaliados dos profanos.
Cada um considera aqueles encerros místicos à luz dos seus próprios preconceitos. Um espiritual, vê ali um alfobre de plantas para o Céu; uma terra de Gessén alumiada de cima pelo sol, no meio de um Egipto enoitecido; um paraíso passageiro sotoposto ao Paraíso perenal, com a mais curta e direta serventia de um para o outro."


António Feliciano de Castilho, A Chave do Enigma, Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1903, p. 61.

Monday, December 12, 2022

TERREAL

 



"Creio que nos amávamos; mais que no sentido da amizade; mais até que no sentido do amor; no sentido do paraíso terreal, quando a humanidade vinha despontando resplandecente de inocência!"

 

António Feliciano de Castilho, A Chave do Enigma, Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1903, p. 20. 

Sunday, December 11, 2022

VIVER A SECO

 



"Viver a seco, que manicómio! A vida é uma aula onde a chatice está no vigilante, que aliás anda sempre a cocar-nos; custe o que custar, temos de parecer ocupados com qualquer coisa apaixonante, de outra forma aproxima-se de nós e dá-nos cabo do juízo. Dia que apenas seja um simples período de vinte e quatro horas, não é tolerável. Só deve ser um longo prazer quase insuportável, um longo coito, o dia, consentido ou forçado.
Acodem-nos ideias enfadonhas quando nos sentimos aturdidos pela necessidade, quando se esmaga, em cada um dos nossos segundos, o desejo de mil outras coisas e lugares."


Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao Fim da Noite, trad. Aníbal Fernandes, 6.ª ed., Lisboa: Ulisseia, 2014, p. 326.

Friday, December 9, 2022

VONTADE

 


" Genoveva - Mas há coisas que não podem acontecer pela vontade de Nosso Senhor!

P.e Cristóvão - Saberás tu dizer-me quais?

Genoveva - O Sr. P.e Cristóvão bem conhece que eu sou uma ignorante. Mas há coisas que fariam a gente descrer em Deus, se acontecessem pela sua vontade...

P.e Cristóvão - Cala-te, Genoveva, que tu és uma ignorante e todos o somos! Julgamos saber muito porque ainda sem sonhamos o que nos falta saber. Até dentro de nós está o mistério que está em volta..."


José Régio, Benilde ou a Virgem-Mãe, Porto: Livraria Portugália, 1947, pp. 44-45. 

Thursday, December 8, 2022

FRIEZA

 



"Os teus olhos são frios como as espadas,
E claros como os trágicos punhais;
Têm brilhos constantes de metais
E fulgores de lâminas geladas.

Vejo neles imagens retratadas
De abandonos cruéis e desleais,
Fantásticos desejos irreais,
E todo o oiro e o sol das madrugadas!

Mas não te invejo, Amor, essa indiferença
Quer viver neste mundo sem amar
É pior que ser cego de nascença!

Tu invejas a dor que vive em mim!
E quanta vez dirás a soluçar:
«Ah! Quem me dera, Irmã, amar assim...»"


Florbela Espanca, Sonetos Completos, 8.ª ed., Coimbra: Livraria Gonçalves, 1950, p. 78. 

Wednesday, December 7, 2022

BÁRBARA

 




"Ressurgem relâmpagos, inquieta-se
a chuva, tarda
que arda o cabelo,
espantado animado cabelo
debruçando-se de todos os cumes,
sibila o sol a pôr-se
e o lobo distraindo-se
ilumina à noite o seu grande dorso.

Bruxuleia o passado, entendem
as asas a debilidade dos pássaros.
esparsa-se em peças o tempo, precipitam-se-me
os fémures em mergulhos alados."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, O Afastamento Está Ali Sentado, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 109. 

Tuesday, December 6, 2022

ALEGRIA

 


"Os ricos não precisam de matar para encher a pança. Fazem os outros trabalhar, como eles dizem. Não praticam pessoalmente o mal, os ricos. Pagam. E tudo é feito para lhes agradar, e todos ficam muito contentes. Enquanto as mulheres deles são belas, as dos pobres são grosseiras. É um resultado que dura há séculos, modos de vestir à parte. Belas e graciosas, bem alimentadas, bem lavadas. Desde que a vida é vida, só a isto chegou."

 

Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao Fim da Noite, trad. Aníbal Fernandes, 6.ª ed., Lisboa: Ulisseia, 2014, p. 307. 

Sunday, December 4, 2022

REVERBERAÇÃO




"Quando deparamos com coisas: formas espaciais e cores, movimentos e destinos, o exterior e o interior da vida sob a forma da realidade, passam a associar-se a elas certas impressões e reverberações no sentir cujo tom particular nos diz que estamos em face da realidade - um tom particular nos diz que estamos em face da realidade - um tom que não emana dos conteúdos puros e qualidades das coisas que nos impressionam, mas sim do facto de serem reais."

Georg Simmel, Filosofia da Aventura e Outros Textos, trad. Helena Topa, Lisboa: Relógio D'Água, 2019, p. 24.

Saturday, December 3, 2022

ESTRANHEZA

 



"Ao passo que todas as coisas do mundo real podem ser incorporadas na nossa vida como meios e materiais, a obra de arte existe por si mesma, simplesmente. Mas todas as coisas que nos oferece o mundo real permanecem para nós, em última análise, profundamente estranhas. E mesmo a nossa necessidade de dar e receber depara-se com uma irremediável intransponibilidade que impossibilita a aproximação entre a nossa alma e a do outro.
Só a obra de arte pode ser inteiramente apropriada por nós; só vertida nesta forma pode uma alma tornar-se completamente acessível para nós. Ao ser mais por si mesma, na sua independência, do que qualquer outra coisa, a obra de arte é para nós mais do que qualquer outra coisa."


Georg Simmel, Filosofia da Aventura e Outros Textos, trad. Helena Topa, Lisboa: Relógio D'Água, 2019, p. 10.

Friday, December 2, 2022

PELA TARDE

 



"Pela manhã, procura as palavras que expliquem o dia. Vão chegando
uma a uma. Todas trazem gotas de água, pingos de sal, a cor do rubi,
pétalas breves mas pétalas e as formas todas da espera.

Pela tarde, uma a uma, vão-se recolhendo. Mas as formas da espera
continuam a tremeluzir."


Zeferino Silva, Bosque de Romãzeiras, Hexágono, 2019, p. 103.

Thursday, December 1, 2022

OS SONHOS

 



"Já não sabemos das vinhas onde dormimos
mas os sonhos vagueiam
chispa de água cheiros primordiais.

Do oiro das colinas percebemos o tamanho dos dias
a ternura do crepúsculo
olhos ainda cheios de uvas maduras.

E é pouco o que peço
poder olhar o horizonte
voar em ventos lavados

descansar nos campos abertos
os outeiros beijarem as nuvens.
E saber que isto nos basta."


Zeferino Silva, Bosque de Romãzeiras, Hexágono, 2019, p. 73. 

Tuesday, November 29, 2022

ARRUMAR

 



"Às vezes é tudo claro como o voo das aves
sabem do vento que não as desarruma.

O sítio certo das coisas devia ser o das aves
não lavram nem semeiam
conhecem as sementes.

Às vezes sabemos onde nos fomos deixando
voltamos esquecemo-nos do vento
espalhou-nos por toda a parte
fragmentos de pouco jeito.

Poucas vezes as coisas são claras
talvez tenham alguma luz
os bocadinhos do tempo bom
abrigados na arca do peito."


Zeferino Silva, Bosque de Romãzeiras, Hexágono, 2019, p. 45. 

Sunday, November 27, 2022

ENCONTRO

 




"Pressentimos que, nas nossas vidas, há um anúncio próximo, uma fusão inexorável, e cultivamos o abrandamento do tempo, o afastamento do instante, para tornarmos manso o lance inevitável.
Damos nomes ao que somos juntos, reconhecendo que o Amor é o seu único nome, mas tememos dizê-lo para não apressar a morte. 
Não somos daqui, não somos estrangeiros aqui, nem aqui nos sentimos em exílio. O lugar do nosso nascimento estará connosco até ao fim. E, mesmo isso, não o dizemos abertamente. 
Sabemos que nada é indiferente no nosso encontro verdadeiro de pessoas. Mas é tão grande o que se anuncia que preferimos calar o que vemos anunciado. O nosso encontro é original, profético e único. Faz parte das origens, inscreve-se num desígnio que ultrapassa em muito os amantes envolvidos e, no entanto, envolve apenas os que trocaram entre si essa palavra."


Maria Gabriela Llansol, Onde Vais, Drama-Poesia?, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, pp. 286-287. 

AS COISAS

 



"As coisas parecem perfeitas quando soubemos dizê-las.

Mesa virada para nascente, às primeiras aves.
Os pássaros dão ao pão a música das flores;
a tília é sol mel sereno.

É bom este silêncio."


Zeferino Silva, Bosque de Romãzeiras, Hexágono, 2019, p. 83. 

Friday, November 25, 2022

CONHECER

 


"A vontade de Deus. Como conhecê-la? Se nos silenciarmos, se calarmos todos os desejos, todas as opiniões e se pensarmos com amor, com toda a alma e sem palavras: «Seja feita a vossa vontade», o que sentiremos dever fazer de seguida, sem hesitações (mesmo que, sob certos pontos de vista, possa constituir um erro), é a vontade de Deus. Pois se lhe pedirmos pão, não nos dará pedras."


Simone Weil, A Gravidade e a Graça, trad. Dóris Graça Dias, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 51. 

Thursday, November 24, 2022

FUSO

 



"Estou cansado não conduzo
porque é meu fado este fuso?
Este fuso da vida que me é idolatrado
tem-me a vida perdida por meu fado.
Quero a vida quero o lado bom da vida
quero a morte suprimida
quero a morte nesse dia
quero a vida nostalgia
quero morrer no dia certo
quero viver de ti mais perto
Estou cansado não conduzo
porque é na morte este fuso?"

António Gancho, O Ar da Manhã, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 140. 

Wednesday, November 23, 2022

SIMETRIA


 "Viver com as imagens é a nossa arte de viver. Reparem, sem o seu fulgor não saímos da simetria. E nesta nada vemos. Vamos presumir uma saída. Veremos o que o nosso sexo sonha. E este sonha apenas a parte da simetria que lhe cabe. A outra parte pertence à imagem que vai tomando vida. Avançam para ela e ela avança sobre nós. Esse movimento torna-nos obsessivos e inconstantes. Não podemos viver sem ele, mas a imagem não se mantém fixa. O fulgor desloca-se. Não podemos desejar o novo e querê-lo sem surpresa. Começa a irradiar do sexo e alteia-se. Do aqui evolui, difunde-se por todo o há que possamos admitir."

 

Maria Gabriela Llansol, Onde Vais, Drama-Poesia?, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 34. 

Tuesday, November 22, 2022

PUREZA

 




"Tudo o que é vil ou medíocre em nós revolta-se contra a pureza e tem necessidade, para salvar a existência, de macular essa pureza.
Macular é modificar, é tocar. O belo é aquilo que não podemos desejar mudar. Assumir poder sobre algo, é macular. Possuir, é macular.
Amar com pureza é consentir na distância, é adorar a distância entre si e aquilo que amamos."


Simone Weil, A Gravidade e a Graça, trad. Dóris Graça Dias, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 68.

Monday, November 21, 2022

MUNDO

 


"Tudo podia continuar. A guerra queimara uns, aquecera outros, tal como o fogo tortura ou conforta se estivermos dentro dele ou à sua frente. Temos de nos desenrascar, e acabou-se. Bem dizia Lola que eu estava muito mudado. A vida é uma coisa que nos torce e esmaga a face. Também a sua conta. A miséria é gigante, serve-se do nosso rosto como uma esfregona para limpar a sujidade do mundo. Mas ainda assim lá continua."


Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao Fim da Noite, trad. Aníbal Fernandes, 6.ª ed., Lisboa: Ulisseia, 2014, p. 209. 

Sunday, November 20, 2022

SUGESTÃO

 


"A ideia da inocência olha em duas direcções. Ao recusar a participação numa conspiração, ficamos dela inocentados. Mas permanecer inocente pode ser também permanecer ignorante. A questão não está em escolher entre a inocência e o conhecimento (ou entre o natural e o cultural), mas antes numa escolha entre uma abordagem completa da arte que tente relacioná-la com todos os aspectos relevantes da experiência e a abordagem esotérica de um punhado de especialistas que formam um sacerdócio devotado nostalgicamente a uma classe privilegiada no seu declínio. (Declínio, não diante do proletariado, mas ante o novo poder das empresas e do Estado.) A verdadeira questão será: a quem deve pertencer o poder da arte do passado? Àqueles que conseguem aplicá-lo às suas próprias vidas ou a uma hierarquia cultural de especialistas de relíquias?"

 

John Berger, Modos de Ver, trad. Jorge Leandro Rosa, Lisboa: Antígona, 2018, pp. 45-46. 

Saturday, November 19, 2022

PORTA



"Os intelectuais soen muy ben zurrar
na literatura na poesia no café
Ai how ridiculous ridiculous they are
é verdade ou não, Lord Byron, é ou não é?
Nas pastelarias nas igrejas no café
ai sobretudo sobretudo no café
é verdade ou não é, Lord Byron, é verdade ou não é?
Ai how ridiculous they are
zurrar o sabem no da fror
tempo em que as burras muito hão-de ganhar
como é de D. Dinis (com modificações) o teor"


António Gancho, O Ar da Manhã, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 16. 

 

Friday, November 18, 2022

OLHAR (décimo sexto ano)

 


"Contudo, para ver que vem antes das palavras, e que nunca pode ser propriamente reproduzido, não é uma questão de uma reacção mecânica aos estímulos (Pode apenas ser pensado desse modo se isolarmos a pequena parte do processo que diz apenas respeito à retina.) Só vemos aquilo para que olhamos. Olhar é um acto de escolha. Desse acto resulta que o que vemos é posto ao nosso alcance, embora não necessariamente ao alcance da mão."

John Berger, Modos de Ver, trad. Jorge Leandro Rosa, Lisboa: Antígona, 2018, p. 18. 

Thursday, November 17, 2022

NATUREZA-CONCEITO


 "Mas nos confins da cidade, onde ouvi dizer que começa a natureza, ela própria não está lá, e sim a natureza-antologia. Suponho que também sobre a natureza muito já tenha sido impresso para que ela possa continuar sendo o que costumava ser. No lugar da natureza difunde-se no arrabalde das cidades a natureza-conceito, o conceito de natureza. Uma mulher que, na orla da floresta, protege a vista com o guarda-chuva trazido para qualquer eventualidade, observando o horizonte, topa com certa mancha que tem a impressão de conhecer de algum quadro e exclama: "Parece uma pintura!". Trata-se de uma subordinação a um conceito rígido, circunscrito e bem definido de natureza como modelo pictórico. Subordinação, aliás, não tão rara; nossa relação com a natureza tornou-se falsa. Pois adquiriu um propósito. A tarefa que lhe cabe é a nossa diversão. Já não existe por si própria. É função de um objetivo. No verão fornece bosques onde podemos cochilar, lagos para remar, campos para nos bronzearmos, poentes para nos encantar, montanhas para o turismo e belezas naturais para atrair excursões de estrangeiros. Reduziu-se às páginas de um Baedeker."

 

Joseph Roth, Berlim, trad. José Marcos Macedo, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 15-16. 

Wednesday, November 16, 2022

COBERTO


"É preciso esboçar o quadro como se estivesse o tempo coberto, sem sol e sem sombras pronunciadas. Não existem, verdadeiramente, nem tons claros nem sombras. Para cada objecto existe uma massa colorida, reflectida de todos os lados e maneiras diferentes. Imaginemos nesta cena que se passa ao ar livre, e numa atmosfera parda, um raio de sol que ilumine subitamente os objectos: teremos então tons claros e sombras, no sentido usual, que serão todavia puramente acidentais. A verdade profunda de tudo isto - que para alguns pode parecer singular - é a harmonia da cor na pintura. Coisa estranha!, mesmo entre os coloristas esta propriedade foi compreendida por bem poucos pintores!"


Eugène Delacroix, Diário, trad. Fernando Guerreiro, LiSboa: Editorial Estampa, 1979, pp. 103-104. 

Sunday, November 13, 2022

NATURAL


 "Estamos fartos até ao tédio de ouvir dizer que o homem é bom, que o homem é mau.  O homem não é bom nem mau de seu natural: é aquilo que o fazem ser; é o que realmente deve ser neste mundo, segundo a organização deste mundo, organização viciosa, aleijada, falsa, pecaminosa, quer o defeito começasse no paraíso terreal, quer nos multiplicados infernos que as idades se foram inventando através das civilizações."

 

Camilo Castelo Branco, Carlota Ângela, 7.ª ed., Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1924, p. 204. 

DESPRENDESSE

 




"Se deste outono uma folha,
apenas uma, se desprendesse
da sua cabeleira ruiva,
sonolenta,
e sobre ela a mão
com o azul do ar escrevesse
um nome, somente um nome,
seria o mais aéreo
de quantos tem a terra,
a terra quente e tão avara
de alegria."


Eugénio de Andrade, "O Sal da Língua", in Poesia, 2.ª edição revista, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 521.

Thursday, November 10, 2022

NASCER

 



"Sou o fogo e a sede e as flores

Pertenço ao sol, sou do sol dos meus dias
Incendiados na dor das ausências

E sou. Sou do mar dos navios
Desses apenas que partem
Da cor de um aceno que exausto
É rouco no seu agitar

E pertenço à dor das espadas
E àquelas que vestem o luto
Preparando o dia da guerra
Entre os irmãos — os seus filhos —

E caminho da minha infância
Por entre as bilhas da água
Levedando o barro e o linho

E do colo sou
E ouvindo adormeço
Ouvindo o regresso

De minha mãe"


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 422.