Saturday, December 31, 2022

FINDA

 



"Os dias e as noites adqüirem uma nitidez deslumbrante. As horas regressam à sua etimologia e constituem, de facto, de fato novo, orações."



António Barahona, Raspar o Fundo da Gaveta e Enfunar uma Gávea, Lisboa: Averno, 2011, p. 162.

O SOMBRIO FOGO

 




"O roubador de água

repousa contra o muro do outono
o voo do oiro
o sombrio fogo

hesita
repousa sobre a terra
muro de deus
prata do vento inclinando do azul

a noite
cercado voo de corvos."


João Miguel Fernandes Jorge, "O Roubador de Água", in Obra Poética, 2ª ed., vol. 4, Lisboa: Editoral Presença, 1994, p. 260. 

AMONTOADOR DE NUVENS

 



"Amontoador de nuvens e de versos,
amante sem emenda e muito sério,
insensato e vidente, vítima d'assédio
de vis sons controversos.

Suspenso por um fio de saliva cósmica,
qual onda de bondade a invadir-me o corpo
se, taciturno e flébil, só recordo
tua beleza áulica.


Os sons passam, de vis, a ser ciência;
com surdas vibrações, vozes toantes,
e os livros, que palpitam nas estantes,
lêem-se à transparência.

Nesse momento fixo bem tua figura,
amontôo mais nuvens do cachimbo
e mais versos com fôrça d'exorcismo
e d'erotismo em fúria."



António Barahona, Raspar o Fundo da Gaveta e Enfunar uma Gávea, Lisboa: Averno, 2011, p. 63.

DESCIDA

 



"Soberbo guindaste
o que te traz das estrelas.
Desce agora por entre a noite,
meu amor, desce agora pelo luar.
Que eu, para te receber
já estou a acender bosques
no céu distante da infância.

Aproveitemos os clarões de magnésio,
não tarda que o rio
estreite as águas verdes,
não tarda que as aves todas
berrem doidas pelas margens."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Turquesa, Lisboa: INCM, 2019, p. 235.

TEOFANIA

 



"eu farei este rito, e depois partirei.
Partirei na minha obra e no meu trabalho
pelo contacto cada vez mais profundo
com as figuras da teofania que me foi dada, do
mesmo modo que a substância e o destino."


Maria Gabriela Llansol, Contos do Mal Errante, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 253.

DO AMOR (para a memória do Papa Bento XVI)

 


"Encontrámos, assim, uma primeira resposta, ainda bastante genérica, para as duas questões atrás expostas: no fundo, o «amor» é uma única realidade, embora com distintas dimensões; caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais. Mas, quando as duas dimensões se separam completamente uma da outra, surge uma caricatura ou, de qualquer modo, uma forma redutiva do amor. E vimos sinteticamente também que a fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto àquele fenómeno humano originário que é o amor, mas aceita o homem por inteiro, intervindo na sua busca de amor para purificá-la, desvendando-lhe ao mesmo tempo novas dimensões. Esta novidade da fé bíblica manifesta-se sobretudo em dois pontos que merecem ser sublinhados: a imagem de Deus e a imagem do homem."

 

Bento XVI, Deus Caritas Est, s. tr., Lisboa: Rei dos Livros, 2007, p. 8. 

Friday, December 30, 2022

SUBJUGAÇÃO



"Aqui chegados, não é um passo demasiado arriscado que nos leva ao sentimento, muitas vezes expresso na crítica e na filosofia contemporâneas, de que é a linguagem que usa o Homem, e não o Homem que usa a linguagem. Isto não significa que o Homem se encontra subjugado a uma das suas invenções, como nas histórias de ficção científica sobre computadores malignos e robôs que se autorreproduzem. Significa antes que o Homem nasce da palavra tal como nasce da natureza, e que, porque ele é condicionado pela natureza e descobre nela a concepção da necessidade, a primeira coisa que ele descobre na comunidade da palavra é a sua carta de alforria."

 

Northrop Frye, O Código dos Códigos - a Bíblia e a Literatura, trad. Judite Jóia, Lisboa: Edições 70, 2021, p. 48. 

 

Thursday, December 29, 2022

FÉRTIL

 


"«3. Ai de mim, a quem fui assemelhada? Não fui assemelhada a estas águas, porque também estas águas são férteis diante de Ti, Senhor. Ai de mim, a quem fui assemelhada? Não fui assemelhada a esta terra, porque também esta terra produz os frutos dela na altura certa e Te bendiz, Senhor.»"

 

"Evangelho de Tiago", in Evangelhos Apócrifos Gregos e Latinos, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2022, p. 25. 

Wednesday, December 28, 2022

PASSOS

 


"Salieron del goteroso Pazo cuando ya anochecía, y sin que le comunicasen, sin que ellos mismos pudiesen acaso darse cuenta de ello, callaron todo el camino porque les oprimía la tristeza inexplicable de las cosas que se van."


Emilia Pardo Bazán, Los Pazos de Ulloa, Barcelona: Penguin Clásicos, 2015, p. 198. 

A BELEZA

 



"A passagem mais bela do Evangelho de Filipe diz-nos o seguinte: «Luz e trevas, vida e morte, direitos e esquerdos são irmãos e não se podem separar. Por isso, os bons não são bons; os maus não são maus; a vida não é vida; e a morte não é morte. Cada uma se dissolverá na sua natureza original; mas aquilo que é superior ao mundo não pode ser dissolvido, pois é eterno»"


Evangelhos Apócrifos Gregos e Latinos, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2022, p. 646.


Tuesday, December 27, 2022

INOCENTES

 


"Revelou-me o Senhor o que a alma deve dizer quando chegar ao céu e como responder a cada uma das virtudes lá de cima - «Que me conheci a mim mesma» - diz - «e reuni-me a mim mesma a partir de toda a parte; e não semeei filhos para o príncipe, mas arranquei as raízes dele e reuni os membros dispersos; e sei quem tu és. É que eu sou.» - diz - «do número dos celestes.»"


"Fragmento em grego do Evangelho de Filipe", in Evangelhos Apócrifos Gregos e Latinos, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2022, p. 479. 

Monday, December 26, 2022

REVERBERAÇÃO

 



"nesta outra, a superfície do mar sob a intensa reverberação da luz do sol que está por cima e se não vê também, aparece unida e apenas vibrante de cinco mil faíscas próximas umas das outras. no canto direito da fotografia, tu ergues-te, tu olhas (e eu nasço);"

Manuel Gusmão, dois sóis, a rosa - a arquitectura do mundo, Lisboa: Caminho, 1990, p. 79. 

Sunday, December 25, 2022

GUARIDA

 



"Menino da mangedoura
não vi a estrela dos magos
mas os pastores me contaram
o teu recado

Venho do tempo da angústia
por caminhos vigiados
olhar o puro contorno
da tua face

Passei o denso limite
dos campos razos
e colhi húmidas flores
escarlates

molhadas do sangue novo
dos mortos por desagravo
à beira dos horizontes
desencontrados

Trago vestígios de lama
e largas nódoas de sal
e o eco solto na treva
de cada frase

Menino, dá-me guarida
porque te quero louvar"


Glória de Sant'Anna,  Amaranto - Poesia 1951-1983, Lisboa: INCM, 1988, p. 218. 

GRUTA

 



"1. E encontrou ali uma gruta e levou-a lá para dentro. E pôs à disposição dela os filhos dele e, saindo, procurou uma parteira hebreia da região de Belém.

2. Eu, José, caminhava e não caminhava. E olhei para cima, para o ar; e vi o ar espantado. E olhei para cima, para a abóbada do céu: e vi-a parada; e as aves do céu descansavam. E olhei para a terra: e vi uma tigela no chão e trabalhadores reclinados; e as mãos deles estavam na tigela. E os que mastigavam não mastigavam; e os que levantavam <comida> não <a> levantavam; e os que <a> levavam à boca deles não <a> levavam; mas os rostos de todos olhavam para cima.

3. Eu vi ovelhas a serem apascentadas; e as ovelhas estavam paradas. E o pastor levantou a mão para lhes bater com o bastão; e a mão dele ficou parada em cima. E olhei para a torrente do rio; e vi as bocas dos cabritos paradas e sem beberem. E todas as coisas, de repente, voltaram ao seu curso."


"Evangelho de Tiago", XVIII, in Evangelhos Apócrifos Gregos e Latinos, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2022, p. 57.

Saturday, December 24, 2022

NATIVIDADE



"Nasceu.
Foi numa cama de folhelho
entre lençóis de estopa suja
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das parede
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos Reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroas de espinhos
mas coroa de baionetas
postas até ao fundo
do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo."


Os Poemas de Álvaro Feijó, Castelo Branco: evoramons, 2005, p. 118.

FERMOSURA ESTREMADA

 



"Nossa Senhora

Ó fermosura estremada,
minha glória, meu prazer,
ó grandeza sublimada
que não tenho em que envolver
vossa carne delicada.
Tão pobre naceis sem nada,
pequeno, manso cordeiro,
que levo grande marteiro
por ver-vos em tal pousada
sem ter pano nem cueiro."


Baltasar Dias, Auto do Nascimento de Nosso Señor Jesu Christo, in Autos, Romances e Trovas, ed. Alberto Figueira Gomes, Lisboa: IN-CM, 1985, p. 76.

Friday, December 23, 2022

À BELEZA

 



"Não tens corpo, nem pátria, nem família
Nem te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi."


Miguel Torga, Odes, 4.ª ed., Coimbra: 1977, p. 65. 

Thursday, December 22, 2022

RESTITUIR

 


"E haver quem deplore a vida como breve, quando nela cabem destas imensidades! Grande ingratidão! Profundíssimo desconhecimento!
«Delícias são, mas delícias que passam!», vocifera um incontentado. Oh, que não passam! Quando se cuidam idas, no-las vem restituir a saudade. As próprias lágrimas, com que então as acolhemos, no-las reverdecem; outra vez as gozamos, porventura mais formosas que no seu primeiro ser; e mais formosas e mais queridas sempre, de aparição em reaparição. Negue-o quem quiser; não se lhe inveja a filosofia. Eu por mim sei que tudo isto é muito verdade."


António Feliciano de Castilho, A Chave do Enigma, Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1903, p. 92.

Wednesday, December 21, 2022

ANIVERSÁRIO

 


"Atingido,
o aparelho inclinou as grandes asas mortas
e tombou sobre a Terra, adormecido
na grande rigidez das coisas mortas.

Da viagem ao Sol
trouxera uma centelha
que no verde crisol
da pradaria imensa
de novo se inflamou em chama azul-vermelha.

E o vento, sem detença,
levou aos quatro cantos do universo
a cinza que restara.

É que o vento é senhor de uma loucura imensa,
porque o vento não pára.

...................................................................................

Quando a gente perder
do nosso sonho tudo,
venha a chama que despe
os corpos de veludo...

Que venha o vento agreste
e leve o que ficar em seus assomos.

Que nem a cinza reste
daquilo que nós fomos."


Os Poemas de Álvaro Feijó, Castelo Branco: evoramons, 2005, pp. 26-27.

Tuesday, December 20, 2022

VISÃO INSISTENTE

 



"Eu tenho da vida uma sensação doente, 
desarmonias moles, franjas espinais, 
um rumor absurdo da visão insistente
de aranhas, répteis, moluscos, viscos animais. 

Prendo as minhas impressões a um candeeiro.
A luz agarra-me, flutuo indecisamente
com alterações eléctricas, quebras de corrente, 
e acendo uma vela, respiro fumo, um cheiro

a cera, a mortos, ao nevoeiro de velhos portos.
Ouço, ao longe, o motor de pesados cargueiros
ancorados no rio, instáveis, os mastros tortos, 

e deito-me no sofá, com pulsações; salgueiros, 
plátanos, pálidos abetos à neve, orquídeas, 
a minhas respiração frágil como um busto de Fídias."



Nuno Júdice, Obra Poética (1972-1985). Lisboa: Quetzal Editores, 1991, p. 268. 

Monday, December 19, 2022

PRESENÇA REAL

 


"A imaginação está sempre ligada a um desejo, quer dizer, a um valor. Só o desejo sem objecto é vazio de imaginação. Há presença real de Deus em todas as coisas que a imaginação não dissimula. O belo captura o desejo em nós e esvazia-o de objecto ao dar-lhe um objecto presente, proibindo-o, deste modo, de se dirigir para o futuro."


Simone Weil, A Gravidade e a Graça, trad. Dóris Graça Dias, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 68.

Sunday, December 18, 2022

HABILITAÇÃO

 


"Afirma a Baronesa de Staël, com razão, que amor verdadeiro e alegre não cabe neste mundo. Aos que levianamente a contradissessem, responderíamos com palavras também dela: - que há mais gente habilitada a entender Newton, que para tratar a fundo desta paixão."


António Feliciano de Castilho, A Chave do Enigma, Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1903, p. 85. 

Saturday, December 17, 2022

BONANÇAS

 


"Compunha eu tudo isto como as árvores ora murmuram, ora rugem, ora gemem varrendo o pó com as ramas, segundo passam por elas os zéfiros ou os furacões. Toda a diferença era: que a mim, as bonanças e as tempestades não me vinham de fora, formavam-se umas e outras inesperadamente na fantasia."

 

António Feliciano de Castilho, A Chave do Enigma, Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1903, p. 84. 

Wednesday, December 14, 2022

ESPIRITUAL

 


"As abóbadas de um claustro encobrem tesoiros de sensibilidade inapreciáveis, inexauríveis, e bem mal avaliados dos profanos.
Cada um considera aqueles encerros místicos à luz dos seus próprios preconceitos. Um espiritual, vê ali um alfobre de plantas para o Céu; uma terra de Gessén alumiada de cima pelo sol, no meio de um Egipto enoitecido; um paraíso passageiro sotoposto ao Paraíso perenal, com a mais curta e direta serventia de um para o outro."


António Feliciano de Castilho, A Chave do Enigma, Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1903, p. 61.

Monday, December 12, 2022

TERREAL

 



"Creio que nos amávamos; mais que no sentido da amizade; mais até que no sentido do amor; no sentido do paraíso terreal, quando a humanidade vinha despontando resplandecente de inocência!"

 

António Feliciano de Castilho, A Chave do Enigma, Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1903, p. 20. 

Sunday, December 11, 2022

VIVER A SECO

 



"Viver a seco, que manicómio! A vida é uma aula onde a chatice está no vigilante, que aliás anda sempre a cocar-nos; custe o que custar, temos de parecer ocupados com qualquer coisa apaixonante, de outra forma aproxima-se de nós e dá-nos cabo do juízo. Dia que apenas seja um simples período de vinte e quatro horas, não é tolerável. Só deve ser um longo prazer quase insuportável, um longo coito, o dia, consentido ou forçado.
Acodem-nos ideias enfadonhas quando nos sentimos aturdidos pela necessidade, quando se esmaga, em cada um dos nossos segundos, o desejo de mil outras coisas e lugares."


Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao Fim da Noite, trad. Aníbal Fernandes, 6.ª ed., Lisboa: Ulisseia, 2014, p. 326.

Friday, December 9, 2022

VONTADE

 


" Genoveva - Mas há coisas que não podem acontecer pela vontade de Nosso Senhor!

P.e Cristóvão - Saberás tu dizer-me quais?

Genoveva - O Sr. P.e Cristóvão bem conhece que eu sou uma ignorante. Mas há coisas que fariam a gente descrer em Deus, se acontecessem pela sua vontade...

P.e Cristóvão - Cala-te, Genoveva, que tu és uma ignorante e todos o somos! Julgamos saber muito porque ainda sem sonhamos o que nos falta saber. Até dentro de nós está o mistério que está em volta..."


José Régio, Benilde ou a Virgem-Mãe, Porto: Livraria Portugália, 1947, pp. 44-45. 

Thursday, December 8, 2022

FRIEZA

 



"Os teus olhos são frios como as espadas,
E claros como os trágicos punhais;
Têm brilhos constantes de metais
E fulgores de lâminas geladas.

Vejo neles imagens retratadas
De abandonos cruéis e desleais,
Fantásticos desejos irreais,
E todo o oiro e o sol das madrugadas!

Mas não te invejo, Amor, essa indiferença
Quer viver neste mundo sem amar
É pior que ser cego de nascença!

Tu invejas a dor que vive em mim!
E quanta vez dirás a soluçar:
«Ah! Quem me dera, Irmã, amar assim...»"


Florbela Espanca, Sonetos Completos, 8.ª ed., Coimbra: Livraria Gonçalves, 1950, p. 78. 

Wednesday, December 7, 2022

BÁRBARA

 




"Ressurgem relâmpagos, inquieta-se
a chuva, tarda
que arda o cabelo,
espantado animado cabelo
debruçando-se de todos os cumes,
sibila o sol a pôr-se
e o lobo distraindo-se
ilumina à noite o seu grande dorso.

Bruxuleia o passado, entendem
as asas a debilidade dos pássaros.
esparsa-se em peças o tempo, precipitam-se-me
os fémures em mergulhos alados."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, O Afastamento Está Ali Sentado, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 109. 

Tuesday, December 6, 2022

ALEGRIA

 


"Os ricos não precisam de matar para encher a pança. Fazem os outros trabalhar, como eles dizem. Não praticam pessoalmente o mal, os ricos. Pagam. E tudo é feito para lhes agradar, e todos ficam muito contentes. Enquanto as mulheres deles são belas, as dos pobres são grosseiras. É um resultado que dura há séculos, modos de vestir à parte. Belas e graciosas, bem alimentadas, bem lavadas. Desde que a vida é vida, só a isto chegou."

 

Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao Fim da Noite, trad. Aníbal Fernandes, 6.ª ed., Lisboa: Ulisseia, 2014, p. 307. 

Sunday, December 4, 2022

REVERBERAÇÃO




"Quando deparamos com coisas: formas espaciais e cores, movimentos e destinos, o exterior e o interior da vida sob a forma da realidade, passam a associar-se a elas certas impressões e reverberações no sentir cujo tom particular nos diz que estamos em face da realidade - um tom particular nos diz que estamos em face da realidade - um tom que não emana dos conteúdos puros e qualidades das coisas que nos impressionam, mas sim do facto de serem reais."

Georg Simmel, Filosofia da Aventura e Outros Textos, trad. Helena Topa, Lisboa: Relógio D'Água, 2019, p. 24.

Saturday, December 3, 2022

ESTRANHEZA

 



"Ao passo que todas as coisas do mundo real podem ser incorporadas na nossa vida como meios e materiais, a obra de arte existe por si mesma, simplesmente. Mas todas as coisas que nos oferece o mundo real permanecem para nós, em última análise, profundamente estranhas. E mesmo a nossa necessidade de dar e receber depara-se com uma irremediável intransponibilidade que impossibilita a aproximação entre a nossa alma e a do outro.
Só a obra de arte pode ser inteiramente apropriada por nós; só vertida nesta forma pode uma alma tornar-se completamente acessível para nós. Ao ser mais por si mesma, na sua independência, do que qualquer outra coisa, a obra de arte é para nós mais do que qualquer outra coisa."


Georg Simmel, Filosofia da Aventura e Outros Textos, trad. Helena Topa, Lisboa: Relógio D'Água, 2019, p. 10.

Friday, December 2, 2022

PELA TARDE

 



"Pela manhã, procura as palavras que expliquem o dia. Vão chegando
uma a uma. Todas trazem gotas de água, pingos de sal, a cor do rubi,
pétalas breves mas pétalas e as formas todas da espera.

Pela tarde, uma a uma, vão-se recolhendo. Mas as formas da espera
continuam a tremeluzir."


Zeferino Silva, Bosque de Romãzeiras, Hexágono, 2019, p. 103.

Thursday, December 1, 2022

OS SONHOS

 



"Já não sabemos das vinhas onde dormimos
mas os sonhos vagueiam
chispa de água cheiros primordiais.

Do oiro das colinas percebemos o tamanho dos dias
a ternura do crepúsculo
olhos ainda cheios de uvas maduras.

E é pouco o que peço
poder olhar o horizonte
voar em ventos lavados

descansar nos campos abertos
os outeiros beijarem as nuvens.
E saber que isto nos basta."


Zeferino Silva, Bosque de Romãzeiras, Hexágono, 2019, p. 73.