Thursday, August 31, 2023

INCERTO

 


"Fui pois escutar aquele ancião. Devia a sua fama mais à rotina que à inteligência e à memória. Se, incerto sobre uma questão, alguém lhe vinha bater à porta para o consultar, voltava ainda mais incerto. Admirável aos olhos de um auditório, era uma nulidade na presença de alguém que viesse interrogá-lo. Possuía uma maravilhosa facilidade de palavra, mas a substância dos seus discursos tinha pouco sentido e nenhum valor. Quando acendia o seu fogo, enchia a casa de fumo, não a tornava clara com luz. A sua árvore, toda em folhagem, oferecia de longe um aspecto imponente; de perto, quando a examinavam atentamente, achavam-na estéril."


Pedro Abelardo, "Carta a um amigo, ou narrativa das minhas desventuras", in Cartas de Abelardo e Heloísa, trad. Franco de Sousa, Lisboa: Editorial Estúdios Cor, s.d., p.19. 

Wednesday, August 30, 2023

O CABO DO OCIDENTE

 


"Comparada com essa Tebaida, aquela outra de cesteiros, cegos cantadores de loas, alveitares milagreiros, bentos e santos-justos, jograis e velhos tontos, que grotesca galeria! A alma aqui conhecia a violência da paixão mas não a sublimidade da graça! A terra portuguesa, possuída pelo romano, fecundada pelo godo, cilindrada pelo árabe, tão compósita de cultura e de semental não dava flores místicas doutra redolência. Dava aquilo, e não daria outra coisa pelos séculos a vir. Compreendia-se de resto: estavam no cabo do Ocidente, o Ocidente berço da razão hedionda e do senso prático. Terra avessa ao maravilhoso! Nunca ali tinham nascido deuses. O homem, sim, acabava por importá-los dos outros povos, para os acomodar à sua imagem e semelhança e à gradação dos seus climas moderados."


Aquilino Ribeiro, S. Banaboião, Anacoreta e Mártir, Lisboa: Bertand Editora, 1985, p. 72. 

Tuesday, August 29, 2023

URGÊNCIA


 "Não basta aspirar ao deserto, urge saber qual o deserto que escolhemos, não em termos de geografia mas de ascese. A rosa dos ventos a nortear a escolha será a Cruz que chama à imolação com Cristo."

 

Giorgio Papàsogli, Deus responde no deserto - Bruno, o santo da Cartuxa, trad. J. C. Monteiro Pacheco, SJ, Porto: Livraria A. I., s.d., p. 82. 

Monday, August 28, 2023

TROTEIRO

 





"Certa vez, pregava Santo António numa solenidade, quando o velho inimigo dos homens entrou na igreja, disfarçado em troteiro, e foi entregar uma carta a certa dona cujo filho tinha inimigos mortais. E dizia a carta que já os inimigos lhe tinham matado o filho, e até nomeava o lugar onde o crime tinha fora praticado.
Ora o Santo, daquelas coisas nada ouviu com os ouvidos do corpo, nem seus olhos de longe podiam ter lido a carta; mas porque Deus lhe mostrou na alma tudo o que se passava, a sossegar a dona apressou-se a dizer:
- Não vos amofineis, senhora! Vosso filho está vivo e com saúde, e em breve estará de volta sem que ninguém lhe tenha feito mal. Esse que veio até vós, e aí está, é o demónio em pessoa. Tramou semelhante embuste só para perturbar o sermão.
E, palavras não eram ditas, quando o troteiro se esvaiu em fumo."


Livro dos Milagres ou Florinhas de Santo António de Lisboa, 2.ª ed, trad. Frei Fernando Félix Lopes, OFM, Braga: Editorial Franciscana, 2019, XXII, pp. 65-66.

Sunday, August 27, 2023

UM TEMPO

 




"Efetivamente, há um tempo para cada coisa:
um tempo próprio para o modelo,
e um tempo para a realização.
Tu fazes o modelo com vista à realização. Ele é-te caro porque nele vês a imagem do que vais realizar. Forneces os materiais para o modelo e deseja-lo por causa do que, a partir dele, surgirá. Depois executas a obra:
       só esta desejas,
       só esta amas,
       porque nela vês a figura e os materiais de construção da realidade."


Melitão, bispo de Sardes (Século II), Sobre a Páscoa, trad. Isidro Pereira Lamelas, Prior Velho: Paulinas, 2021, 38, p. 43.

Saturday, August 26, 2023

ALTURAS


 

"Um imenso sol tombava das alturas muito altas, muito límpidas, e Maria ia envolta em sol e o sol entrava-lhe pelos olhos e pela boca e ela sentia que o sol lhe entrava igualmente pelas narinas e pela pele das mãos, dos braços e do pescoço; e Maria, então, que viu o bando de pombas a riscarem no céu de um azul tão belo e tão puro, velozes caminhos, sentiu-se bruscamente alegre e o ceguinho de olhos mortos apagou-se-lhe na memória, onde apenas quedaram os brilhantes olhos do menino que media os passos ao cego (que coisa, parece que o sol me entrou no coração, me encheu de luz!). À sua roda só havia luz, a própria sombra que as árvores e os muros projectavam no caminho era luz, de luz se encontravam do mesmo modo penetradas as coisas que a cercavam, luz é o que ela ia respirando e o que apertava nos dedos, a terra inteira era luz e luz era ela, também (que engraçado, o sol passou prò meu peito, ai, como é bom, como é bom sentir o sol no coração!)"


Afonso Ribeiro, Maria I - Escada de Serviço, 2.ª ed., do autor, 1957, pp. 207-208. 

Friday, August 25, 2023

PARADEISO

 


"Os antigos gregos separavam os seus níveis dividindo a escrita em duas categorias: mythos era reservado para as coisas como as histórias dos deuses. Embora essas histórias pudessem conter distorções e mentiras, havia também uma verdade mais alta a respeito da natureza e da existência do homem. Logos, por seu lado, relacionava-se com as realidades externas e os factos verificáveis. Confunda-se as duas e fica-se em grandes sarilhos, a dar voltas num estuário sul-americano à procura do paraíso, ou especado diante dos Portões de Pérola na esperança de que o paraíso contenha coisas tão mundanas como bonitas ninfetas. No paraíso, tudo é perpetuamente renovado: todas as acções são beatíficas, recuperando eternamente essa experiência da primeira vez."

Kevin Rushby, Paraíso, trad. Mário Dias Correia, Matosinhos: QuidNovi, 2007, p. 258. 

Thursday, August 24, 2023

SÃO BARTOLOMEU


 

"Senhor dos infernos, dos céus, de parte nenhuma,
não precisais saber dos que precisam,
nem que precisam, mas precisais
saber mais que sabiam nossos pais.
Moisés tinha os dois, Moisés tinha os dois.
Sabeis muito bem o que houve depois."



Jorge de Sena, Fidelidade, in Poesia III, Lisboa: Edições 70, p. 40.

BARTOLOMEU





" - Su majestad lo dice en broma, pero con la ayuda del diablo algunas cosas son posibles. Cosas virtuosas, quiero decir.
- Cómo es eso, padre?
- La mayor habilidad del diablo - explicaba el nuncio - consiste en hacernos pensar que no existe. Yo sé que hay mil maneras de decir uma misma cosa y que la mía puede parecer inadecuada; pero repito que se puede llamar a Satanás y hacerlo trabajar en favor de una empresa virtuosa. Lo digo en serio, señora - y reía otra vez -. En serio. Tenemos agentes."



Ramón J. Sender, Carolus Rex, 8.ª ed. Barcelona: Ediciones Destino, 1992, p. 106.

Tuesday, August 22, 2023

O PARAÍSO DAS DAMAS

 


"Esta vida de cão espancado tornava más as melhores; e o triste desfile começava: todas devoradas pelo ofício antes dos quarenta anos, desaparecendo, caindo no desconhecido, muitas simplesmente mortas, tisicas ou anémicas, de fadiga e mau ar, algumas lançadas para a prostituição, as mais felizes casadas, enterradas no fundo de uma lojinha de província. Era humano, era justo, esse consumo terrível de carne que os grandes armazéns faziam todos os anos? E ela pleiteava a causa das engrenagens da máquina, não por razões sentimentais, mas com argumentos tirados do próprio interesse dos patrões. Quando se quer uma máquina sólida, emprega-se bom ferro; se o ferro se parte ou se o partem, há uma paragem de trabalho, despesas repetidas de arranque, todo um desperdício de força."


Émile Zola, O Paraíso das Damas, trad. Daniel Augusto Gonçalves, Porto: Civilização, 2013, p. 334. 

CHEGADA



"Que aconteceu ao Tempo,
inteiro em cada hora?
Chegava para tudo,
chegava, mas agora
não chega para nada.
Uma vida apressada,
repartida em momentos,
transforma os movimentos
em gestos sem sentido,
em passos, dissonâncias.
O tempo, repartido
em minutos sem calma,
é um tempo perdido,
é um tempo sem alma.

Que aconteceu ao Tempo
que não é de ninguém
mas é de toda a gente?
Perdeu-se no vaivém
da rua indiferente
e na circulação,
no trânsito infernal,
na doida confusão
do juízo final.
Desânimo, cansaço?
Ouvem-se a cada passo
as palavras banais:
«Não tenho tempo, tempo!»
Apetece dizer,
como o sábio chinês:
«Tens todo, não há mais.»
Será assim, talvez,
mas que fazer então
para o tempo chegar?

Não amar, não sonhar?"



Fernanda de Castro, Urgente, Lisboa: Guimarães Editores, 1989, pp. 22-23.

Monday, August 21, 2023

A ORIGEM DO HOMEM

 


"Dir-se-ão que o regionalismo visa a outros objectivos, seja interpretar o tipo ou a índole de uma região. À parte as cambiantes, e é negócio de folclore, os labregos de Portugal são o mesmo presépio com a mesma psique. Esfomeados, ignorantes, velhacos, trabalhados pelos instintos, tanto o são aqui como além. Quem faz o homem é o céu, é a Natureza, é o solo, são as leis e é a língua, que é como o molde dos pensamentos, e quem diz pensamentos diz racionalidade. Portanto, acabe-se com a ideia incôngrua e sem fundamento de que há uma escola regionalista em Portugal. O que há é figurantes de carapuça ou de chapéu vareiro, de polainas de junco ou safões de pele."


Aquilino Ribeiro, "Escritor regionalista", in Manuel Mendes, Aquilino Ribeiro - a obra e o homem, 2.ª ed., Lisboa: Arcádia, 1977, p. 87. 

Sunday, August 20, 2023

OLHAR A VIDA

 


"O nosso silêncio torna-se escuta que acolhe, que procura compreender e apreender cada criação que, no fundo, tem plasmado cada artista e cada um de nós. Por outro lado, é da atenção dada ao silêncio, a toda a sua profundidade e intimidade que o artista cria as suas obras, isto sobretudo nas artes silenciosas. Se o silêncio não habitasse a arte, nada se revelaria, uma vez que é do silêncio que todo o pensar e agir se origina. O verdadeiro silêncio, o silêncio que diz o ser dos seres falantes que somos, plasma e profundidade duma existência, duma realidade poética e não uma superficialidade globalizada, caso contrário, não seria silêncio mas simples mutismo. Olhar a vida a partir do silêncio é procurar a profundidade e a sacralidade da existência humana, é acolher verdadeiramente a realidade, o mundo, as coisas, os outros em si mesmo, é viver com tudo o que nos faz humanos."

 

Rafael Gonçalves, Mistagogia poética do silêncio na liturgia- Práticas silenciárias, Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2022, pp.  134-135. 

Friday, August 18, 2023

FLORESTA

 


"O capitão jamais soube quanto tempo durou aquela louca cavalgada.  Perto do final, sabia que tinham saído da floresta e que galopavam numa planície aberta. Pelo canto do olho pareceu-lhe ver um homem deitado em cima de uma rocha, ao sol, e um cavalo a pastar ali perto. Não ficou nada surpreendido e, pouco depois, já o havia esquecido. A única coisa que preocupava o capitão nesse momento era o facto de, ao tornarem a entrar na floresta, o cavalo ter começado a desacelerar o passo. Apavorado, o capitão pensou: «Quando ele parar, será o meu fim.»"

 

Carson McCullers, Reflexos num Olho Dourado, trad. Marta Mendonça, Lisboa: Editorial Presença, 2011, p. 57. 

CALEIDOSCÓPIO

 


"Depois de desistir da vida, o capitão começou subitamente a viver. Sentiu-se invadido por uma grande e louca alegria. Essa emoção, tão inesperada como o mergulho do cavalo pela encosta abaixo, era algo que o capitão nunca havia experimentado. Os seus olhos estavam vidrados e semicerrados, como em delírio, mas, de repente, começou a ver como nunca vira antes. O mundo era um caleidoscópio e cada uma das inúmeras imagens que via ficava gravada no seu cérebro com ardente nitidez."


Carson McCullers, Reflexos num Olho Dourado, trad. Marta Mendonça, Lisboa: Editorial Presença, 2011, p. 56. 

Wednesday, August 16, 2023

ENCONTRO

 


"Deus, manda-me um pedinte, rezou subitamente. Manda-me um antes que eu chegue a casa. Nunca se tinha lembrado de rezar sozinho antes, mas era boa ideia. Fora Deus quem pusera o peru à sua frente. Havia de lhe mandar um pedinte. Tinha por certo que Deus lhe mandaria algum. Estava agora na Hill Street e nessa rua não havia nada senão casas. Seria estranho encontrar um mendigo ali. Os passeios estavam vazios com excepção de meia dúzia de crianças e triciclos. Ruller olhou para trás; os campónios continuavam no seu encalço. Optou por abrandar o passo. Talvez assim os obrigasse a apanharem-no e desse mais tempo a um pedinte para se encontrar com ele. Se é que apareceria algum. Interrogou-se se apareceria. Se aparecesse, implicaria que Deus estava realmente interessado. Teve um medo súbito de não surgir nenhum; foi um medo grande que veio subitamente."


Flannery O'Connor, "O Peru", in O Gerânio - contos dispersos, trad. Luís Coimbra, Lisboa: Cavalo de Ferro Editores, 2010, p. 85. 

Tuesday, August 15, 2023

ISENTA

 


"Nossa Senhora da Lapa
Que dais aos vossos romeiros?
Dou-lhes água das minhas fontes, 
Acolho-os nos meus castanheiros.

Adeus, ó fontes da Lapa, 
Ao pé tendes uma pia
Para as moças se lavarem
Quando vão de romaria.

Nossa Senhora da Lapa
Nesta serra nasce um rio; 
Ou casai-me bem casada
Ou me dai algum desvio.

A fonte irrompe da lapa
E corre límpida e pura;
Assim a Virgem isenta
Toda bela e formosura."


Pe. Ilídio Fernandes, Nossa Senhora da Lapa - Roteiro e Trovas, 1971, p. 66.

Monday, August 14, 2023

NUN' ÁLVARES PEREIRA




"Que auréola te cerca?
É a espada que, volteando,
Faz que o ar alto perca
Seu azul negro e brando.

Mas que espada é que, erguida,
Faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
Que o Rei Artur te deu.

'Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada,
Para a estrada se ver!"


Fernando Pessoa, Mensagem, 2ª. ed., Lisboa: Clássica Editora, 1989, p. 39.

ACENOS




"Levantou-se. Deus era capaz de acenar com coisas debaixo do nosso nariz e de nos obrigar a persegui-las a tarde toda para nada.
No entanto, não se devia ter pensamentos desses sobre Deus."


Flannery O'Connor, "O Peru", in O Gerânio - contos dispersos, trad. Luís Coimbra, Lisboa: Cavalo de Ferro Editores, 2010, p. 80.

Sunday, August 13, 2023

METÁFORA

 


"Era uma patetice que uma mercearia pudesse deprimir alguém - não se passa nada lá dentro além de afazeres domésticos corriqueiros. Há  mulheres que lá vão comprar feijões, crianças que andam sentadas naqueles carrinhos de compras, pessoas que regateiam o preço de mais quilo, menos quilo de abóbora. E o que ganhava essa gente com isso? Miss Willerton ponderou o assunto. Onde é que havia ali hipótese de expressão individual, de criatividade, de arte? Em toda a sua volta passava-se a mesma coisa - passeios repletos de pessoas a correrem de um lado para o outro, cheias de pressa, com as mãos cheias de pequenas embalagens, como aquela senhora que ali estava com um menino pela trela, a puxar por ele, a dar-lhe esticões, a arrancá-lo de uma montra onde se via uma abóbora iluminada do Dia das Bruxas; provavelmente passaria o resto da vida a puxar e a esticar o rapazinho. E a outra que estava além, a despejar o conteúdo de um saco no chão, ainda outra a assoar o nariz do seu menino, ao cimo da rua uma velhota que trazia três netos a saltitarem em seu redor, e atrás dela um casal que caminhava demasiado juntinho para os critérios do bom requinte."


Flannery O'Connor, "A Colheita", in O Gerânio - contos dispersos, trad. Luís Coimbra, Lisboa: Cavalo de Ferro Editores, 2010, p. 68. 

Saturday, August 12, 2023

COGITATIVA


"Não respondeu a criatura divina. Ia cogitativa em qualquer enleio, que lhe realçava a beleza. O aspeito do moço, digamo-lo assim, dava ares dos santos que nós temos vistos nos dramas sacros e nas cenas da glória final a subirem ao céu, rodeados de anjos. E, fora dos dramas sacros, a gente vê também às vezes caras semelhantes à dele nos parvos felizes, nas almas eleitas que se engolfam num oceano de iriadas visões de quimeras, como o sonho de um turco opiado. São caras, para assim dizer, comum de três: de santos de teatro em glória; de parvos felizes; de turcos opiados."


Camilo Castelo Branco, O Santo da Montanha, Lisboa: Companhia Editora de Publicações Ilustradas, s.d., p. 79 [ort. at.]

Friday, August 11, 2023

TRUPE

 


"Estava a avançar na direcção do buraco para o gato passar. Na outra margem do rio, Deus estava à sua espera com uma trupe de anjos e vestes talares bordadas a oiro para ele vestir, e quando fizesse a travessia, cobrir-se-ia com as vestimentas e ficaria ao lado do Senhor e dos anjos, a julgar os vivos."


Flannery O'Connor, "Puma", in O Gerânio - contos dispersos, trad. Luís Coimbra, Lisboa: Cavalo de Ferro Editores, 2010, p. 53. 

Thursday, August 10, 2023

REPOUSO

 


"Mendel levantou-se, encostou uma cadeira ao sofá, pousou o retrato na cadeira e voltou a deitar-se no sofá. Enquanto os seus olhos se iam lentamente cerrando e entrando no mundo do sono, levavam consigo o azul alegre do firmamento e os rostos dos seus novos netos. No fundo acastanhado do retrato, ao lado dos netos, surgiam as figuras de Jonas e de Mirjam. Mendel adormeceu. E pôde finalmente descansar do peso da felicidade e da grandeza dos milagres."


Joseph Roth, Job - Romance de Um Homem Simples, trad. Gilda Lopes Encarnação,  Lisboa: Relógio  D'Água, 2023, p. 177. 

Tuesday, August 8, 2023

PIEDADE

 


" - Que sorte a tua, Deborah! - dizia. - Só é pena que nenhum filho varão te tenha sobrevivido, eu próprio terei de dizer a tua oração fúnebre, em breve morrerei eu também e ninguém chorará a nossa morte. Fomos levados pelo vento como dois ínfimos grãos de poeira. Como duas pequeninas chamas a nossa vida se apagou. No teu seio gerei os nossos filhos, tu os trouxeste a este mundo, a morte arrebatou-os de novo. Sem sentido nem alegria foi a tua vida toda. Nos meus verdes anos, encontrei deleite na tua carne, mais tarde rejeitei-a. Talvez tenha sido esse o nosso pecado. Como a chama do amor não ardia nas nossas vidas, como o hábito gélido se instalou nos nossos corpos, tudo pereceu à nossa volta, tudo se definhou e corrompeu. Que sorte a tua, Deborah! O Senhor compadeceu-se de ti. Morreste e foste a enterrar. De mim, o Senhor não se apiedou. Porque morri e continuo vivo. Ele é o Senhor, Ele sabe o que faz. Se puderes, reza por mim, Deborah, para que eu seja apagado do livro dos vivos."

Joseph Roth, Job - Romance de Um Homem Simples, trad. Gilda Lopes Encarnação,  Lisboa: Relógio  D'Água, 2023, pp. 127-128. 

Monday, August 7, 2023

ANINHADO

 



"Tirou da mala de viagem o seu velho livro de orações, que, nas suas mãos, se sentia como em casa, abriu-o diretamente nos salmos e recitou-os, um a seguir ao outro. Os salmos recitavam-se, por assim dizer, por si mesmos. Mendel conhecera a felicidade e a graça divina. Também ele repousava a mão enorme e bondosa de Deus. Aninhado na sua mão poderosa e em sua honra também, Mendel recitava os salmos um a um."


Joseph Roth, Job - Romance de um Homem Simples, trad. Gilda Lopes Encarnação, Lisboa:  Relógio D'Água, 2023, p. 113. 

Sunday, August 6, 2023

LOUVOR

 


"Não, Mendel não tinha medo. Tranquilizou o marinheiro, ele, um pequeno judeu negro num navio gigantesco, diante do oceano eterno. Deu ainda meia-volta e murmurou a bênção que se deve pronunciar quando se avista o mar. Deu meia-volta e verteu, uma a uma, as palavras da bênção sobre as vagas verdes:
- Louvado sejas, Eterno, nosso Senhor, Tu, que criaste os mares e com eles separaste os continentes!
Nesse mesmo momento, eclodiu o som estridente das sirenes. Os motores retumbaram. E o ar e o navio e as pessoas estremeceram. Só o céu permanecia sereno e azul, azul e sereno."


Joseph Roth, Job - Romance de um Homem Simples, trad. Gilda Lopes Encarnação, Lisboa:  Relógio D'Água, 2023, p. 95. 

Saturday, August 5, 2023

AGACHADA

 


"Não pregou olho. Passou a noite agachada ao lado do cesto de Menuchim, a um canto da casa, junto ao fogão. As sombras envolviam o quarto e o seu coração. Não se atrevia já a invocar o Senhor, porquanto Deus lhe parecia demasiado alto, demasiado grandioso, demasiado longínquo, a uma distância infinita, por trás de céus incontáveis:  uma escada feita de milhões de preces e orações teria sido necessária para alcançar a ponta do manto do Senhor."

 

Joseph Roth, Job - Romance de um Homem Simples, trad. Gilda Lopes Encarnação, Lisboa:  Relógio D'Água, 2023, p. 19. 

Friday, August 4, 2023

PROPULSÃO

 


"Será tudo? Não, não é. A obra de arte, na sua eloquência, exemplar, propõe-nos ainda mais: ela não ensina apenas o equilíbrio. Efectivamente, que valor teria um equilíbrio obtido por uma fórmula definitiva e imóvel? A obra de arte que, sem dúvida, corresponde sempre a um certo equilíbrio, é, ao mesmo tempo, o sinal de uma propulsão que dá um sentido à vida."

 

René Huygue, Os Poderes da Imagem, trad. Manuela França, Venda Nova: Livraria Bertrand, s.d., p. 15. 

Wednesday, August 2, 2023

SENTIDO

 



"O sentido do sagrado põe um travão a essa atitude instrumental. Perante um lugar ou artefacto sagrado, recuo numa postura de respeito. Este pedaço do mundo, acredito, é inviolável. Eu poderia danificá-lo e talvez não fosse punido por o fazer. Mas ele fala comigo e diz-me que me refreie. Assim como o sujeito aparece no rosto humano, e ante o assassino e o abusador apresenta o «não» absoluto, também um «eu» observador, indagador e interrogador aparece no lugar sagrado, e ordena-nos que o respeitemos."


Roger Scruton, O Rosto de Deus, trad. Marcelo Felix, Lisboa: Edições 70, 2023, p. 156. 

Tuesday, August 1, 2023

TEMPLO

 


"O corpo humano é o templo da alma, o lugar onde o outro está presente e oculto, protegido de mim, mas no entanto revelado quando proferidas as palavras certas e produzidos os gestos certos. «Existe apenas um templo no mundo», escreveu Novalis (Hinos à Noite), «e esse é o corpo do homem [...] Tocamos o Céu quando colocamos a mão sobre um corpo humano.» Na vida quotidiana, não costumamos ver as coisas dessa maneira."


Roger Scruton, O Rosto de Deus, trad. Marcelo Felix, Lisboa: Edições 70, 2023, p. 147.