Friday, November 30, 2007

PRECIPÍCIOS



"As imagens gastas de tão lidas
e os sofisticados lugares comuns da poesia
colam-se-te à pele - incómodo trajo do bom senso
e do bom gosto que repudias.
Vil chegada do que amaste, e que agora recordas.

A poesia faz-se contra o esquecimento?
Melhor seria dizer, contra a memória se faz a poesia.

Sem a arruinada ponte não há precipício?
O que conta é o precipício além da arruinada ponte."


Luís Quintais, Angst, Lisboa: Cotovia, 2002, p. 38.

Saturday, November 24, 2007

CORPO DA NOITE


"Ó noite onde as estrelas mentem luz, ó noite única do tamanho do Universo, torna-me, corpo e alma, parte do teu corpo, que eu me perca em ser mera treva e noite também, sem sonhos que sejam estrelas em mim, nem sol esperado que ilumine do futuro."


Bernardo Soares, Livro do Dessassego, 280, ed. Richard Zenith, 5ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 271.

Saturday, November 17, 2007

PASSOS MEDIDOS ATÉ À PONTE



"Inseparável do medo é a queda,
Medo é mesmo do vazio o sentimento.
Quem nas alturas nos atira a pedra,
Rejeitando ela o jugo do momento?"


Ossip Mandelstam, Guarda Minha Fala Para Sempre, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 121.

Tuesday, November 13, 2007

O OBSCURO, NOVAMENTE COM TRONCOS DEVASTADOS



II.
"Pois deixa as solidões ganhar tamanho,
retira-te de tudo o que comece,
engrossa nas pastagens o rebanho
que a terra enegrecida já escurece.

(...)
Aqui fala o obscuro, nunca o vimos,
primeiro nos soergue e só nos mente,
mas - sonhos, praga ou bênção que sentimos -
deixa tudo intocado humanamente"


Gottfried Benn, "50 Poemas", trad. Vasco Graça Moura. Lisboa: Relógio D'Água, 1998, p. 67.

Friday, November 9, 2007

OBSERVANDO O TRONCO E VENDO O ROCHEDO



"Há rochedos que são estátuas misteriosas.
Nós vemo-los, além, nas serras arenosas,
Desenhados na tela em brasa do sol-pôr...
Ó frontes que enrugou e empederniu a dor!
Há rochedos que são perfis extraordinários.
Alguns, ao vir da lua, evocam os calvários.
Este, lembra dum Deus o mutilado torso;
(...)"

Teixeira de Pascoaes, Vida Etérea, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 167.

Friday, November 2, 2007

À BOCA DO POÇO - OFÍCIO DOS MORTOS 2

"Às vezes, até a morte pode ser
condescendente: à boca do poço
pára o cavalo, não chega a desmontar,
mas consente que te demores
a contemplar as águas negras,
o rebanho de chocalhos distantes,
as macieiras perto,
os seus frutos estranhamente acesos."


Eugénio de Andrade, "Rente ao Dizer", in Poesia, 2ª ed. revista. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 477.

Thursday, November 1, 2007

DEMONOLOGIA 1 EM NOITE DE TODOS-OS-SANTOS

"Mas afinal quem é o senhor? Porque está assim mascarado?"
"Respondo, numa só resposta, às suas duas perguntas: não estou mascarado."
"Como?"
"Minha senhora, eu sou o Diabo. Sim, sou o Diabo. Mas não trema nem se sobressalte."
E num relance de terror extremo, onde boiava um prazer novo, ela reconheceu, de repente, que era verdade.
"Eu sou de facto o Diabo. Não se assuste, porém, porque eu sou realmente o Diabo, e por isso não faço mal. Certos imitadores meus, na terra e acima da terra, são perigosos, como todos os plagiários, porque não conhecem o segredo da minha maneira de ser. Shakespeare, que inspirei muitas vezes, fez-me justiça: disse que eu era um cavalheiro. Por isso esteja descansada: em minha companhia esté bem. Sou incapaz de uma palavra, de um gesto, que ofenda uma senhora. Quando assim não fosse a minha própria natureza, obrigava-me o Shakespeare a sê-lo. Mas, realmente, não era preciso."


Fernando Pessoa, A Hora do Diabo, ed. Teresa Rita Lopes, 2ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 45.