"Para se criar é preciso sofrer. Hoje e sempre só a dor é que dá vida às coisas inanimadas. Com um escopro e um tronco inerte faz-se uma obra admirável, se o escultor sofreu. Mais: com palavras, com sons perdidos, com imaterialidades, consegue-se esse milagre: fazer rir, fazer sonhar, arrancar lágrimas a outras criaturas. Com as simples e secas letras do abecedário, um desgraçado com génio, metido numa água-furtada, edifica uma coisa eterna, uma construção mais sólida e mais bela do que se fosse arrancar os materiais ao coração das montanhas.
O que é então a dor, milagre extraordinário que consegue dar vida às fragas? o que é esse assombroso fluido, que se comunica, alma arrancada da própria alma e que se pode repartir como pão? Nunca houve sob o sol criatura que sofresse da verdadeira dor, cujo sofrimento não consolasse ou salvasse. Até as mais humildes, ainda depois de mirradas vão aquecer e alumiar os pobre.
A dor dá a vida e não é a própria vida: cria, redime, obra prodígios e nada há que se comunique, que convença, que torne os homens irmãos como ela..."
Raul Brandão, Os Pobres, Lisboa: Ed. Comunicação, 1984, pp. 77-78.
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